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Análise da ilicitude e da culpa no art 64.º

2. A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS ADMINISTRADORES

2.2. Análise da ilicitude e da culpa no art 64.º

Considerando o conteúdo do artigo 64.º do CSC de forma autonomizada 62 numa correlação com a responsabilidade civil dos administradores, e, identificando no seu bojo pressupostos que ultrapassam as simples “normas de conduta” (não necessitando

UNIDROIT e ao artigo 9.503 dos princípios de Direito Europeu dos Contratos”, in Estudos em Memória

do Professor Doutor António Marques dos Santos, Vol. I, Almedina: Coimbra, 2005, p. 797-826.

60

Cfr. FRADA, Manuel António Carneiro. Direito Civil, Responsabilidade Civil – o método do caso, Almedina: Coimbra, 2006, p. 60.

61 Pelo DL 49381, de 15 de novembro de 1969 (diploma dedicado à fiscalização de sociedades anónimas),

a ordem jurídica portuguesa instrui-se de um novo modelo de regulação da responsabilidade civil dos administradores, abandonando o modelo de raiz contratual e passando a adotar o modelo de raiz legal. Apenas para ilustração, é válido lembrar que no modelo de raiz contratual [inspirado pelo Code de

Commerce] releva a figura do contrato de mandato (onde os administradores eram verdadeiros

mandatários da sociedade, sendo responsáveis apenas pelo não cumprimento do mandato e dos estatutos sociais). Havia ampla liberdade e escassa responsabilidade dos administradores. Vide RAMOS. Maria Elisabete Gomes. O seguro...ob. cit., p. 78-82.

62 Há autores que não conferem autonomia aos deveres. Vide C

ORDEIRO, António Menezes. Da

responsabilidade civil dos administradores de sociedades comerciais, LEX: Lisboa, 1997, p. 522-523,

declara que “só por si o artigo 64.º não é susceptível de violação”. O mesmo autor, em Os deveres

fundamentais... ob. cit., p. 57, reafirma tal consideração: “sistematicamente, o art. 64.º está desligado dos

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de outras normas para que se estabeleça a responsabilidade), tentar-se-á delimitar com maior precisão as concretizações da ilicitude e da culpa. A questão é normativamente relevante, não apenas por razões de sistemática, mas também pelas consequências normativas que encerra.

Considerável doutrina examina que no art. 72.º, n.º 1, do CSC, presume a culpa dos administradores pelos danos causados à sociedade (com preterição dos deveres legais ou contratuais), mas não presume a ilicitude, como observa ELISABETE RAMOS: “contra comportamentos ilícitos pode haver legítima defesa, mas não contra comportamentos culposos” 63. Assim, neste entendimento, a supracitada Autora considera que o artigo 64.º, n.º 1, consagra deveres legais dos quais são extraíveis «deveres objetivos de conduta», o que cumpre dizer que uma vez violados tais preceitos, o comportamento dos administradores será ilícito 64. Acrescenta ainda, que este entendimento não impede o afastamento sistemático entre o artigo 64.º e 72.º, pois, o intérprete, ao convocar o elemento sistemático, deve atender às conexões entre diversas normas; portanto, o artigo 64.º releva para efeitos de ilicitude e, conjugado com os restantes pressupostos exigidos pelo artigo 72.º, determina a responsabilidade dos administradores perante a sociedade.

Desse modo, a partida, os administradores apenas serão responsabilizados se tiverem sido culposas suas ações e / ou omissões (art. 72.º, 1, do CSC). Entende-se, dessa maneira, que as ações imputadas consoantes o risco empresarial não serão incluídas no âmbito da responsabilidade dos administradores. Esta classe de risco deve ser suportada pela sociedade, e logo a seguir pelos sócios que podem ver os seus investimentos desvalorizar 65. Importa, no fundo, proceder a uma concretização do dever de atuar com a diligência do gestor criterioso e ordenado, e com ele, simetricamente, da ilicitude. A este juízo não interessam as capacidades individuais para o desempenho das funções de administração: quem assume essa função, tem de possuir as aptidões próprias para tal – se necessário, assegurar-se previamente de que dispõe delas – e ater-se ao que por elas é exigido enquanto investido nessas funções. Essas capacidades devem, aliás, ser medidas relativamente ao tipo de sociedade que está em causa e não em abstrato 66.

COUTINHO DE ABREU & ELISABETE RAMOS 67 enfatizam veementemente

63 Cfr, R

AMOS. Maria Elisabete Gomes. O seguro...ob. cit.., p. 112.

64 No mesmo sentido, F

RADA, Manuel António Carneiro da. Direito Civil, Responsabilidade Civil – o

método do caso, Almedina: Coimbra, 2006, p. 119: «Cremos que o art. 64 contém um critério, não apenas

de culpa, mas, desde logo, de ilicitude. A diligência de um gestor criterioso e ordenado é um padrão abstracto e genérico da conduta, estabelecido por aquilo que é em média exigível de quem administra, e, por isso, independente de saber se o concreto gerente ou administrador podia em certa situação específica observá-lo, em termos de ser susceptível, se o não fez, de uma censura pessoal».

65 Os sócios, por sua vez, podem usar-se dos instrumentos processuais cabíveis para buscar a

responsabilização dos administradores, v.g., a ação de responsabilidade proposta por sócios, constante no art. 77.º do CSC.

66

Cfr. FRADA, Manuel António Carneiro da. Direito Civil, Responsabilidade Civil – o método do caso, Almedina: Coimbra, 2006, p. 120.

67 Cfr. A

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no sentido de consagrar a presunção de culpa inserida na parte final do n.º 1, do art. 72.º do CSC, numa ligação direta ao padrão geral de apreciação da culpa dos administradores em decorrência da (abstrata) “diligência de um gestor criterioso e ordenado” (art. 64.º, 1, a)) do CSC. Referem-se, ainda, ao caráter obrigacional da modalidade adotada pela responsabilidade civil dos administradores, que, deflagra a presunção de culpa na inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade-autora de provar a culpa (art. 334.º, 1, do Cciv). Para os referidos Autores a presunção prevista no art. 72.º, n.º 1, não abrange a ilicitude. Pois, se for entendido que o preceito consagra também uma presunção de ilicitude, haveria de se intensificar, por via interpretativa, o risco de responsabilidade civil dos administradores. Consequentemente, bastaria à sociedade alegar e provar a ação/omissão dos administradores adequada a produzir um dano e daí extrair-se-iam as presunções de culpa e de ilicitude. Em termos práticos, a consequência jurídica deslocaria o regime jurídico-societário da responsabilidade civil pela administração do universo da responsabilidade subjetiva para aproximar da responsabilidade objetiva.

Contrariando ABREU & RAMOS, MENEZES CORDEIRO concorda com a presunção de culpa do n.º 1, do art. 72.º, porém sublinha o conteúdo da presunção de ilicitude na mesma norma. Salienta que a presunção de culpa envolve a de ilicitude. Enquanto ABREU & RAMOS defendem que a presunção de ilicitude aproxima à responsabilidade subjetiva, CORDEIRO afirma que a presunção de ilicitude está embutida na presunção de culpa. É o próprio “esforço exigível” do gestor “criterioso e ordenado”, «o que é natural, uma vez que a culpa e a ilicitude são, na responsabilidade obrigacional, incindíveis» 68.

Na clássica doutrina de RAÚL VENTURA e LUÍS BRITO CORREIA 69, não é correto abordar a questão da falta de diligência no âmbito da apreciação da culpa. Assim, há que, antes de mais, ter em conta, ao falarmos de ilicitude, estamos a falar do ato concreto que não corresponde ao devido, enquanto que, quando nos referimos à culpa, estamos a iludir ao juízo de censurabilidade pela prática de um ato que não é devido. Segundo os referidos Autores, a avaliação de um determinado ato, como violador do dever de diligência determina a sua ilicitude; a culpa será analisada posteriormente. Assim, explicam, que em termos de ilicitude, e uma vez que é impossível definir exaustivamente quais são os deveres dos gestores, o recurso ao dever de diligência possibilita estabelecer uma linha de orientação, estabelecer um padrão de atuação ao qual há de reconduzir os atos concretos. Violado que seja tal critério padrão, praticará o gestor um ato ilícito. Por outro lado, há relevo igualmente em sede de culpa. Usando do padrão da diligência de um gestor criterioso e ordenado, pode-se concluir se um determinado ato violador de certo dever, i.e., se um determinado ato ilícito será ou não culposo, na medida em que seria ou não praticado por um gerente (administrador) Código das Sociedades Comerciais em Comentário, IDET, n.º 1, Almedina: Coimbra, 2010, p. 842.

68

Cfr. CORDEIRO, António Menezes. Código das Sociedades Comerciais anotado, 2011, p. 279.

69

Cfr. VENTURA, Raúl; CORREIA, Luis Brito. “Responsabilidade civil dos administradores de sociedades anónimas e dos gerentes de sociedades por quotas – estudo comparativo dos direitos alemão, francês, italiano e português”, in: Boletim do Ministério da Justiça, n.º 192, janeiro de 1970, Portugal, p. 95 e ss.

37 criterioso e ordenado 70.

A culpa exprime a censura dirigida ao agente e constitui, justamente, um dos «princípios da imputação» convocados no nosso sistema jurídico. Outros fatores importantes para aferir a culpa dos administradores, são, nomeadamente, a posição ocupada no conselho de administração (executivo ou não executivo) ou a capacidade efetiva de acesso à informação (v.g. quanto aos pelouros de que outros administradores se encontram especialmente encarregados) 7172.

2.2.1. O risco empresarial

Como foi visto supra, as ações imputadas consoantes o risco empresarial não serão incluídas no âmbito da responsabilidade dos administradores – em geral – tendo em vista que esta classe de risco deve – regra geral – ser suportada pela sociedade, e medianamente pelos sócios, que podem ver os seus investimentos desvalorizar. CARNEIRO DA FRADA, discorrendo acerca da particular especificidade em que se submetem os administradores, explica: «os deveres de boa administração reflectem a tensão entre a necessidade de preservar a integridade do património social, ou o acquis do empreendimento societário, e a de corresponder com o devido dinamismo aos impulsos de evolução da vida societária e empresarial. No seu conteúdo se repercute igualmente o objectivo e o fim social, que requerem uma constante e renovada fixação de orientações, uma direcção estratégica e táctica – de política de negócios, de gestão do risco, de organização interna da empresa, etc. – destinados a permitir a sua realização. No desempenho de suas funções de direcção, os administradores gozam de autonomia, dispondo de espaços amplos de livre apreciação. A responsabilidade civil respeita-o» 73.

A atividade empresarial é arriscada e não implica responsabilidade pelo resultado. Porém, isso não significa que o exercício da administração não esteja circunscrito aos limites da função. Nessa esteira, a autonomia funcional, lastreada na lei e nos estatutos (e demais instrumentos de proteção), impende aos administradores o respeito ao princípio da igualdade entre sócios, a divisão de competências entre os órgãos sociais, à obtenção de informações razoavelmente exigíveis para uma decisão conscienciosa – aludindo-se à business judgement rule. Por conseguinte, apreciados tais considerações, a responsabilidade tende a ser insindicável no exercício da administração.

70 V

ENTURA, Raúl; CORREIA, Luis Brito. “Responsabilidade civil dos administradores de sociedades anónimas e dos gerentes de sociedades por quotas – estudo comparativo dos direitos alemão, francês, italiano e português”, in: Boletim do Ministério da Justiça, n.º 192, janeiro de 1970, Portugal, p. 95 e ss.

Vide em CUNHA, Tânia Meireles. Da responsabilidade dos gestores de sociedades perante os credores

sociais: a culpa nas responsabilidades civil e tributária, p. 44.

71 Cfr. R

AMOS, Maria Elisabete Gomes. ob. cit., p. 120.

72 Na doutrina civilista, vale recortar os ensinamentos de A

LMEIDA COSTA a respeito da ilicitude e da culpa: «Pode-se dizer que a ilicitude encara o comportamento do autor do facto sob um ângulo objectivo, enquanto violação de valores defendidos pela ordem jurídica (juízo de censura sobre o próprio facto); ao passo que a culpa pondera o lado subjectivo desse comportamento, ou seja, as circunstâncias individuais concretas que o envolveram (juízo de censura sobre o agente em concreto». Cfr. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina: Coimbra, 2009, p.579.

73 Cfr. F

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É possível, pois, pensarmos em algum método para verificar a responsabilização dos administradores com base no risco empresarial? Expomos o seguinte esquema:

Figura 1: Esquema representativo do risco empresarial

Com base na ilustração acima colocamos as seguintes premissas:

a) o sucesso financeiro de uma organização empresarial só é alcançado mediante práticas de comportamentos arriscados; b) os administradores operacionalizam decisões com base no risco empresarial; c) na análise destas decisões (arriscadas) os administradores devem observar os deveres adstritos às suas funções; d) a culpa é a medida ultrapassada do risco empresarial permitido pela interpretação das normas jurídicas.

As ações arriscadas podem ser tomadas no contexto da observância dos deveres dos administradores – e, portanto, consideradas lícitas. Do mesmo modo, pode ser decidida fora destes parâmetros, ocasião em que se constata a culpa. No último caso tem-se o exemplo de decisões sem o devido cuidado à realidade financeira da empresa, e do resultado desta advir prejuízos à própria e consequentemente a terceiros. É possível que o risco empresarial transpassasse da organização (questões financeiras) para o decisor (negligente).

Pode-se entender em sentido semelhante, que as decisões operadas sob o risco empresarial são lícitas, visto que o Direito permite tais situações. E, partindo desta perspetiva, há uma excludente de ilicitude. Onde há licitude não há responsabilidade, pelo menos no domínio da responsabilidade subjetiva (e desta responsabilidade se trata). Ao contrário da responsabilidade objetiva, onde a licitude pode ensejar a responsabilidade 74.

As normas jurídicas funcionam nestes casos, não com o uso da coadunação de

74 Sobre a diferença da aplicação da responsabilidade subjetiva e objetiva na esfera da responsabilização

dos administradores, ULHOA COELHO faz comentário que esclarece basicamente o porquê da responsabilidade dos administradores ser subjetiva. Dessa maneira, destaca a diferença entre comportamentos ilícitos e lícitos. A responsabilidade subjetiva estaria na comprovação de comportamentos ilícitos, enquanto a responsabilidade objetiva necessariamente pode incorrer em virtude de comportamentos lícitos, bastando tão somente a constatação do dano. Cfr. COELHO, Fábio Ulhoa.

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factos às regras legais (tão-só), mas antes deverão ser interpretadas no sentido de contextualizar o comportamento dos decisores (administradores) à observância dos deveres societários, e se tais decisões assentam num contexto de equilíbrio entre a realidade dos factos juridicamente aceitáveis ou reprováveis nas relações jurídico- empresariais. A verificação do desequilíbrio entre o aceitável e o reprovável marcará a medida de culpa (consequentemente, de responsabilidade).

2.3. A responsabilidade dos administradores perante a sociedade no direito