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Fundamentos e ligação com a responsabilidade societária

5. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E A

5.1. Fundamentos e ligação com a responsabilidade societária

Em questões terminológicas, o termo originário que configura os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica 221 assenta na ideia do disregard of corporateness (desconsideração da personalidade) ou disregard of the legal entity, bem como no piercing the corporate veil, do Direito Anglo-saxónico, mais especificamente no direito norte-americano. No Direito Alemão, elegeu-se a fórmula Durchgriff ou

221

Vide ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Curso de Direito Comercial, Vol. II, 4.ª ed., Almedina: Coimbra, 2011, p. 180-187, e “Diálogos com a jurisprudência, II – responsabilidade dos administradores para com credores sociais e desconsideração da personalidade jurídica”, in Direito das Sociedades em

Revista, ano 2, vol. 4, Almedina: Coimbra, março 2010, p. 49-64, onde conceitua a desconsideração da

personalidade jurídica das sociedades como a «derrogação ou não observância da autonomia jurídico- subjectiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respectivos sócis» (p. 55); ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Comercial – vol. IV – Sociedades Comerciais . Parte Geral, Lisboa, 2000, p. 74-90, na p. 75 prescreve que «sob a referência do disregard of legal entity, as sociedades eram incorporated, e portanto personificadas, por um acto individual de concessão por parte do poder político. A personalidade era tendencialmente vista como uma ficção. Compreendia-se assim que, quando se afastassem dos limites daquela concessão, os sócios pudessem ser responsabilizados pessoalmente. Fala-se então em desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva: “afasta-se o véu da personalidade»;

RIBEIRO, Maria de Fátima. “Desconsideração da personalidade jurídica e a ‘descapitalização’ da sociedade”, in: Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano LII, n.º 3-4, julho-dezembro, 2011, Almedina: Coimbra, p. 173-213; CORDEIRO, Pedro. A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades

Comerciais, 2.ª ed., Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2005. p. 56: «a desconsideração consiste,

assim, na correção de uma primeira imputação, ou, dito de outro modo, na correção das consequências jurídicas decorrentes de um princípio jurídico de carácter geral. O ponto de partida da desconsideração é, portanto, a constatação de que a pessoa colectiva foi abusivamente utilizada pelos seus membros, sendo, contudo, controversos os seus pressupostos a partir dos quais se deverá considerar abusiva certa utilização»; Ao contrário dos autores retrocitados, CORDEIRO, António Menezes, preferindo o termo “levantamento da personalidade coletiva”, defende razões terminológicas da língua portuguesa, conforme seu ensaio O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial, Almedina:Coimbra, 2000, p. 103; Na doutrina espanhola também se segue a nomenclatura do “levantamento del velo”, cfr.

BOLDÓ RODA, Carmen. “Levantamiento del Velo y Persona Jurídica en el Derecho Privado Español”, in:

Revista Derecho de Sociedades, n.º 5, Editorial Aranzadi: Cizur Menor, 2000; ANGEL YÁGÜEZ, Ricardo.

La doctrina del «levantamiento del velo» de la persona jurídica en la jurisprudencia, 4.ª ed., Civitas,

Madrid, 1997, e cuja síntese memorável descreve “el levantamiento”: é o «desentendimiento de personalidad jurídica (disregard of legal entity), esto es, la técnica judicial consistente en prescindir de la forma externa de la persona jurídica y, a partir de ahí, penetrar en la interioridad de la misma, “levantar el velo” y así examinar los reales intereses que existen o laten en su interior. En suma, adentrarse en el seno de la persona jurídica (su substractum, como dicen nuestra doctrina y nuestra jurisprudencia), para de ese modo poner coto a los fraudes y abusos que por medio del “manto protector” de la persona jurídica se pueden cometer» (p. 44); SUÁREZ ROBLEDANO, José Manuel. “Utilización abusiva y fraudulenta de las personas jurídicas en el Derecho: algunas notas”, in Revista Julgar, n.º 9, Editora Coimbra, set-dez., 2009, p. 191-202; VICENT CHULIÁ, Francisco. Introducción al Derecho Mercantil, Tirant lo blanch: Valencia, 1998, p. 195-196 ; cfr. SERRA,Catarina. “Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)”, in: Revista Julgar, n.º 9, set-dez., 2009, p. 111-130, a Autora utiliza-se do termo “afastamento da personalidade jurídica”. TRIUNFANTE, Armando Manuel &

TRIUNFANTE, Luís de Lemos. “Desconsideração da Personalidade Jurídica – Sinopse doutrinária e Jurisprudencial”, in Revista Julgar, n.º 9, set-dez. 2009, p. 131-146.

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Durchgriff bei juristischer Personen: significando “penetração” ou “penetração nas pessoas coletivas”.

De partida, importa salientar que a existência de pessoas coletivas (ou jurídicas, conforme a defesa teórica) 222, permite limitar a responsabilidade patrimonial e isentar a responsabilidade dos administradores e agentes económicos das consequências dos atos imputáveis à pessoa coletiva. Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica aparece como instrumento de “superação” 223

do património coletivo, afastando 224 os limites do princípio da separação patrimonial (Trennungsprinzip) imanente às sociedades empresariais, e, entretanto, “tocando” no património pessoal dos sócios / administradores 225, o que constitui por decorrência, na consumação da responsabilidade ilimitada.

O que se analisa diante deste instrumento jurídico, são os fatores que contribuem para a separação do património resultante da atividade económica da sociedade de o património pessoal dos sujeitos ligados a esta sociedade, de forma a buscar o afastamento da entidade em causa e atingir os sujeitos que compõem o seu substrato. E em conformidade com isto, caberia lugar a “desconsideração” sempre que, por fora de circunstâncias imprevisíveis, ou excecionais, fosse necessário “subverter” as características essenciais naturais ou típicas destas entidades 226.

Certo é que o assunto tratado entrará sob o âmago da autonomia da personalidade jurídica, cujo pressuposto básico é de que no direito societário as sociedades comerciais gozam do princípio da autonomia patrimonial, o que representa a distinção da sociedade (que possui autonomia) da de seus sócios. Sem embargo, indaga-se: Caberá a relativização do princípio fundamental da autonomia patrimonial da pessoa jurídica?

Em teorização CATARINA SERRA defende uma “perspetiva não absolutizadora” ou uma “conceção substancialista” da personalidade das sociedades comerciais e outras pessoas coletivas ou jurídicas, e, portanto, deve-se relativizar a noção de pessoa jurídica

222 Sobre os fundamentos da terminologia “pessoa coletiva” em Portugal, vide “Capítulo I – A

personalidade Colectiva”, p. 17-21, de CORDEIRO.António Menezes. O levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, Almedina: Coimbra, 2000.

223 Nomenclatura adotada por G

ALVÃO TELLES, mas não difundida em Portugal, apud CORDEIRO, António Menezes. O levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, Almedina: Coimbra, 2000, p. 39.

224 Cfr. S

ERRA, Catarina. “Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia

patrimonial)”, in: Revista Julgar, n.º 9, set-dez., 2009, preferiu adotar o termo “afastamento da personalidade jurídica”; no entanto, em Portugal o termo “desconsideração” da personalidade jurídica é amplamente aceito e utilizado, motivado pela influência do Direito Brasileiro que por lá adota este termo com base na tradução literal do disregard.

225 Nas palavras de S

ERRA, Catarina. últ. ob. cit. p. 128: «em primeiro lugar – e acima de tudo –, os sujeitos afectados são os gerentes ou administradores, de direito ou de facto, das sociedades e não os sócios (ou pelo menos, não nesta qualidade), faltando, pois, aquilo que é típico do afastamento: o intuito de punir os sujeitos que constituem o substrato pessoal da sociedade, que formam e manifestam os interesses e a vontade da sociedade (o “homem oculto” atrás do ente societário)».

226 Nesse sentido, S

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ou coletiva. Fundamenta-se a A., para lá das vertentes jurídicas apontadas 227, na noção de que a sociedade é sempre resultado da vontade dos sócios (desde a sua constituição e durante o seu funcionamento).

Sabe-se que, historicamente, os motivos que levaram a consecução da desconsideração da personalidade jurídica se pautavam na responsabilização pessoal dos sócios por realização de interesses alheios àqueles que são peculiares ao ente societário, e funcionava como um safety valve (válvula de segurança) do sistema para combater ou sancionar certos comportamentos tidos como antijurídicos, v.g. fraude à lei, ofensa à boa fé, iniquidade, fraude contra credores, fraude a obrigação contratual, (corrente norte-americana desde a segunda metade do séc. XIX); e no contexto continental, com a tese de SERICK 228, de 1955, foi apresentado o critério fundamental da desconsideração da personalidade jurídica pelo abuso de forma jurídica (ou abuso da pessoa jurídica).

É de se destacar que a figura da desconsideração da personalidade jurídica não está normatizada no sentido legislativo em Portugal, tem, contudo, seu respaldo na doutrina e jurisprudência nacional 229, sendo por isso, um instrumento utilizado com certa parcimónia.

Entretanto, o seu conteúdo é merecedor de estudos e de referências no campo da responsabilidade dos administradores, e, não obstante, é objeto de comparação com os institutos da responsabilidade direta dos administradores, elencados no CSC. Tal motivo leva-nos a estudá-lo tendo em conta o complexo campo da responsabilização dos administradores, e ainda, como meio de identificação dos institutos no que concerne à pedagogia jurídica.