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7 Análise e resultados

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais (páginas 172-178)

Uma das dificuldades durante a análise diz respeito às interferências da lín- gua portuguesa nos julgamentos. A decisão sobre ser nome/verbo, singular/plural, flexão/derivação é, sem dúvida, atravessada por noções prévias que não tomam línguas de sinais como referência.

Para além das intromissões conceituais, vale ressaltar, também, que mesmo na construção prévia dessas definições há dilemas sem solução. Em Câmara Jr. (1970, p. 71) vemos que “os morfemas gramaticais de derivação não constituem [...] um quadro regular, coerente e preciso”. Segundo o autor, os casos de deriva- ção são não obrigatórios e não se aplicam a todas as construções. É o caso, por exemplo, de verbos como refazer, que pode ser dito de outra forma, como tornei a

fazer, e não pode ser replicado em outros verbos análogos, como redizer*, reser*, reaparecer*.

Basílio (2005, p. 12) também problematiza a distinção flexão/derivação apontando o caso complexo das formas do particípio e gerúndio em Português. Exemplos como perdido, formando, cursando, deslizam entre a função de verbo e nome, a depender da construção. Veja o exemplo abaixo em que (a) a palavra destacada apresenta a forma verbal e (b) apresenta a forma nominal.

a. Achei que tinha perdido a chave. b. Esse garoto é um perdido.

Desta feita, antes de partir para os dados, tenhamos em mente a afirmação de que

[...] a questão toda parece resolver-se no plano do sentido e da função sin- tática que as formas [...] assumem nos enunciados. Considerados isolada- mente são apenas possibilidades de sentido, de classificação morfológica e de funções sintáticas – possibilidades que se atualizam e se efetivam no interior das enunciações (Duarte, 2008, p. 202-203).

Inicialmente, percebamos a inevitável influência do Português na transcri- ção em glosas. Se forma nominal ou verbal, qualquer opção de registro se configu- ra em decisão arbitrária, ainda que siga protocolos de anotação convencionados. Naturalmente, as convenções têm o intuito de amenizar as contaminações alóge- nas aos dados, mas o aparato escrito nos submete à imposição da força da letra.

Seguidamente, ao olharmos para os sinais em seu contexto de uso, sentimos a necessidade de tomar a construção do enunciado, como forma de nos dar supor- te para as afirmações assumidas. Nesse momento, destaca-se a importância de se tomar como referência os dados da língua em uso, ao invés de traçar julgamentos

de introspecção sujeitos às impressões que temos sobre as línguas que utilizamos e ao conhecimento linguístico construído em torno delas. Abaixo (Tabela 1), temos as transcrições dos trechos em que cada sinal ocorre, destacando (em sublinhado) os elementos imediatamente anteriores e posteriores aos sinais alvo (em negrito), bem como as características prosódicas consideradas relevantes para as marcas de pluralidade/nominalização em questão e aquelas relacionadas à reduplicação (cf. as convenções de glosa na seção 6).

Tabela 1 – Transcrição dos segmentos alvo da discussão

Glosa Questão Transcrição

MORRER 2 a) ____________bf _________________re [...]MOSTRAR ESTATÍSTICA dup.alt.MORRER+++ dup.CRIANÇA>+>+>+ DIMINUIR[...] b) __hn __re

[...]MOSTRAR AJUDAR DIMINUIR dup.alt.MORRER+++ dup.CRIANÇA>+>+>. c) _____________re _____________bf _______re

dup.CRIANÇA>+>+> dup.alt.MORRER+++ PERÍODO IDADE 0-A-1[...] ACONTECER 5 a) ______bf_re

[...]VAI A-SEGUIR EXPLICAR ACONTECERv+₁v+₂ 1₁-2₂v[...] EXPLICAR 5 b) rh__lh

___re ____________bf/bl ___re VER₁ alt.EXPLICAR+++ IX₁₂₃3₁₂₃ AGORA[...] PAGAR 8 _______________bf hn

[...]IR SHOPPING dup.alt.PAGAR+++++ DEPOIS IR CASA.

PUBLICAR 9 _________bf /REVISTA/ /LIVRO/ [...]POSSÍVEL CONSEGUIR PUBLICAR+>+ DIVERSO+>+ LIVRO LIVRO[...]

Fonte: Autores, 2019.

O primeiro passo foi confirmar a função nominal dos sinais-alvo. Em nos- sa análise, concluímos que apenas o sinal PUBLICAR (9) não se configura como nome, embora esteja reduplicado, o que, segundo a literatura, deveria indicar nominalização. Tal conclusão, ao menos no que diz respeito ao exemplo citado, se deve a dois fatores de ordem prosódica. O primeiro se refere ao constituinte sintático demarcado prosodicamente pelo espraiamento da mão não dominante, configurando o sintagma verbal (VP). O segundo, ao ENM elevar sobrancelha ou

franzir testa (re ou bf12), que parece apresentar um padrão, se observarmos os de-

mais exemplos explicitados a seguir. A fronteira entre os constituintes prosódicos se inicia em DIVERSO, demarcando a função de complemento (CP) da locução verbal CONSEGUIR PUBLICAR, reafirmando, portanto, sua função verbal. Vale mencionar que Hunger (2006 apud Pfau, 2012, p. 90), aponta a duração dos verbos como tendo o dobro do tempo dos nomes, aspecto não observado nesse estudo.

Os demais sinais-alvo, por indicarem “processo” e não “coisas”, poderiam de imediato indicar verbo. Conforme Haspelmath (apud Pfau et al., 2012, p. 85),

[...] a classe de palavra que inclui maior número de itens para coisas e pes- soas é chamada de nome; a que inclui maior número de palavras para ações e processos é chamada de verbo [...]. As exceções são normalmente marca- das por derivação afixal. Esse método assume, implicitamente, algum tipo de base semântica para a classificação das palavras e a toma como universal.

A distinção, contudo, não é tão simples, como visto no exemplo 9. Olhando para os demais sinais-alvo em análise, todos (com exceção de 2.b, 5.a e 9, como já visto) estão marcados com o ENM bf. Esta marcação engatilha a função nominal, o que pode ser claramente observado em 2.c, em que o sinal-alvo aparece após, e não antes (como em 2.a e 2.b) de outro nome. Sintaticamente, a posição do si- nal-alvo 2.c o enquadraria em função verbal, não fosse o ENM reconfigurando a função.

Os sinais-alvo 2.b e 5.a possuem ENM neutro, mas aparecem imediata- mente após uma fronteira prosódica, posicionando-os como CP de DIMINUIR e EXPLICAR, respectivamente. A re que aparece em posição de fronteira de sinal nesses exemplos parece não produzir efeitos significativos para nossa análise.

Eliminando o exemplo 9 por apresentar forma verbal, seguimos para a aná- lise do plural nos demais nomes. Por apresentarem reduplicação, em tese, todos os sinais-alvo restantes poderiam se enquadrar como casos de nominalização. No entanto, a questão que se pretende responder é se esses nomes estão no plural ou se o processo de derivação se finaliza após concluído, não sendo mais possível marcar essa flexão.

A resposta para tamanha complexidade, provavelmente, está no sinal adja- cente ao sinal-alvo (principalmente no nome que vem depois do sinal-alvo) e no número de reduplicações. Nos exemplos extraídos dos dados, temos que: (i) 2.a e 2.b apresentam casos clássicos de nome pluralizado após o sinal-alvo, por meio da reduplicação do sinal acrescido da mão não dominante (M simultâneo); (ii) 2.c e 8 apresentam uma fronteira prosódica instaurando a entrada de um novo constituinte; e (iii) 5.a e 5.b são seguidos de boias-numerais, com particularidades distintas discutidas mais adiante.

Em 2.a e 2.b, consideramos o sinal-alvo como nomes pluralizados, não pela forma reduplicada, mas pela semanticidade do sintagma. Se CRIANÇA está no plural, semanticamente a “morte” se refere a esse conjunto, e, portanto, pluraliza, ainda que esta marca seja zero, como é o caso em Português de “mortalidade in- fantil”.

No caso de 2.c e 8, apesar dos sinais ocuparem posição de fronteira, as cons- truções são distintas. Em 2.c temos uma estrutura topicalizada marcada por bf. Por fazerem parte de um mesmo referente, aplicamos a mesma assunção disposta em i). Em 8 temos uma fronteira de oração marcada por headnod (hn) proeminente marcada por reduplicação (5x), o que aponta a necessidade de pluralizar. Embora a reduplicação por si só indique flexão de plural, ainda que com menos repetições,

ela também ativa o processo de nominalização, que parece não apresentar distin- ção no que diz respeito ao número de repetições, uma vez que os estudos aqui referenciados apenas consideram se marcado ou não por reduplicação e a duração do sinal como elementos distintivos.

O argumento em 2.a e 2.b tende a anular qualquer explicação alternativa à não existência da marca de plural, no entanto, nos exemplos 5.a e 5.b, vamos explorar a forma, de modo a ampliar a discussão. Partindo da forma, 5.b é o único caso em que o sinal-alvo não se encontra pluralizado. No caso, temos o uso da boia marcada por numerais, mas operando de maneiras diferentes para 5.a e 5.b. No primeiro exemplo, a boia sofre um movimento de cima para baixo ao alterar sua forma do numeral 1 para o 2. Em 5.b, a boia-numeral já aparece preenchida com a forma em número-3. Nesse segundo exemplo, quem sofre a marcação de plural é o apontamento (IX₁₂₃) e não o sinal-alvo, diferente de 5.a, no qual a flexão aparece no sinal-alvo a partir do M de cima para baixo (V), marcando no espaço os elementos que virão em seguida (numerais 1, 2...) e estabelecendo a concordância, muito mais pelo deslocamento no espaço do que pela reduplicação (2x).

Desse modo, dos nomes aqui selecionados como objeto de discussão, EX- PLICAR é o único exemplo de sinal que sofreu um processo de reduplicação ape- nas para nominalização, sem flexionar para plural, se esse for o percurso normal do processo de gramatização de EXPLICAR na forma nominal. Os demais segui- ram se transformando para expressar pluralidade, seja concordando com o nome adjacente (normalmente posterior, com exceção da construção topicalizada) ou excedendo o número de repetições na reduplicação.

8 Conclusão

Algumas perguntas nortearam nossa discussão. A primeira delas, âncora e geradora das demais, indaga: se é o efeito de reduplicação que determina a deriva- ção em Libras, pelo menos para alguns nomes, qual é a estratégia de pluralização adotada para esses nomes?

Dos dados analisados, percebemos que o entendimento da pluralização de itens nominalizados depende de alguns fatores, tais como: se o item subsequente está pluralizado (ou o antecedente, no caso do sinal-alvo estar topicalizado); se o item nominalizado concorda espacialmente com o item subsequente demarcado em mais de um ponto referencial; ou se reduplica além do número default (3x). Neste último caso, a pluralidade se confirma e reafirma a assunção de que posições prosódicas proeminentes aumentam o número de repetições.

Questionamos se a diferença de significado criada pelo M numa redupli- cação é resultante da adição de afixo(s) ou se pode ser encarada meramente como um processo. Do nosso ponto de vista, a estratégia é afixal. Embora nossa leitura não deva se confundir com a ideia de morfema em línguas orais, a noção de acrés- cimo se confere pela adição da mão não dominante em sinais com uma mão e mesmo na adição de movimentos, como na reduplicação.

E, por fim, como parte da análise, tentamos compreender se todo sinal reduplicado apresenta função nominal. Dentre os extraídos aqui, não. A relação sintática se torna essencial para esse tipo de conclusão, reforçando a afirmação de Duarte (2008), em que o plano sintático e semântico oferece respostas mais con- sistentes que o plano morfológico isoladamente. Temos, portanto, a morfossintaxe operando nessa análise. Além disso, certificamos que as marcas prosódicas não podem ser negligenciadas em estudos sobre pluralização. A consideração desses elementos foi inevitável em nosso estudo.

Como dificuldade, destacamos os desafios da transcrição, os limites de re- gistro da multiarticulação e a necessidade de cruzamento de dados coocorrentes. Estes são, sem dúvida, pontos vulneráveis para pesquisas com línguas de sinais, no sentido de estarem sujeitos a maior número de atravessamentos e de não serem acurados o suficiente para garantir maior precisão de resultados.

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