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1 Pressupostos teórico-metodológicos

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais (páginas 195-200)

Este estudo se insere no campo disciplinar geral da Linguística Aplicada (LA) numa perspectiva abrangente, com interlocução com os Estudos da Tradu- ção e da Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS), como um campo específico do conhecimento acadêmico que se relaciona com os Estudos da Tradução (ET) e com os Estudos da Interpretação (EI) e que investiga o fenômeno da tradução e do traduzir, da interpretação e do interpretar, envolvendo pares linguísticos intermo- dais (línguas de modalidade oral-auditiva e de modalidade gestual-visual) (Santos, 2010, 2013; Rodrigues, Beer, 2015).

Com relação à especificidade das atividades de tradução e de interpretação, a tradução de textos acontece a partir de um texto escrito em uma língua de parti- da, com tempo considerável para execução de seu trabalho, possibilidade de con- sulta a dicionários, sendo possível a qualquer momento fazer revisões e ajustes no texto na língua de chegada; já a atividade de interpretação simultânea normalmen- te acontece entre textos falados (em língua oral ou de sinais), no momento em que se realiza a produção do texto de partida, em um dado espaço e tempo limitados, e lida com o texto em sua versão final no momento em que é enunciado, conforme apontam Venuti (2012), Romão (1998), Pagura (2003) e Pöchhacker (2005), refe- rindo-se aos processos envolvendo apenas línguas orais, e Cokely (1992a, 1992b), Rodrigues e Beer (2015), Rodrigues (2013), Nascimento (2016) e Nogueira (2016), referindo-se aos processos envolvendo língua de sinais.

Em relação à atividade de ILS em espetáculos teatrais como uma tradução ou interpretação, Richardson (2017) afirma que “não há uma base teórica clara para dar suporte à prática de tradução durante a interpretação de espetáculos” (p. 49, tradução nossa)2. Entretanto, o autor afirma que a interpretação de língua

de sinais no teatro está entre dois enquadramentos, a saber o da tradução e o da interpretação. Nesse mesmo entendimento, Rigo (2014b, não paginado) relata que

2 No original: “There is no clear theorical basis on which to ground translation practice within theatrical interpreting”.

mesmo que a tradução e a interpretação sejam consideradas como processos distin- tos, a atuação dos ILS no contexto de espetáculos teatrais deve ser considerada um

[...] trabalho híbrido, uma vez que os tradutores-intérpretes de línguas de sinais realizam a prática partindo de uma tradução – necessária e inicial no intuito de estudo e preparação do texto e da performance – chegando à

interpretação em si, que ocorre em tempo real, no momento em que a peça

é apresentada ao público (Rigo, 2014b, não paginado).

Sobre as relações com a tradução e com o cruzamento entre culturas, Ri- chardson (2017) comenta, que “um texto em cena normalmente incorpora in- formação auditiva através da música, efeitos sonoros e sotaques, que requer uma tradução intersemiótica para a língua de sinais assim como uma possível transpo- sição cultural [...]” (p. 50, tradução nossa).3 Assim, para discutir desafios tradutó-

rios na interpretação de espetáculos teatrais para uma língua de sinais, assumimos que lidamos com aspectos relacionados à tradução interlingual (Jakobson, 2010), intermodal (Segala, 2010) e intersemiótica (Plaza, 2013), visto que trabalhamos com a tradução de um texto originalmente pensado para uma cena, com a inter- pretação entre duas línguas (português-libras) de modalidades diferentes, sendo uma de modalidade oral-auditiva (português) e outra de modalidade gestual-vi- sual (libras). Todavia, sempre contemplaremos a interface com os Estudos da In- terpretação e entenderemos a atividade do ILS como interpretativa, pois mesmo que o texto de partida da tradução seja um texto escrito em que há possibilidades de ensaios e de se “prever” o que acontecerá em cena, o texto de chegada é cons- truído simultaneamente e visualmente em cena e quando o ILS realiza a enuncia- ção em libras, ele interpreta simultaneamente à apresentação teatral e está sujeito às improvisações dos atores, interações com o público e imprevisibilidades que caracterizam uma atividade de interpretação.

Há de se pontuar também que, neste estudo, tomamos a tradução e inter- pretação de língua de sinais como uma prática discursiva que acontece numa si- tuação concreta de enunciação e que mobiliza discursos inscritos em diversas es- feras da linguagem, conforme a concepção apresentada por Nascimento (2014a), a partir da perspectiva dialógica da linguagem. O autor propõe que a interpretação acontece a partir de gêneros pré-existentes, ou seja, o intérprete, durante sua ati- vidade, mobiliza discursos já inscritos em determinados recortes sócio-históricos e constituídos de um sistema semiótico-ideológico específico. Portanto, em nosso ponto de vista teórico, a língua não é compreendida meramente como um sistema abstrato em que suas formas são analisadas pelo viés estritamente linguístico. Por isso, não observaremos a tradução ou a interpretação da palavra ou da frase de forma isolada, mas o emprego da língua que se efetua em “forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana” (Bakhtin, 2016, p. 11), ou seja, em uma perspectiva enunciativo discursiva.

3 No original: “The staging of a text usually incorporates additional auditory information through music, sound effects and accents, which require inter-semiotic translation into sign language as well as potentially a degree of cultural exchange [...]”.

Teorias de caráter mais formalista dos estudos da interpretação entendem que o intérprete deve trazer na língua de chegada o sentido do que foi proferido na língua de partida. Entretanto, em nossa concepção teórica, não há “um sentido único” a ser compreendido e, portanto, são efeitos de sentidos que são gerados a partir de enunciados discursivos. Segundo Bakhtin (2017), “o sentido é potencial- mente infinito, mas só pode atualizar-se em contato com outro sentido (do ou- tro)”. Ou seja, para o pensador russo não há “sentido em si” e “não pode haver um sentido único (um só). Por isso, não pode haver o primeiro nem o último sentido, ele está sempre situado entre os sentidos, é um elo na cadeia dos sentidos, a única que pode ser real em sua totalidade” (p. 42).

Nas artes, especificamente no teatro, a questão da experiência individual de cada um é reforçada pela subjetividade da cena, por aquilo que o espectador escolhe assistir, para onde direciona seu olhar e pelas relações que faz entre suas experiências pessoais e o que vivencia através da apresentação teatral. Não há, no projeto discursivo de uma apresentação teatral, um sentido único que deve ser compreendido por todos os espectadores, mas a abertura para o diálogo e para os sentidos que cada interlocutor irá elaborar em seu tempo. Se não há na apre- sentação teatral um sentido único, tampouco na interpretação em libras haverá. Ou seja, os efeitos de sentidos gerados a partir de uma apresentação teatral são infinitos e não se esgotam naquele tempo de apresentação ou naquele espaço físi- co em que o espetáculo aconteceu, mas carregam histórias e reverberam infinitas diversidades de interpretações.

Por isso, preferimos e adotamos a ideia de efeitos de sentidos que são gera- dos a partir da relação e da comunicação discursiva. O ILS, atuando nessa ponte discursiva, a partir de seu lugar enunciativo-discursivo, a partir da posição valora- tiva que dá aos interlocutores envolvidos nessa comunicação, a partir dos efeitos de sentido que foram gerados, perpassado pela sua intersubjetividade, no ato in- terpretativo, gera novos efeitos de sentidos. Para Bakhtin (2011),

[...] não se trata do que ocorre dentro, mas na fronteira entre a minha cons- ciência e a consciência do outro, no limiar. Todo o interior não se basta a si mesmo, está voltado para fora, dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com outra, e nesse encontro tenso está toda a sua essência (p. 341, grifo do autor).

No pensamento bakhtiniano, segundo Amorim (2004), a proposta para compreensão desses efeitos de sentidos “propõe uma progressão dialógica que parte do texto e daquilo que existe atrás – os contextos passados – e chega até a frente – presunção e o começo do contexto futuro” (p. 194), o que nos remete à dupla orientação dos gêneros discursivos. E um espetáculo teatral, enquanto ob- jeto artístico, sempre apontará para dentro (conteúdo temático) e para fora (ato sócio histórico).

Assim, uma apresentação teatral nunca será idêntica a outra. A cada dia em que se apresenta um espetáculo, temos um novo enunciado, um novo conjunto de temas. Mesmo que as orações sejam as mesmas (idênticas em sua estrutura

linguística), os locutores (atores) a cada dia são novos, em um novo dia, alterados pelos acontecimentos e da situação daquele dia, assim como os interlocutores/ mediadores (ILS) e os interlocutores espectadores que também serão outros, que reagirão de outra forma aos enunciados, gerando um novo conjunto de temas.

Outro pressuposto teórico-metodológico é o da linguagem verbo-visual, conforme Brait (2010) propõe, como “uma enunciação, um enunciado concreto articulado por um projeto discursivo do qual participam, com a mesma força e importância, a linguagem verbal e a linguagem visual” (p. 194). Para este estu- do, adotamos a dimensão verbo-visual como articulação entre elementos verbais (orais e escritos) e visuais (múltiplas semioses usadas na construção de sentidos), que formam um todo indissolúvel e que são constituídos a partir de uma esfera ideológica que interfere diretamente em suas formas de produção, circulação e recepção (Brait, 2010).

Sobre o teatro, Gonçalves (2013, p. 121) afirma que ele é, “intrinsecamente, uma arte verbo-visual, que se utiliza da dinamicidade da palavra e do movimen- to para se estabelecer enquanto discurso estético”. Portanto, durante o espetáculo teatral, consideramos que há o que Brait (2009) chama de “conjuntos de textos” compostos não só pela dimensão verbal, mas também por diferentes elementos visuais extralinguísticos que compõem a linguagem do espetáculo.

Para refletir sobre a interpretação em libras na esfera artística, mais especi- ficamente no gênero espetáculo teatral, não consideramos como texto de partida meramente o texto oral ou escrito, mas um todo, um conjunto de textos interde- pendentes que só produzem sentidos na relação, enunciados da cena atravessados de textos verbais e visuais, de elementos linguísticos e extralinguísticos. Enten- demos o gênero espetáculo teatral, enquanto objeto artístico, como um projeto discursivo verbo-visual, composto pelo que é proferido pelos atores verbalmente, mas também e de igual importância, pela representação que se dá em cena, pelos objetos e elementos cênicos, pela iluminação, figurino, maquiagem dos atores etc. Assim, o espetáculo teatral apresenta inúmeros desafios para o profissional que atua na interpretação para a libras, pois além das questões de tradução do texto dramático ou do roteiro do espetáculo e do que será proferido oralmente pelos atores, diversos elementos sonoros e visuais compõem a cena no momento em que ela acontece, aspectos que influenciam a compreensão dos interlocutores e ampliam sentidos.

2 Metodologia

Seguimos uma perspectiva qualitativa do tipo analítico-descritiva para ana- lisar quatro espetáculos que contaram com apresentações acessíveis em libras por meio da atuação de ILS com o objetivo de descrever e analisar elementos verbo- -visuais absorvidos pelos ILS durante a mobilização discursiva da cena teatral em português para a libras.

O corpus constitui-se do registro da atuação dos ILS em quatro espetáculos: (i) Hotel Mariana (realizado em 05/07/2017 no Instituto Itaú Cultural); (ii) Ida

(realizado em 15/08/2017 no Instituto Itaú Cultural); (iii) Adeus palhaços mortos! (realizado em 22/08/2017 no Instituto Itaú Cultural); e (iv) A princesinha medrosa (realizado em 03/09/2017 no Serviço Social do Comércio – SESC, unidade San- tana)4. Contamos também com os dados do questionário aplicado aos ILS e com

o material de divulgação ou folder distribuído no dia da apresentação dos espe- táculos. Os critérios para escolha dos espetáculos foram: a) estarem em cartaz com acessibilidade em libras; b) sinopse que apontasse para temáticas diversas; c) público alvo adulto ou infantil; e d) quantidade de atores em cena.

As ILS que atuaram nos espetáculos foram escolhidas pela experiência de mais de cinco anos de atuação profissional e por estarem atualmente com a sua prática voltada para a esfera artístico-cultural. O questionário com 23 perguntas abertas foi pensado para obter informações sobre: a) o perfil das ILS, no que se re- fere à área de formação, ao tempo de atuação como intérprete, às esferas em que já atuaram e à experiência de atuação no gênero espetáculo teatral; b) como as ILS se prepararam para atuar no espetáculo, qual o material recebido para estudo e a pos- sibilidade de acompanhar os ensaios do espetáculo; c) quais as impressões as ILS ti- veram sobre sua atuação, se se sentiram afetadas por algum fator durante a atuação.

Para observar os enunciados produzidos em língua de sinais, ao mesmo tempo em que observamos a cena teatral. Optamos por registrar em vídeo os es- petáculos e a atuação das ILS. Nosso intuito, foi registrar o todo da cena, mas com um olhar focado na produção do enunciado em língua de sinais. O posicionamen- to e enquadramento das câmeras foram alterados de acordo com o espetáculo, com o posicionamento das ILS, com as possibilidades de organização do espaço e com as imposições da instituição. Vejamos como as câmeras foram posicionadas.

Figura 1 – Planta ilustrativa da sala de espetáculos com o mapeamento de posicionamen- to das câmeras e localização das TILS em relação ao palco – Hotel Mariana e Ida

Fonte: elaborada pela autora.

4 Todas as informações sobre as montagens e ficha técnica dos espetáculos encontram-se nas re- ferências bibliográficas desta pesquisa. Doravante, faremos menção aos espetáculos utilizando o nome do espetáculo em itálico, sem a indicação do ano, visto que cada apresentação do espetáculo é única e o ano da montagem não necessariamente corresponde ao ano da apresentação.

Assentos reservados para o público surdo Posicionamento da câmera para registro do espetáculo TILS – Tradutor Intérprete de Língua de Sinais

Câmera 1 Câmera 2

Figura 2 – Planta ilustrativa da sala de espetáculos com o mapeamento de posicionamento das câmeras e localização das TILS em relação ao palco

– A princesinha medrosa.

Fonte: elaborada pela autora.

Para os espetáculos Hotel Mariana, Ida e Adeus palhaços mortos!, os vídeos resultantes do registro das apresentações foram sincronizados pelo software de edição de vídeos Adobe Premier Pro CC, e foi feita a montagem com os fotogramas das três câmeras. Contudo, percebemos que a montagem com os três ângulos ge- rava confusão na visualização dos dados e, por esse motivo, removeu-se o vídeo da câmera 3. Adotamos então a montagem que contempla o enquadramento do todo da cena (incluindo a ILS em atuação) (câmera1) e a imagem dela ampliada no enquadramento frontal (câmera 2).

Figura 3 – Exemplo da montagem e sincronia dos vídeos com 2 câmeras

Fonte: elaborada pela autora.

Na apresentação de A princesinha medrosa, devido às restrições impostas pelo SESC, posicionamos duas câmeras ao fundo da sala, uma com enquadramen-

TILS – Tradutor Intérprete de Língua de Sinais Posicionamento da câmera para registro do espetáculo

Câmera 1 Câmera 2

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais (páginas 195-200)