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A TECNOLOGIA LIBERAL DE GOVERNO: A SOCIEDADE CIVIL E O HOMO OECONOMICUS

Comecemos por definir como Foucault concebe a Sociedade Civil. A seu ver, ela é o correlativo de uma prática de governo “cuja medida racional deve indexar-se juridicamente a uma economia entendida como processo de produção e de troca.” Como tecnologia governamental, a Sociedade Civil procuraria dar respostas à questão de “como governar, de acordo com as regras do direito, um espaço de soberania que tem o infortúnio ou a vantagem, como vocês quiserem, de ser povoado por sujeitos econômicos”. Para o pensador francês, como vemos, é esse o problema central da Sociedade Civil (ou do que se convencionou chamar no final do século XVIII de “nação”). Daí decorre a pretensão de que surja um governo com as seguintes características: que seja onipresente, que obedeça às regras do direito, como também a especificidade da economia. Esse governo deve administrar a Sociedade Civil, a “nação”, e o que será considerado como o “social”

(FOUCAULT, 2008b, p. 403).

Foucault se aplica em mostrar que o homo oeconomicus e a Sociedade Civil são correlatos e, portanto, indissociáveis. Assim sendo, o homo oeconomicus se constituiria numa espécie de ponto abstrato, ideal e integralmente econômico que habitaria, pois, a realidade complexa que caracteriza a Sociedade Civil. Esta última, por sua vez, figura como “o conjunto concreto no interior do qual é preciso recolocar esses pontos ideais que são os homens econômicos, para poder administrá-los convenientemente.” Infere-se, então, que o homo oeconomicus e a Sociedade Civil compõem aquilo que Foucault define como a tecnologia liberal de governo (FOUCAULT, 2008b, p. 403).

Cabe perguntar sobre o que o pensador francês quer indicar quando afirma que a Sociedade Civil é um elemento constitutivo da tecnologia governamental moderna. Para ele, a emergência da sociedade se dá por meio de um complexo feixe de relações de poder, como também das tramas que dele conseguem desvencilhar-se – estabelecimento de “realidades de transação”. Isso quer indicar, por exemplo, que como “realidade transacional”, própria à tecnologia liberal de governo, a Sociedade Civil se estabelece como espaço de autolimitação do governo, na medida em que é indexada ao campo dos processos econômicos (FOUCAULT, 2008b, p. 404).

Visando melhor definir o debate que Foucault procura reconstituir sobre a noção moderna de Sociedade Civil, faremos, a seguir, primeiramente, uma breve apresentação de alguns elementos do pensamento político de John Locke, dando ênfase a sua concepção de Sociedade Civil. Partindo disso, pretendemos nuançar a analítica foucaultiana das mudanças empreendidas no final do século XVIII, que contrastam com as teses de pensadores contratualistas como Locke, na caracterização da Sociedade Civil. A emergência do novo modo de conceber a sociedade trará reflexos significativos à arte liberal de governo.

Como lembra Michaud, são muitas as interpretações do pensamento político de Locke e, exageradas ou não, são tão diversas quanto contraditórias227. Acredita o autor que, apesar do variegado campo de possibilidades de análise descortinado pelos estudiosos do pensamento lockeano, mesmo as teses mais divergentes explorem como

227

Diz Michaud a respeito das várias interpretações da Filosofia Política de Locke: “É ele apresentado como Whig constitucionalista (Laslett), ideólogo da ascensão da burguesia acumuladora (Macpherson), fundador do individualismo liberal (Gough), pensador da vontade geral majoritária pré-rousseauísta (Kendall), advogado do direito natural (Tully, Dunn) ou seu traidor (Strauss).” (MICHAUD, 1991, p. 52).

temas centrais a lei natural, a propriedade e o individualismo. Esses, acrescentamos, fundamentais no estudo do modelo contratualista-liberal de Locke.

Assim como Hobbes e Rousseau, Locke elabora um modelo dicotômico no qual o Contrato Social aparece como o momento de transição entre o estado de natureza e a Sociedade Política. Mas, diferentemente do que pensam Hobbes e Rousseau, para Locke a propriedade é um direito natural e não um direito instituído pela Sociedade Civil.

No estado de natureza idealizado por Locke, os indivíduos são tidos como iguais e gozam, além da propriedade, da liberdade. A vida nesse estado natural conta com “uma lei de natureza, que a todos obriga”, como também com a razão: “[Esta] ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade e posses.” (LOCKE, 1998, p. 384). Podemos perceber que o estado natural preconizado por Locke não é o estado primitivo beligerante tal qual aparece (como vimos) na teoria hobbesiana.

Presente desde o estado de natureza, a propriedade, em Locke, é um direito natural. Levando em consideração que, originariamente, Deus deu tudo a todos, infere o pensador inglês que o trabalho é o dado definidor da propriedade individual228. Temos de ressaltar, contudo, que a primeira propriedade de cada indivíduo é o seu próprio corpo e as forças que ele imprime para transformar e possuir a natureza (Cf. LOCKE, 1998, p. 406-407). Crê o teórico empirista que a propriedade (em seus primórdios) respeite a determinados limites definidos pela razão. Assim sendo, a quantidade de bens produzidos/adquiridos não deveria gerar a penúria, tampouco o desperdício (LOCKE, 1998, p. 412). Todavia, o advento do dinheiro e do comércio (a troca facilitada pelos bens duráveis como a moeda), viabiliza o aumento da propriedade para além do usufruto pessoal e doméstico, o que faz com que a propriedade possa ser ampliada. Isso dá condições para que muitos homens vendam sua força de trabalho àqueles que possam comprá-la –

228 Atentemos para a explicação de Locke no capítulo V de O segundo tratado sobre o

governo, intitulado “Da propriedade”: “Aquele que se alimenta das bolotas que apanha debaixo de um carvalho ou das maçãs que colhe nas árvores do bosque com certeza delas apropriou-se para si mesmo. Ninguém pode negar que o alimento lhe pertença. Pergunto então quando passou a pertencer-lhe: Quando o digeriu? Quando o comeu? Quando o ferveu? Quando o levou para casa? Ou quando o apanhou? Fica claro que, se o fato de colher o alimento não o fez dele, nada mais o faria. Aquele trabalho imprimiu uma distinção entre esses frutos e o comum, acrescentando-lhes algo mais do que a natureza, mãe comum de todos, fizera; desse modo, tornaram-se direito particular dele.” (LOCKE, 1998, p. 409-410).

os sujeitos “mais proprietários”. Fato que introduz certo nível de desigualdade entre os homens (LOCKE, 1998, p. 416-429).

Apesar de imperar uma relativa harmonia e prosperidade no estado de natureza, esse carece de um “juiz comum” capaz de julgar as contendas entre os indivíduos e, assim, dirimir os conflitos no estado natural. No limite, é possível dizer que no estado de natureza lockeano todos os indivíduos poderiam ser juízes, o que, por si só, impõe significativas dificuldades à paz e à estabilidade nesse espaço. A imparcialidade, como também a dificuldade de fazer valer o próprio direito, compõem os motivos das discórdias gerados, sobretudo, pela falta de um poder comum capaz de anular os conflitos evitando, assim, o desencadear da guerra.

Salientamos que o “estado de guerra”, em Locke, não aparece como um momento do estado natural, mas como a sua interrupção229. Daí a necessidade do pacto social entre os indivíduos, que cesse o estado de guerra e dê condições para o surgimento da Sociedade Política. Para o pensador liberal, o Contrato Social é (unicamente) um pacto de associação e não de submissão. Quanto ao poder político instituído com base no Contrato, Locke dirá em O segundo tratado sobre o governo:

Considero, portanto, que o poder político é o direito de editar leis com pena de morte e, consequentemente, todas as penas menores, com vistas a regular e a preservar a propriedade, e de empregar a força do estado na execução de tais leis e na defesa da sociedade política contra os danos externos, observando tão-somente o bem público (LOCKE, 1998, p. 381).

Atentemos para o fato de que, na Carta sobre a tolerância, Locke define o papel do Estado nos mesmos termos expressos em O segundo tratado sobre o governo. Dirá, portanto, que o Estado é uma instituição constituída pelos homens com o objetivo de conservar ou promover os seus bens civis (leia-se: “propriedade”): “Chamo bens à vida, à liberdade, à integridade do corpo e à sua protecção contra a dor, a propriedade dos bens externos tais como as terras, o dinheiro, os móveis, etc.” (LOCKE, 1987, p. 92).

Na Sociedade Política instituída com base no Contrato Social o poder legislativo é o poder supremo, mas fica condicionado à realização

229 Sobre as diferenças entre estado de natureza e estado de guerra, cf. Locke (1998, p. 397-

do “bem comum”230. Já o poder executivo limita-se à execução das leis e à proteção da comunidade231. Locke partilha da convicção de que a “lei”, visando garantir o direito natural na Sociedade Civil, pode limitar os “excessos de liberdade”, ou seja, pode restringir aquelas ações que, em tese, põem em risco os direitos dos demais indivíduos. No entanto, há sempre uma área mínima de liberdade individual que não deve ser violada – “liberdade negativa” (BERLIN, 2002, p. 230-231). Assim sendo, nos termos de Locke, os poderes que surgem com o Estado não devem negligenciar os preceitos pelos quais foram criados: a garantia das liberdades (por exemplo: o direito que o indivíduo tem de escolher o seu próprio credo religioso)232 e a propriedade privada.

Caso os governantes não representem satisfatoriamente a comunidade desrespeitando os direitos naturais, Locke prevê, para tais situações, que o conjunto de indivíduos pode fazer uso do “direito de resistência”. Cabe esclarecer que esse direito visa restaurar, na Sociedade Civil, as condições pelas quais os indivíduos aceitaram o pacto, a saber, a garantia dos direitos naturais. Para tanto, os governantes, os legisladores e as leis positivas devem procurar realizar sempre o que é tido como o “bem comum”. De certo modo, a resistência visa restaurar, recuperar, os direitos na Sociedade Civil. Não se trata, portanto, com a resistência, de negar as cláusulas do contrato ou os poderes instituídos no Estado, mas de se contrapor ao mau uso da “máquina política”.

Conforme Dunn, o direito de resistência proposto por Locke no O segundo tratado sobre o governo é uma contraposição à negligência dos governantes que se negam a exercer o poder como “funcionários” dos cidadãos. Assim, quando o governante trai a confiança que os governados nele depositam, estes podem resistir a sua “tirania” “apelando aos céus”, se necessário, na intenção de resgatar o compromisso da autoridade política com o bem público233 (DUNN,

230 Sobre o poder legislativo, cf. Locke (1998, p. 499-500, 504-508).

231 Locke indica ainda uma terceira modalidade de poder, na Sociedade Política, denominada

como poder federativo. Ela deve tratar das relações externas do Estado: “Este contém, portanto, o poder de guerra e paz, de firmar ligas e promover alianças e todas as transações com todas as pessoas e sociedades políticas externas e, se alguém quiser, pode chamá-lo de federativo.” Acrescenta o pensador empirista que embora este poder se distinga do executivo, é prudente que ambos sejam exercidos pelos mesmos sujeitos evitando, com isto, divergências que poderiam ocasionar desordens e desastres (LOCKE, 1998, p. 516-517).

232

Conforme a Carta sobre a tolerância, o limite da tolerância estatal está em não deixar que os intolerantes gerem a intolerância na Sociedade Civil. Dirá Locke: “A severidade das leis só deveria ser temida pelos criminosos e pelos que atacam a paz civil.” (LOCKE, 1987, p. 120).

233 Para o aprofundamento da noção lockeana de resistência, ver o capítulo XIX de O segundo

2003, 43-44, 53-54, 75-77). Atentemos, agora, para as considerações de alguns interpretes de Locke sobre o modelo de sociedade por ele preconizado.

Se, por um lado, há consenso no reconhecimento do mérito de Locke em refutar o Absolutismo de origem divina proposto por Filmer234 – vigente na maior parte do século XVII na Inglaterra –, por outro, são bastante conhecidas as leituras críticas de sua obra, como a que fez Macpherson. Partindo da noção de “individualismo possessivo”, o autor sustenta que as concepções de sociedade e governo, em Locke, ficam condicionadas ao direito individual natural à propriedade. Ao conceber a transição da propriedade limitada – inicialmente dada por Deus a todos os seres humanos, legitimada pelo trabalho e circunscrita à produção e ao consumo pessoal – à apropriação ilimitada, o filósofo inglês teria legitimado a desigualdade de posses na Sociedade Civil e justificado, como natural, a desigualdade de direitos e da capacidade racional dos homens235. No limite, os membros da classe operária, por sua “inferioridade”, não seriam seres plenamente autônomos na sociedade e, assim, capazes de governar suas vidas com base nos princípios morais vigentes. Nessa perspectiva, o pensamento político do autor inglês seria peça-chave na estruturação e consolidação da moral própria à sociedade capitalista em expansão (MACPHERSON, 1979, p. 209, 233-236).

Macpherson enfatiza que no Estado lockeano a lei está a serviço, sobretudo, daqueles que são “mais proprietários” – que acumulam bens como terras e dinheiro, uma vez que a propriedade não mais se restringe à força de trabalho realizada pelo próprio corpo de cada indivíduo (MACPHERSON, 1979, p. 269). Nesse sentido, a Sociedade Política é tida como a instituição garantidora do pacto estabelecido entre os proprietários. Já o mercado aparece como espaço por excelência da ação autônoma desses “sujeitos-proprietários”, sendo o exercício da liberdade na Sociedade Civil um privilégio desses mesmos indivíduos. O autor canadense vê Locke como um ideólogo do liberalismo e vincula o seu pensamento político às mazelas da sociedade capitalista moderna, a exemplo da desigualdade social e de direitos entre os homens236. Nessa

céus”, cf. o parágrafo 242 do mesmo capítulo (LOCKE, 1998, p. 571-601).

234 No 1º capítulo de O segundo tratado sobre o governo, Locke retoma a crítica feita no

Primeiro tratado ao Absolutismo de Sir Robert Filmer (Cf. LOCKE, 1998, p. 379-381).

235

Por exemplo, a classe trabalhadora não faria parte do corpo político e não viveria uma vida plenamente racional.

236 A respeito das teses de Macpherson sobre Locke (e também sobre Hobbes), pondera

Pocock: o autor canadense vincula necessariamente as teorias políticas inglesas do século XVII com o desenvolvimento do mercantilismo. Mesmo que Macpherson tenha construído um

perspectiva, assevera Macpherson:

Locke foi de fato o manancial do liberalismo inglês. A grandeza do liberalismo do século XVII foi sua afirmação do indivíduo racional livre, como critério para a boa sociedade; sua tragédia foi que essa mesma afirmação era inevitavelmente uma negação do individualismo à metade da nação (MACPHERSON, 1979, pp. 273).

Dumont dirá que não há como negar a novidade da Filosofia lockeana em introduzir o conceito de propriedade como direito natural e o trabalho como o seu fundamento. Ele concorda com Macpherson que alienar a propriedade de seu sentido primeiro possibilitou a justificação da acumulação ilimitada de bens na Sociedade Civil. Na esteira do teórico canadense, acrescenta Dumont que, em Locke, a esfera econômica aparece como uma categoria maior, pois representa o ápice do individualismo, cabendo à ordem política, portanto ao Estado, a garantia da acumulação ilimitada do capital237 (DUMONT, 2000, p. 82- 85).

Em Dois tratados sobre o governo, Locke nega invariavelmente a tese de que a Sociedade Política deva ser regida por um governo de natureza paterna ou despótica238. É possível dizer que os “dois tratados” são, ao mesmo tempo, um “compêndio jusnaturalista” e um “manifesto”

profícuo modelo explicativo, se, num traçado metodológico distinto, tivesse considerado diferentes modos de propriedade e de individualidade, poderia ter chegado a outros resultados, conclui Pocock (POCOCK, 2003, p. 111).

237 Aprofundando a discussão dos dilemas lockeanos expressos no par propriedade-governo

político, afirma Jorge Filho que, conforme O segundo tratado sobre o governo, uma parte da riqueza acumulada deveria ser gasta pelo governo na garantia da segurança das propriedades dos membros da Sociedade Civil. O objetivo do governo seria, ao mesmo tempo, garantir a expansão territorial e assegurar que os proprietários não fossem ameaçados por forças exteriores. Todavia, alerta Jorge Filho, se na teoria lockeana a boa administração governamental é capaz de dirimir os grandes conflitos, nem por isso consegue desfazer a imoralidade da ordem social, que priva de oportunidades e confortos a maioria dos indivíduos, e indispõe entre si aqueles que são mais favorecidos (JORGE FILHO, 1992, p. 122-123; 126).

238 Observemos os argumentos do pensador inglês em O segundo tratado sobre o governo:

“Para tal propósito, julgo não ser descabido estabelecer o que considero como poder político – de modo a distinguir o poder de um magistrado sobre um súdito do de um pai sobre os filhos, de um amo sobre seu servidor, do marido sobre a esposa e de um senhor sobre seus escravos. Por estarem ocasionalmente todos esses diferentes poderes enfeixados num mesmo homem, se este for considerado sob essas diferentes relações, será útil distinguir esses poderes entre si mostrar a diferença entre o soberano de uma sociedade política, um pai de família e o capitão de uma galera. [...] Assim como a usurpação é o exercício de um poder a que outro tem direito, a tirania é o exercício do poder além do direito, a que ninguém pode ter direito.” (LOCKE, 1998, p. 560-561).

contra o Absolutismo, pois negam que o poder divino e o inatismo possam ser os verdadeiros condicionantes do Estado. Salienta Bobbio que a noção de lei natural é peça-chave na formulação do modelo de Sociedade Política proposto por Locke. Assim sendo, o princípio ordenador e a finalidade do melhor governo, efetivados na Sociedade Civil, residiriam necessariamente na conformidade do Estado às leis naturais239 (BOBBIO, 1997, p. 147-152).

Ao nuançar as transformações da concepção de Sociedade Civil, Foucault evidencia que, ao final do século XVIII, é operada uma mudança significativa na forma de concebê-la. Até o início do século, o termo permaneceu muito próximo à caracterização seiscentista presente no pensamento político de Locke. Nessa perspectiva contratualista- liberal, acrescenta o teórico francês, a Sociedade Civil se notabilizava por sua estrutura jurídico-política, ou seja, ela é definida, sobretudo, como o conjunto de indivíduos ligados entre si por meio de um vínculo que é, concomitantemente, legal e político.

Foucault faz alusão ao capítulo VII do O segundo tratado sobre o governo, intitulado “Da sociedade política ou civil”, indicando que o mote da Sociedade Civil é o elo que vincula o ordenamento jurídico à Soberania – condição necessária para a garantia dos direitos naturais dos indivíduos na sociedade. Cumpre observar, aliás, que o que vimos até o

239 A propósito, cabe uma palavra ainda sobre o possível impacto da questão religiosa nos

rumos das teses políticas de Locke. Dando ênfase aos temas da lei natural e do destino do homem, Dunn sublinha que, na Carta sobre a tolerância, Locke visava, em certa medida, se opor às pretensões da política católica de aniquilar a Igreja huguenote. Porém, disso não devemos depreender uma intolerância do filósofo inglês em relação às religiões distantes do seu credo. Movido pelo desejo de liberdade civil e religiosa, acredita Locke que a Sociedade Civil deve ter como prioridade permitir aos homens a realização da vocação à qual Deus os chama. No limite, a Sociedade Civil deveria ser o espaço de realização da vocação de cada um dos sujeitos. Nessa perspectiva, as teses de Locke sobre o indivíduo e sua íntima relação com a lei natural seriam marcadas pela ideia religiosa de que o homem busca realizar durante a vida sua vocação e destino (Cf. DUNN, 2003, p. 27-28; 65-66). O fato de Locke ser um racionalista e a lei natural um atributo da razão, não elimina a possibilidade de que essa lei seja pensada como resultado de uma “iluminação divina”. A lei da natureza, em Locke, expressa um estreito vínculo entre moralidade e religião (YOLTON, 1996, p. 238). Sobre o tema, Dumont acrescenta que a noção de lei natural, na teoria do autor seiscentista, apresenta uma ordem do mundo disposta em três estágios, a saber, Deus, os homens e as criaturas inferiores: “A igualdade caracteriza o estrato humano enquanto a relação entre o estrato superior e o inferior tende a ser pensada como ‘propriedade’”. (DUMONT, 2000, p. 78-79). Vejamos o que diz Locke: “Assim, a lei de natureza persiste como uma eterna regra para todos os homens, sejam eles legisladores ou não. As regras que estabelecem para as ações de outros homens devem, a exemplo de suas próprias ações e as dos outros homens, estar de acordo com as leis da natureza, ou seja, com a vontade de Deus, da qual são a manifestação.” (LOCKE, 1998, p. 506).

momento sobre a noção de Sociedade Civil, em Locke, parece radicar essa perspectiva de análise. Não é demais lembrar que na tradição contratualista do século XVII, da qual Locke participa, não há uma clara distinção entre os termos Sociedade Civil e Sociedade Política.

No capítulo indicado pelo teórico contemporâneo, Locke, ao distinguir a Sociedade Civil de outras instituições (familiar, senhorial), a define nesses termos: “aqueles que estão unidos em um corpo único e têm uma lei estabelecida comum e uma judicatura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias entre eles e punir os infratores, estão em sociedade civil uns com os outros.” No último parágrafo do capítulo, o teórico inglês enfatiza: “Nenhum homem, na