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OS TRÊS DOMÍNIOS DE ANÁLISE E AS NOÇÕES DE GOVERNO E GOVERNAMENTALIDADE

Num olhar retrospectivo sobre a trajetória teórica que empreendeu até o momento, Foucault declara em 1982, no artigo “O sujeito e o poder”, que o seu objetivo fora sempre o de investigar a questão da subjetividade, e não o fenômeno do poder. Para tanto, procurou “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos.” O percurso traçado pelos três domínios investigativos da genealogia do sujeito constitui, ao final, uma ontologia histórica de nós mesmos. Primeiro, em relação à verdade (constituição do sujeito do saber); segundo, em relação ao campo do poder (constituição do sujeito de ação sobre os outros); por

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Isso pode ser verificado na seguinte “resposta” de Foucault a Habermas: “O problema não é, portanto, tentar dissolvê-las [as relações de poder] na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o éthos, a prática de si, que permitirão, nestes jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação.” (FOUCAULT, 2004a, p. 284).

fim, em relação à ética (constituição de agentes morais) (FOUCAULT apud DREYFUS E RABINOW, 1995, p. 231, 262).

A ontologia histórica de nós mesmos é também denominada pelo pensador francês como uma ontologia histórica do presente. Nela, a vinculação entre os três eixos distintos proporciona, por meio da problematização permanente da subjetividade, a crítica sobre nossa experiência constituída historicamente.59 Diga-se de passagem, a interpretação foucaultiana de Nietzsche e também (como analisaremos no último capítulo) de Kant subsidia a genealogia do sujeito que, ao perpassar os âmbitos da verdade, poder e ética, faz o inventário e o diagnóstico dos acontecimentos decisivos, na transitoriedade entre o moderno e o contemporâneo, à constituição daquilo que hoje somos (como indivíduos, grupos sociais,...).

O verbete “Michel Foucault”, escrito pelo teórico francês para o Dicionário dos filósofos (no qual utiliza o pseudônimo “Maurice Florence”), afirma que a teoria foucaultiana ao longo de sua trajetória visou, sobretudo, empreender uma história crítica do pensamento. Nesse intento, procurou realizar a história dos jogos de verdade (suas emergências) inquirindo os processos de objetivação e subjetivação pelos quais se dá a constituição do sujeito. O inventário das práticas individuais e sociais (modos de agir e pensar) subsidiou a análise das tecnologias de poder constitutivas do seu processo de formação. A respeito, afirma Foucault: “é só ao se tentar estudar os diferentes modos de objetivação do sujeito através dessas práticas que se compreende a importância do papel desempenhado pela análise das relações de poder.” Para tanto, seria preciso:

[...] estudar os procedimentos e técnicas utilizados em diferentes contextos institucionais para agir sobre o comportamento dos indivíduos tomados isoladamente ou em grupo, para formar, dirigir e modificar a sua maneira de portar-se, e para impor finalidades à sua inação e inscrevê-la em

59 Conforme Oliveira: “através desses três domínios de genealogia, pode-se redefinir a

modernidade como um projeto mais complexo do que um paradigma sistêmico de verdades, valores e normas associados à Aufkärung do idealismo alemão. Assim, Foucault não se oporia à qualificação da modernidade como ‘um projeto incompleto’, embora recuse-se a identificá- lo, com o faz Habermas, com um programa esclarecedor de emancipação. Afinal, verdades, valores e normas são constituídos como objetos epistêmicos, teorizados, precisamente porque são constitutivos de uma subjetividade ético-política. Esta tríplice problemática, que Habermas utiliza contra o projeto foucaultiano, longe de traduzir uma atitude anti-modernista ou antes de ser rotulada de pós-moderna, constitui na verdade a maior contribuição de Foucault para uma crítica permanente da modernidade.” (OLIVEIRA, 1999, p. 141).

estratégias globais, múltiplas portanto, em sua forma e em seu lugar de exercício (FOUCAULT apud HUISMAN, 2004, p. 391).

Matizar os procedimentos e técnicas modernas e contemporâneas do poder leva Foucault a investigar a constituição história das “formas de governo” (diversas e particulares) entre os homens. Com o seu estudo, procura preencher a lacuna criada pela insuficiência de instrumentos teóricos de análise (como é o caso das noções de repressão e soberania) que viabilizassem uma analítica das “práticas de governo”, tal qual se configuraram no Ocidente. Nesse intento, ao nuançar as noções de governo e governamentalidade, Foucault propõe a seguinte distinção: “que ‘governar’ não seja a mesma coisa que ‘reinar’, não seja a mesma coisa que ‘comandar’ ou fazer a ‘lei’.” E acrescenta:

supondo-se que governar não seja a mesma coisa que ser soberano, ser senhor, ser juiz, ser general, ser proprietário, ser mestre-escola, ser professor; supondo-se que haja uma especificidade do que é governar, seria preciso saber agora qual é o tipo de poder que essa noção abarca (FOUCAULT, 2008a, p. 155-156).

A noção de governo, em Foucault, delineia-se com base em duas vias: na primeira, governo remete aos modos de relação entre sujeitos; já na segunda, diz respeito à relação que o sujeito estabelece consigo mesmo. Na primeira via, trata-se do governo como conjunto de ações sobre ações possíveis, ou seja, governar consiste em conduzir as condutas dos outros (quer se trate exclusivamente de indivíduos, quer de grupos). Na segunda via, o governo é definido como a relação que o indivíduo estabelece consigo próprio por meio, cabe ilustrar, do domínio exercido sobre os seus próprios prazeres, apetites e desejos – condição para bem governar os demais. Nessas duas modalidades de governo, e na relação entre elas, vemos problematizado o cruzamento entre os processos de objetivação e subjetivação. Prova disso, no bojo da discussão ganha centralidade o tema dos limites e possibilidades da liberdade humana nas esferas da prática política e da ética (FOUCAULT, 2004a, p. 278, 284-286).

Em consonância com as duas definições de governo, o neologismo governamentalidade indica, sob o ponto de vista da investigação, o estudo das formas de governar. Existem dois domínios na governamentalidade. O primeiro pode ser definido pelos seguintes

pontos: a) O conjunto constituído por práticas que permitem um exercício de poder que tem: como alvo primordial a população; por principal modalidade de saber a Economia Política; e por instrumento técnico fundamental os dispositivos de segurança. b) A linha de força que, de um lado, fez com que (no Ocidente) o governo, como modalidade de poder, ganhasse primazia sobre as demais formas, como a soberania e a disciplina; e, de outro, possibilitasse o desenvolvimento de uma gama complexa e multiforme de saberes. c) A resultante do processo pelo qual o Estado de Justiça medieval transformou-se, por volta dos séculos XV e XVI, no Estado administrativo e, por fim, no Estado governamentalizado. De modo geral, a investigação dessa governamentalidade política leva Foucault a inquirir as formas de racionalidade por ela assumida, como também os procedimentos técnicos e os modos de instrumentalização que incorpora (Cf. FOUCAULT, 2008a, p. 143-145). Já a segunda acepção do termo diz respeito à confluência entre as técnicas de dominação, exercidas sobre os outros, e as técnicas de si (FOUCAULT, 2004a, p. 242-243, 270- 274).

Com isso, fica claro que o estudo da governamentalidade deve abranger não só o campo da política, mas também o tema ético da relação que o sujeito estabelece consigo mesmo. Assim sendo, localizamos, no cruzamento entre as formas históricas de governo dos outros e de si mesmo, a problematização da ação humana como um ethos ético-político (a ser vivenciado, por exemplo, como práticas contracondutas, mas também como cuidado de si e dos outros). Além disso, há na definição de governamentalidade nuances que não devem ser negligenciadas. Desse modo, ela denota um sentido mais geral e outro mais restrito: a) Dando contornos mais amplos a sua investigação, percebemos que ela pode englobar o exame das diferentes artes de governo que dizem respeito às formas de governo de si (ética), de governo dos outros (formas políticas) e da relação entre ambas. Conforme a genealogia, figuram entre as artes de governo: o cuidado de si, as formas de ascese da antiguidade, o pastorado – confissão, a direção e exame de consciência espiritual –, as disciplinas, a biopolítica, a polícia, a razão de Estado, o liberalismo e o neoliberalismo. b) Ambos os termos, governamentalidade e arte de governar, apresentam também sentidos mais restritos. Ao imputar um sentido mais específico aos dois termos, Foucault teria tencionado melhor delimitar os espaços de ação da governamentalidade e das artes de governar, marcando suas diferenças em relação ao que considera como o gênero “conselhos ao Príncipe” e a Ciência Política (CASTRO, 2009, p. 190-191). Tendo por

base as definições acima explicitadas, cabe, agora, situar a trajetória genealógica das governamentalidades ocidentais.

Como lembra Defert, o curso “Segurança, território, população”, de 1978, embora comece por explorar a questão do poder, rapidamente desloca a análise para a governamentalidade. Diga-se de passagem, tema esse tão novo para Foucault quanto para os seus ouvintes do Collège de France (DEFERT apud FOUCAULT, 1999b, p. 49). Em linhas gerais, as aulas de 1978 mostram, inicialmente, o longo processo de desenvolvimento do poder pastoral no Ocidente. Distinto da prática política greco-clássica, a pastoral cristã seguiu, em certa medida, o modelo do pastorado hebreu. Porém, criou, por meio de um conjunto de dispositivos, autonomia em relação à forma hebraica. Em outros termos, o “governo das almas”, próprio da pastoral cristã, utilizando-se de práticas como a “direção de consciência” e o “exame de consciência”, inaugurou uma forma de poder (o ato de internalizar a obediência construída na relação entre pastor espiritual e indivíduos crentes – o “rebanho”) eminentemente individualizante. Posteriormente à crise do pastorado, houve, no século XVI, a proliferação de toda uma literatura sobre a arte de governar os homens. Nos séculos XVII e XVIII, consolidou-se a razão de Estado, como modalidade de governo político dos homens, por meio dos dispositivos de estatais intervencionistas: a tecnologia diplomático-militar e a polícia. Opondo-se desde o início ao Estado de polícia, a governamentalidade liberal estabelece-se entre a segunda metade do século XVIII e o século XIX. Na contemporaneidade, verificar-se-ia o advento da governamentalidade neoliberal por meio do ordoliberalismo alemão (Escola de Friburgo) e do neoliberalismo norte-americano (Escola de Chicago).

Em linhas gerais, as análises contidas no curso de 1978 tratam da formação do Estado governamentalizado. Neste, o objeto do governo não é mais o território; diferentemente disso, esse Estado terá como meta gerir uma população.60 Sob o ponto de vista metodológico, cabe esclarecer que não se trata, nessas pesquisas, de negar as esferas do poder soberano e disciplinar, mas de percebê-las como dispositivos que se fizeram presentes no processo de governo das populações. Dito de

60 As governamentalidades expressam a seguinte singularidade: nunca se governa

exclusivamente um Estado, território ou estrutura política, pois os governados são sempre pessoas: homens, indivíduos, coletividades. Dirá Foucault que esta ideia de que os homens é que são governados, não é grega nem romana, pois se inscreve num outro momento e modelo de relação de poder característico das governamentalidades inauguradas na tradição judaico- cristã (FOUCAULT, 2008a, p. 164-166).

outro modo, se, por um lado, as governamentalidades não são meros efeitos do poder soberano ou das práticas institucionais disciplinares, por outro, isso não quer sugerir que não existam pontos de aproximação entre as diferentes modalidades de poder. Assim sendo, a emergência e a eficácia dos dispositivos modernos de segurança, que incidiram sobre as populações, contaram, em determinados momentos, com a articulação entre as práticas soberanas, disciplinares e “governamentais” (triângulo soberania-disciplina-gestão governamental).

Além disso, observamos que não há uma total continuidade ou mesmo ruptura absoluta entre as diferentes formas de governamentalidade. Por exemplo, Foucault verifica que, na modernidade, elementos da pastoral cristã, das técnicas diplomático- militares e da polícia aparecem como pontos de apoio no processo de governamentalização do Estado (FOUCAULT, 2008a, p. 146). Há especificidades em cada “modelo de governo”, no entanto, isso não exclui a existência de traços dos anteriores nos subsequentes. Assim, há aspectos do pastorado nos dispositivos de segurança (por exemplo: a internalização da obediência), como também elementos da polícia no liberalismo, o que não quer indicar uma mera evolução entre estas tecnologias de governo.61 E mais, o estudo das governamentalidades reforça a tese presente nas pesquisas anteriores que indicava a não existência de cortes abruptos entre as esferas do micro e do macro. Dessa forma, a genealogia do sujeito, por meio da investigação das governamentalidades ocidentais, procura analisar a articulação entre as microrrelações de poder, os diferentes modelos de gestão governamental (de si e dos outros) e as diversas estratégias estatais (FOUCAULT, 2008a, p. 481).