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AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

2. Anatomia e estrutura da autonomia

Mas quando é que podemos dizer que uma pessoa tem autonomia ou age como se fosse um agente autónomo? Tentando densificar o seu conteúdo iremos referenciar as suas vertentes, precisar as suas modalidades, estabelecer as suas variantes e encontrar as suas medidas.

2.1. Dimensões

De um modo geral e face ao que temos anteriormente descrito, podemos dizer que mediante a autonomia negativa recusa-se a interferência de quaisquer poderes exteriores que controlam, determinam ou incentivam (nudge) uma pessoa a agir, por comissão ou omissão, relativamente a interesses seus situados na sua esfera individual, mediante opções ou atuações pessoais, salvo se essa pessoa consentir nessa intromissão, aceitando no mo- mento ou autorizando previamente. Por sua vez, através da autonomia positiva procura- -se que qualquer pessoa tenha as condições necessárias para desenvolver as suas avaliações e razões, exercendo, de acordo com as mesmas, o seu poder de atuação sobre si mesmo.

2.2. Modalidades

A autonomia tem uma imensa elasticidade, não sendo unívoca, porquanto o ser hu- mano é complexo, não existindo um padrão de humano, como antes existia e ainda existe com o bonus pater familiae — faltava sempre a bonus mater familiae Seria redutor encontrar na mesma uma única modalidade, como muito vezes se faz, equiparando a autonomia à autodeterminação, desprezando-se toda a sua restante anatomia.

A propósito, e no seguimento do que já referimos anteriormente, partindo do seu significado histórico e da sua compreensão contemporânea, podemos enumerar as se- guintes modalidades: a) auto-governação (condições internas); b) autodeterminação (condições externas); c) auto-validação, sendo o mesmo que auto-autorização (respon- sabilidade, autoavaliação e reconhecimento social); d) autorrepresentação, seja direta (através do próprio), ou indireta (procurador ou mandatário); d) auto-prospetiva, pla- neando o futuro, desenvolvendo estratégias de autonomia, numa altura em que dispõe da mesma, para momentos ou situações de autonomia decrescente ou em que esteja mesmo ausente, programando a gestão e o destino do seu património, dos seus cuida- dos de saúde e da própria vida.

36 Heiner Bielefeldt, Menschenwürde und Autonomie am Lebensende — perspektiven der in-

ternationalen Menschenrecht, in Caroline Welsh et alii (Hg.), Autonomie und Menschenrechte am Lebensende Grundlagen, Erfahrungen, Reflexionen aus der Praxis, Bielefeld: 2017, p. 49 refere-se à “razão incondicional dos direitos humanos” (unbedingter grund der menschenrechte) nessas situações.

AUTONOMIA E CAPACITAÇÃO

56 2.3. Variantes

A autonomia não é um conceito unitário, muito embora se possa estabelecer as suas dimensões negativas e positivas, para delimitar o seu significado e percebermos o seu valor e a sua relevância enquanto princípio. Por isso, podemos destacar, para melhor percebermos o seu conteúdo, os seguintes desdobramentos: a) autonomia informativa, que muitas vezes surge referenciada, de modo indevido, como autodeterminação infor- mativa, que tem tanto uma função cognitiva (i), de conhecimento da situação pessoal e social, uma função hermenêutica (ii), de interpretação dessa realidade, assim como uma função expositiva (iii), esclarecedora de si própria no contexto social, fornecendo elemen- tos e dados; b) autonomia reflexiva, que tem por base as suas necessidades, escolhas e a análise de ambas; c) autonomia funcional, que conjuga as suas capacidades, atribuições e desempenhos pessoais; d) autonomia decisória, que se desdobra na avaliação, ponde- ração, utilidade e sentido das suas decisões (i) e na tomada, propriamente dita, dessa deliberação (ii); e) autonomia comunicativa, que consiste “em tornar comum” — no sentido etimológico de comunicação (lat. communicatio) — os elementos, dados e razões do processo avaliativo e/ou resolutivo, mediante instrumentos próprios, sejam pessoais (visual, gestual, sonoros), mecânicos (escritos, digitais) ou qualquer outro que permita estabelecer uma ligação entre o emissor e o receptor.

2.4. Mensurabilidade

As avaliações da autonomia e da capacitação são um instrumento imprescindível para se poder instituir as infraestruturas de qualquer sistema de apoio, de modo que estes este- jam nutridos por uma linguagem de direitos, obstando-se à implementação de sistemas de substituição, os quais conduzem à morte civil de uma pessoa, pois destroem a sua capacidade jurídica.

Para o efeito, seguimos os contributos oriundos da teoria das capacidades (capability approach), centrada nos direitos humanos e como forma de alcançar o bem-estar, sendo este compreendido através das capacidades, estabelecendo-se em concreto um índex de capacidades básicas, aprimorada pela teoria das funcionalidades seguras, seguindo ainda os contributos de uma teoria pluridimensional da autonomia.37 E isto porque esta apro-

ximação teórica possibilita atingir três objectivos essenciais: 1) permite diferenciar uma pessoa, não a embrulhando em pacotes tipo e redutores (incapacidade versus capacidade), 37 A teoria das capacidades foi essencialmente desenvolvida por Amartya Sen, donde destacamos

Equality of What?, in McMurrin, Tanner Lectures on Human Values, Cambridge, CUP, 1980; Inequality Re-examined, Oxford: Claredon, 1992, pp. 197-220; Elements of a Theory of Human Rights, Philosophy & Public Affairs, Vol. XXXII, n.º 4, 2004, pp. 315-356; assim como por Mar- tha Naussbaum, Frontiers of Justice: Disability, Nationality, Species Membership, Cambridge: HUP, 2006; Creating Capabilities, Cambridge: HUP, 2011. Por sua vez, a teoria das funcionalidades se- guras, com origem naquela teoria das capacidades, foi aperfeiçoada por Jonathan Wolf e Avner De-Shalit, Disadvantage, Oxford, OUF, 2007. Por último, seguimos Suzy Killmister, Taking the Measure of autonomy: A four-dimensional theory of self-governance, New York: Routledge, 2018.

AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO Joaquim Correia Gomes

que são muitas vezes descartáveis, pois uma pessoa, como já referia Ortega y Gasset, é ela própria e as suas circunstâncias, as suas singularidades, não só pessoais, mas que estendemos às sociais e às ambientais; 2) possibilita um quadro de intervenção flexível e com multi-propósitos, sejam legais, jurídicos ou mesmo informais; 3) as infraestruturas do sistema de apoio a implementar devem estar dirigidas às suas discapacidades e não à sua saúde, comportamentos e muito menos à sua deficiência, pois esta apenas conhece a pes- soa singular e ignora o seu contexto social e ambiental, partindo-se desta envolvência ou completude para a implementação de ações afirmativas, em concreto e não em abstrato. Tal conduz à inventariação das necessidades (i), tanto a nível individual, como social, combinando as mesmas com as funções humanas daquela pessoa específica (ii) e que, na prática, necessitam de ser capacitadas (iii), para assegurar e maximizar a sua autonomia, quando a mesma está numa situação vulnerável de discapacidade. Uma pessoa terá capa- cidade para fazer e ser se estabelecermos e desenvolvermos aquelas funcionalidades seguras necessárias, adequadas e ajustadas, para que a mesma prossiga os seus legítimos interesses.

Assim, nessas medidas da avaliação, podemos distinguir uma fase de identificação, uma fase de concretização e uma outra fase de reponderação. Na fase de identificação procura-se uma autodefinição (a), de valores, crenças e objectivos, bem como a sua au- to-organização (b), através da preparação, ordenação e planeamento. A seguir, na fase de concretização, pretende-se tanto a sua auto-execução (c), através da realização interna e externa, como a auto-unificação (d), através da integração pessoal e social. Por último, na fase de ponderação efectua-se uma auto-reconstituição (e), do passado, presente e futuro.

Por sua vez, nas medidas da capacitação estimamos as capacidades concretas de uma pessoa (nível interno), assim como as circunstâncias contingentes e adversas do seu meio ambiente (nível externo), aferindo-se os meios ou instrumentos existentes e necessários (nível de bens e recursos).

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