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Esboço para uma nova teoria jurídica das capacidades: direitos humanos e capacitação A CDPD veio instituir no seu artigo 12.º o reconhecimento igual perante a lei, tanto

AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

4. As (in)capacidade e a capacitação

4.2. Esboço para uma nova teoria jurídica das capacidades: direitos humanos e capacitação A CDPD veio instituir no seu artigo 12.º o reconhecimento igual perante a lei, tanto

da personalidade jurídica, como da capacidade jurídica das pessoas com discapacidade. Mediante a primeira reafirmam que estas “têm o direito ao reconhecimento perante a

lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar” (n.º 1), enquanto através da segun- da reconhecem que as mesmas “têm capacidade jurídica, em condições de igualdade

com as outras, em todos os aspectos da vida” (n.º 2) –, sendo nosso o negrito, como

também sucede adiante. Tratam-se de normas de direito internacional autossuficientes, que valem por si, tanto sob o ponto de vista formal, como substancial, pois os Estados Partes desde logo reafirmam ou reconhecem tais direitos, mostrando-se as mesmas sufi- cientemente claras, integrais e completas, não necessitando, por isso, de qualquer cosmé- tica ou intermediação legislativa doméstica.

Mediante esta Convenção podemos não só identificar a personalidade e capacidade jurídicas como suporte essencial da condição jurídica humana (i), como reconhecer de modo igual — e aqui reside a sua inovação — tais direitos relativamente às pessoas com dis- capacidade (ii). E, talvez por isso, tenha sido o normativo causador de maior perturba- ção nas discussões dos trabalhos preparatórios, pois abandonou simplesmente a vertente tradicional e protecionista das “incapacidades”, a qual passava e passa essencialmente pela privação dos direitos, para consagrar um conjunto de alavancas jurídicas de su- porte às decisões das pessoas com limitações de capacidades. Para o efeito, os Estados Partes deveriam tomar as “medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídi- ca” (artigo 12.º, n.º 3), de modo a assegurar que “todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos” (artigo 12.º, n.º 4, I parte). Ainda se acrescentou que “Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa ..., são proporcionais e adaptadas às circunstâncias

da pessoa, ...” (12.º, n.º 4, II parte).

Como podemos constatar no quadro adiante, o segmento normativo deste artigo 12.º, n.º 4, na sua II parte, não corresponde a uma tradução fiel do texto original em inglês, porquanto a palavra respect (“respeitam”) foi simplesmente eliminada, ao ser tra- duzida por “relação” o que, no mínimo, é lamentável, acrescentando outras imprecisões e mais indeterminações.

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Texto oficial Texto Diário República Texto proposto “Such safeguards shall en-

sure that measures relating to the exercise of legal capacity respect the rights, will and preferences of the person, are free of conflict of interest and undue influence, are proportional and tailored to the person’s circumstances, …”

“Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídi- ca em relação aos direitos, vonta- de e preferências da pessoa, estão isentas de conflitos de interesses e de influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às cir- cunstâncias das pessoas, ...”

“Tais garantias devem as-

segurar que as medidas rela- cionadas com o exercício da capacidade jurídica respeitam os direitos, vontades e preferên- cias da pessoa, estão isentas de conflitos de interesses e de in- fluências indevidas, são pro- porcionais e adaptadas às cir- cunstâncias das pessoas, ...” Assim, enquanto o texto original expressa três injunções jurídicas, ou seja, respeito pelos direitos, vontades e preferências (i), isenção de conflitos e de influências indevidas (ii), proporcionais adequadas (iii), o texto em português eliminou pura e simplesmente a primeira. Como sair deste impasse jurídico e desta limitação do texto oficialmente tra- duzido para português? Enquanto não existir uma retificação legislativa, que poderá es- tender-se à designação da própria Convenção — surgindo discapacidade (disability), em vez de deficiência (impairment) — haverá que respeitar o texto original, que está redigido em língua inglesa, como impõe o artigo 33.º, n.º 1 da Convenção de Viena dos Tratados de 1969 — “Quando um tratado for autenticado em duas ou mais línguas, o seu texto faz fé em cada uma dessas línguas, salvo se o tratado dispuser ou as Partes acordarem que, em caso de divergência, prevalecerá um determinado texto”.

A CDPD, através do seu artigo 12.º, consagrou um novo paradigma da capacidade jurídica como direito humano, enunciando duas direções confluentes: i) primazia dos modelos de apoio em detrimento dos modelos de substituição; ii) assegurar os direitos, as vontade e preferências da pessoa discapacitada em vez dos melhores interesses desta. E isto porque a igualdade de capacidade jurídica, em relação a qualquer pessoa, significa que deve ser a mesma a decidir por si, de acordo com a sua vontade e desejos, e não através de outros, ainda que em sua representação ou que estes procurem o seu melhor interesse — os casos mais difíceis (hard cases) são, sem dúvida, os de plena e profunda incapacidade mental, que existem, mas que não são a melhor inspiração para se ter um arquétipo da capacidade jurídica.

A propósito, o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, num documento de discussão de 20/12/2012 intitulado “Quem deve decidir?”, constatou que “A maioria dos sistemas europeus de capacidade jurídica estão obsoletos e requerem uma reforma legislativa urgente”, exortando, entre outras coisas, a uma revisão legislativa com base no artigo 12.º da CDPD (2), de modo que “consignam a abolição dos mecanismos que preveem a incapacidade total e a tutela plena” (3).60 Posteriormente, o Comité DPD

elaborou o Comentário Geral n.º 1 (2014) sobre este artigo 12.º da Convenção, chaman- do a atenção para se diferenciar entre capacidade jurídica (i), que seria a aptidão para se ser titular de direitos e obrigações, assim como para os exercer, e a capacidade mental (ii), 60 “Who gets to decide? Right to legal capacity for persons with intelectual and psychosocial

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que representaria a habilidade para uma pessoa tomar as suas decisões, sendo a mesma variável de pessoa para pessoa, dependendo ainda de diversos factores (§ 13). Também destacamos a necessidade de abandonar o critério do “melhor interesse” (best interests), substituindo-o pelo critério da “vontade e preferência” e, quando tal não seja possível, pela sua “melhor interpretação possível” (§ 21), renovando a necessidade de passar-se de um regime de substituição (tutela plena, interdição judicial, tutela parcial) para um regime de apoio (§ 26, 27).

A nomenclatura deste novo paradigma da capacidade jurídica ao eleger o modelo decisório de apoio como arquétipo legal dos ordenamentos jurídicos domésticos, leva a que estes concedam preferência à vontade e desejos da pessoa em causa, situando es- tas numa posição de igualdade de direitos em relação às demais. Para o efeito, afasta-se nitidamente do tradicional modelo decisório de substituição, assente no seu presumível melhor interesse. No entanto, a CDPD não apresentou uma noção desse modelo, muito embora seja comum aceitar tratar-se de um mecanismo jurídico com diversos níveis, dis- tintas características, formais e informais, e natureza, podendo ser contratual, mediante acordo celebrado entre as partes, jurisdicional, quando é determinado pelo tribunal, não existindo um modelo único nem uma definição.

A propósito têm sido sugeridas algumas características, tais como: i) a pessoa mantém a autoridade decisória; ii) existe liberdade de constituição e de extinção da relação de apoio; iii) a pessoa apoiada participa ativamente no processo decisório; iv) as decisões tomadas com apoio são, em regra, juridicamente vinculativas.61 No entanto estas linhas

não respondem a todos os casos, ficando de fora, por exemplo, aquelas situações mais difíceis de profundo défice cognitivo — nestes casos aqueles três primeiros pressupostos não têm qualquer aplicação e o quarto pressuposto encontra-se prejudicado.

A CDPD apesar de não dar uma noção desse modelo decisório de apoio, não deixa de traçar um quadro jurídico, mormente através de princípios e valores, que deveriam orientar o mesmo, desenhando as linhas de um paradigma jurídico de apoio deliberativo na discapacidade, cujo núcleo reside, como já referimos, no citado artigo 12.º. Do mesmo ou em conjugação com outros normativos, podemos extrair as seguinte coordenadas: i) capacidade jurídica em situação de igualdade, não só perante a lei (formal), mas também na prática (substantiva), ou seja, “em todos os aspectos da vida”, proibindo-se expedientes jurídicos discriminatórios com base na discapacidade (artigos 5.º; 12.º, n.º 2, parte final, n.º 5 da CDPD); ii) adaptação razoável dos mecanismos jurídicos à situação de discapacida- de, sendo necessariamente flexíveis para se acomodarem às circunstâncias específicas de cada caso e ao grau de diminuição das capacidades, através de “medidas apropriadas para providenciar acesso” ao apoio de que as mesmas necessitam para o exercício da sua capaci- dade de agir, (artigos 4.º, 1, a); 12.º, n.º 3 e 4, II e III parte da CDPD); iii) estabelecer as garantias apropriadas e efetivas para prevenir o abuso (artigo 12.º, 4, I parte da CDPD); iv) conceder primazia aos direitos, vontades e preferências da pessoa discapacitada, assegurando-se, sempre que possível, a sua autonomia pessoal, incluindo a liberdade de fazer as suas pró- 61 Leslie Salzman, Guardianship for Persons with Mental Illness — A Legal and Appropriate Al-

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prias escolhas (artigo 3.º, a); 12.º, 4, II parte da CDPD); iv) privilegiar o carácter transitório das medidas de apoio, sujeitando-as a revisão periódica através de um processo equitativo (artigo 12.º, n.º 4, II parte final da CDPD). Diga-se, que estas coordenadas jurídicas não são apenas dirigidas ao legislador nacional, enquanto obrigações programáticas estaduais de vínculo internacional, mas também aos tribunais, na sua prática judiciária, a partir do momento em que ocorre a sua integração no ordenamento jurídico nacional (1), tratando- -se de uma norma, que, em certos momentos, é self-sufficient (2), mormente na explicitação do sentido do direito humano à capacidade jurídica (3).

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