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O direito/dever do cuidado do ponto do vista dos direitos humanos: análise da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos

ELEMENTOS DE DIREITO COMPARADO QUANTO AO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES

3. O direito/dever do cuidado do ponto do vista dos direitos humanos: análise da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos

Pese embora a importância dos Estados, tanto no reconhecimento quanto na im- plementação de um direito ao cuidado, estas são tarefas que não têm porque se limitar apenas ao direito interno dos mesmos. De facto, podem (e se calhar devem) ser comple- mentadas e impulsionadas pelo reconhecimento em diplomas internacionais de direitos humanos que construam esse direito ao cuidado dentro da categoria dos direitos econó- micos, sociais e culturais (doravante, DESC). Partindo desta premissa, neste apartado iremos analisar brevemente algumas questões no que diz respeito à relação entre direitos humanos e direito ao cuidado. Depois, iremos descrever, em jeito de exemplo, a aborda- gem da questão do cuidado num recente diploma de direitos humanos que é de grande importância, não obstante possuir um âmbito regional e focar-se apenas na população idosa: a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos.

Sem aprofundarmos, dada a falta de tempo e espaço, a discussão acerca da considera- ção do cuidado como direito, tema de grande interesse e complexidade, ao analisar este tópico surge uma pergunta relacionada: se considerarmos o cuidado como um direito, será ele um direito humano? Esta classificação enquanto direito humano poderia ser rele- vante do ponto de vista prático, pois ajudaria a criar standards internacionais de direitos humanos nesta questão e seria importante para assegurar a exigibilidade e efetividade dos direitos, se pensarmos no desenvolvimento das teorias que estão solidamente a defender que os DESC possuem a mesma origem, o mesmo titular e o mesmo destinatário que os direitos civis e políticos. Deste ponto de vista, todos os direitos humanos são reclamá- veis, indivisíveis, interdependentes e universais sem que haja uma distinção entre DESC e direitos civis e políticos.

Aliás, existe, inserido ainda nesta abordagem e enquadramento sociopolítico, um de- bate aberto no seio da comunidade internacional, e uma série de trabalhos preliminares que visam, por exemplo, a criação de uma futura Convenção Internacional dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas inserida no sistema internacional de Direitos Humanos12. Como é lógico, este desenvolvimento encontra-se muito relacionado com a questão do cuidado devido à população alvo a quem se dirige este futuro diploma: as pessoas idosas, muitas delas dependentes de cuidados.

Certamente, a criação desta Convenção de alcance global é uma tarefa ainda em an- damento e não concluída. Todavia, isto não tem porque ser um impedimento ao desen- volvimento de instrumentos regionais. De facto, esta criação de instrumentos regionais pode facilitar o melhor atendimento das diferenças locais. Além disto, a monitorização e a legitimidade das pressões para aplicação das Convenções costumam ser mais bem acei- 12 Vid. Jorge Garcia e Ana Sofia Carvalho, Dignidade e Direito ao cuidado: uma proposta para

uma futura Declaração Universal dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas, in Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira e Antônio Carlos Mathias Coltro (EDS.), Cuidado e o direito de ser: res- peito e compromisso, Coord, São Paulo, Grupo GEN GZ Editora, 2017, pp. 45-76.

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tes pelos Estados membros quando provêm de enquadramentos regionais mais próximos do que do quadro global das Nações Unidas13.

Assim, enquanto aconteciam os debates relativamente à possibilidade da aprovação de um diploma global nas Nações Unidas, a Organização de Estados Americanos (OEA) estava a liderar um processo de busca de acordos para alcançar, de forma muito rápida, a elaboração e adoção de um diploma regional americano nesta matéria. O texto finalmen- te aprovado da Convenção Interamericana sobre a proteção dos Direitos humanos dos idosos consta de um preâmbulo e VII capítulos. O diploma explicita no artigo 1.º os seus objetivos: “O objetivo da Convenção é promover, proteger e assegurar o reconhecimento e o pleno gozo e exercício, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e li- berdades fundamentais do idoso, a fim de contribuir para sua plena inclusão, integração e participação na sociedade”.

Neste apartado não vamos realizar uma análise global deste diploma, iremos focar-nos apenas nos aspetos dele relacionados com o dever e o direito ao cuidado. Já no artigo 3.º, ao elencar os princípios gerais aplicados à Convenção, encontramos duas referências explícitas ao cuidado: na alínea f), em que se fala do bem-estar e cuidado; e na alínea o), em que se fala na responsabilidade do Estado e na participação da família e da comu- nidade na integração ativa, plena e produtiva do idoso dentro da sociedade, bem como no seu cuidado e atenção, de acordo com a legislação interna. Este reconhecimento vem mostrar que a questão dos cuidados, na perspectiva dos direitos, é um aspeto relevante para a Convenção Interamericana.

Por seu turno, no artigo 6.º, que fala do direito à vida e à dignidade, temos uma menção específica à obrigação dos Estados de tomar medidas para que as instituições pú- blicas e privadas ofereçam ao idoso um acesso não discriminatório a cuidados integrais, incluindo os cuidados paliativos

De igual forma, o texto obriga aos Estados Partes a estabelecerem “medidas de apoio às famílias e cuidadores mediante a introdução de serviços para aqueles que realizam ati- vidades de cuidados”. Mas, apesar de afirmações como a anterior, dada a definição que a própria Convenção dá de “idoso que precisa de serviços de cuidados de longo prazo”, o texto parece estar a excluir os idosos cuidados nas suas casas por familiares.

A Convenção define o idoso que recebe cuidados de longo prazo da seguinte forma, no seu artigo 2.º: “pessoa que reside temporária ou permanentemente em um estabeleci- mento regulado, seja público, privado ou misto, no qual recebe serviços sociossanitários integrais de qualidade, incluindo as residências de longa estadia, que proporcionam esses serviços de atenção por tempo prolongado ao idoso com dependência moderada ou se- vera que não possa receber cuidados em seu domicílio”. Portanto, o texto parece estar a excluir os idosos cuidados nas suas casas por familiares. Esta restrição deve ser superada, pois o grupo de pessoas idosas que recebe cuidados no seu domicílio também precisa de uma proteção igualmente enérgica na esteira do que acontece, por exemplo, no Protoco- lo da Carta Africana sobre os Direitos das Pessoas Idosas.

13 Israel Doron e Itai Apter, The Debate Around the Need for an International Convention

O DIREITO E O DEVER DE CUIDADO Jorge Gracia Ibáñez

O artigo 12.º da Convenção Interamericana vem introduzir uma série de disposições no intuito de efetivar os direitos dos idosos ao cuidado: estabelecer mecanismos para assegurar que o início e termo dos serviços de cuidado de longo prazo estejam sujeitos à manifestação da vontade livre e expressa do idoso; incentivar que esses serviços contem com pessoal especializado; estabelecer um quadro regulatório adequado para o funcio- namento dos serviços de cuidado de longo prazo que permita avaliar e acompanhar a situação do idoso (incluindo a adoção de medidas para garantir o acesso do idoso à informação, prevenir ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, promover a interação familiar e social do idoso, levando em conta todas as famílias e suas relações afetivas, proteger a segurança pessoal e o exercício da liberdade e mobilidade do ido- so, assim como a sua integridade e a sua privacidade e intimidade nas atividades que realiza, particularmente nos atos de higiene pessoal); estabelecer a legislação necessária para que os responsáveis e o pessoal de serviços de cuidado de longo prazo respondam administrativa, civil e/ou penalmente pelos atos que pratiquem em detrimento do idoso e, finalmente, adotar medidas adequadas, quando aplicável, para que o idoso que esteja recebendo serviços de cuidado de longo prazo conte com serviços de cuidados paliativos.

Finalmente, ao falarmos do cuidado, importa também fazer menção aos casos de maus-tratos e violência contra idosos que acontecem em muitos casos em contextos de provisão de cuidados.14 Trata-se de um tema que a Convenção aborda desde o seu preâm- bulo e ao qual dedica o artigo 9.º, em que se consagra o direito do idoso à segurança e a uma vida sem nenhum tipo de violência.

De forma mais específica, entre as medidas que os Estados parte se comprometem a adotar para lutar contra estas situações o artigo inclui: estabelecer ou fortalecer mecanis- mos de prevenção da violência, em qualquer de suas manifestações, dentro da família, da unidade doméstica, do lugar onde recebe serviços de cuidado de longo prazo e da socie- dade para a efetiva proteção dos direitos do idoso, capacitar e sensibilizar os funcionários públicos, os encarregados de serviços sociais e de saúde, o pessoal encarregado da aten- ção e cuidado do idoso nos serviços de cuidado de longo prazo ou serviços domiciliares sobre as diversas formas de violência, a fim de dar-lhes um tratamento digno e prevenir negligência e ações ou práticas de violência e maus-tratos, assim como desenvolver pro- gramas de capacitação dirigidos aos familiares e pessoas que exercem tarefas de cuidado domiciliar, a fim de prevenir situações de violência no domicílio ou unidade doméstica. Em suma, podemos dizer que o precedente da Convenção Interamericana resulta muito valioso, mas, como é evidente pelo seu caráter regional e também pelo escasso nu- mero de países que neste momento a assinaram e a ratificaram15, não implica senão um 14 Para uma análise dos maus tratos aos idosos em Portugal em contexto de provisão de cuidados, vid.

Ana Sofía Carvalho e Jorge Garcia, Os maus-tratos a idosos em contextos familiares Proposta para uma abordagem ecológico-crítica, in Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira e Antônio Carlos Mathias Coltro (org.), Cuidado e Afetividade, 1.a ed., São Paulo, Atlas, 2017, pp.45-76.

15 Vid. OEA, Convención interamericana sobre la protección de los derechos humanos de las perso- nas mayores. Estado de Firmas y ratificaciones, 2018, pesquisável em http://www.oas.org/es/sla/ddi/ tratados_multilaterales_interamericanos_A-70_derechos_humanos_personas_mayores_firmas.asp (acesso a 6/09/2018).

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passo mais no caminho do reconhecimento efetivo dos direitos das pessoas idosas. É por isso que uma Convenção Internacional de alcance universal iria representar um grande e necessário avanço no processo de especificação dos direitos humanos das pessoas idosas que devem ser olhados como sujeitos de direitos e não apenas como objetos passivos de proteção desde uma abordagem apenas assistencial. Dito isto, e centrando-nos na questão dos cuidados, o certo é que a futura Convenção Internacional pode muito bem tomar como referência o reconhecimento do direito ao cuidado e das questões conexas que faz a Convenção Interamericana.

No entanto, é claro que este caminho não está livre de dificuldades, uma vez que o enfoque de direitos implica, neste caso, o estabelecimento de uma série de obrigações dos Estados no que diz respeito à efetiva realização de direitos que são sociais e que, na maioria dos casos, implicam a realização efetiva de políticas públicas caras e complexas. Mas devemos pensar nos direitos humanos como um instrumento útil para a justiça so- cial, incluído aí o coletivo das pessoas idosas como parte valiosa da sociedade. Sujeitos, portanto, de direitos humanos na base do reconhecimento da sua dignidade, para cuja efetivação nos parece que a culminação deste processo já iniciado rumo à aprovação definitiva e posterior ratificação massiva, pela comunidade internacional, de uma Con- venção Internacional de Direitos Humanos das Pessoas Idosas seria uma grande notícia.

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