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VULNERABILIDADE(S), DISCRIMINAÇÃO E ESTEREÓTIPOS

5. Concluindo: Igualdade complexa, dignidade e cidadania

Se é certo que a questão da igualdade é central para uma sociedade justa, qual a con- ceção de igualdade que deve ser adotada? Sendo entendimento comum que a igualdade impõe um tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, na medida da diferença86, queda em aberto “o problema fundamental da igualdade”, id est, determinar

a alínea b) do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto (regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais) e a alínea b) do artigo 36.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto (regime jurídico do referendo). A Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto alterou as refe- ridas disposições, determinando a incapacidade eleitoral ativa dos “que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento”, as- sim substituindo a referência à demenência notória (e, também, em conformidade com a aprovação do regime do maior acompanhado, à interdição decretada por sentença).

82 Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Caso Carvalho Pinto de Sousa Morais c. Portugal,

n.º 17484/15, 25/07/2017, pesquisável em https://hudoc.echr.coe.int

83 Como notam Senem Gurol, Challenging Gender Stereotyping before the ECtHR: Case

of Carvalho Pinto v. Portugal, EJIL: Talk!, 21/09/2017, disponível em https://www.ejiltalk.org/ challenging-gender-stereotyping-before-the-ecthr-case-of-carvalho-pinto-v-portugal/ e Lourdes Peroni, Age and Gender Discrimination: Laudable Anti-Stereotyping Reasoning in Carvalho Pinto v. Portugal, Strasbourg Observers, 18/09/2017, disponível em https://strasbourgobservers. com/2017/09/28/age-and-gender-discrimination-laudable-anti-stereotyping-reasoning-in-carva- lho-pinto-v-portugal/

84 Os Juízes Ravarani e Bošnjak contestaram a metodologia seguida pelo Tribunal na sua Opinião,

para a qual se remete.

85 Assim, Senem Gurol, Challenging Gender Stereotyping, Lourdes Peroni, Age and Gender Discri-

mination e também as opiniões dos Juízes Yudkivska e Motoc ao Caso Carvalho Pinto Sousa de Morais.

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o que é igual e o que é desigual, e o “problema político da igualdade”, id est, a quem cabe essa decisão87. O princípio da igualdade não é, assim, “fórmula vazia”, antes adquire

conteúdo por referência a um conjunto de valores que, por sua vez, terão de ser deter- minados perante a realidade.

Neste momento, é já claro que uma conceção meramente formal de igualdade, as- sente no tratamento igual, não é suficiente para dar conta da problemática da vulnerabi- lidade. A crítica de Martha Fineman é, a este propósito, bastante esclarecedora. Apesar de a discriminação legal ser relevante, ela não é a única fonte preocupação: trata-se de procurar perceber de que forma o poder, os privilégios e as identidades são construídos e perpetuados pelas instituições sociais, e de que forma o Estado responsivo lhes pode — e deve — dar resposta88.

Nos últimos anos, o combate à desigualdade tem sido (também) feito através das chamadas políticas de identidade (“identity politics”). Trata-se de identificar certas carac- terísticas de um grupo e de provar que os seus membros têm sido historicamente oprimi- dos e discriminados com base nessas características, e.g. etnia, nacionalidade ou religião. Porém, esta perspetiva das identidades culturais pode ser considerada redutora, ao menos se não for complementada por uma outra que leva em conta a desigualdade que resulta da forma como estão distribuídos o rendimento, o poder, as oportunidades e o acesso a bens sociais — como bem demonstrou Iris Marion Young89. O “corte transversal”

efetuado por recurso a categorias como a opressão, a vulnerabilidade ou a desigualdade estrutural é importante para iluminar as raízes profundas da desigualdade, bem como as relações e processos de exploração, marginalização e normalização, mostrando que a desigualdade não se resolve apenas através de um tratamento formalmente igual90 e exige

uma articulação do princípio da igualdade em termos substanciais91. Ressalve-se, porém,

que o recurso a categorias como a vulnerabilidade ou a opressão, se aplicadas sem mais a determinados grupos culturais, v.g., aos imigrantes, não permite dar conta da diversida- de interna destes, dos diferentes níveis de “vulnerabilidade” e de “desigualdade de facto”.

De uma outra perspetiva, Seandra Fredman propõe uma noção de igualdade substantiva multidimensional, no sentido em que visa promover a participação (“dar voz”), a transforma- ção, a redistribuição e o reconhecimento92. A igualdade substantiva assim entendida conduz

teresse para as questões de que nos ocupamos nesta comunicação, o (controverso) Acórdão n.º 483/2003 (prémios para atletas de alta competição portadores de deficiência), pesquisável em www. tribunalconstitucional.pt

87 Jónatas Machado, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva, Coimbra,

1996, p. 286.

88 Martha Albertson Fineman, The Vulnerable Subject, pp. 13 ss.

89 Sobre a questão, Anabela Costa Leão, Constituição e Interculturalidade, pp. 137 ss.

90 Iris Marion Young, Structural injustice and the politics of difference, in Multiculturalism and Political Theory, Cambridge, 2007, pp. 60 ss. p. 79.

91 Como se escreveu em Anabela Costa Leão, Constituição e Interculturalidade, p. 140.

92 Apud Lourdes Peroni e Alexandra Timmer, Vulnerable groups, pp. 1074 ss. Como escrevem

Lourdes Peroni e Alexandra Timmer, Vulnerable groups, pp. 1074-1075, «[t]he participative dimension of substantive equality, Fredman argues, requires compensating for the “absence of

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a eliminar, não tanto a diferença, mas a desvantagem associada à diferença, promovendo a dignidade e combatendo a estigmatização e os estereótipos. Na perspetiva da autora, a participação é um conceito complexo, que não se refere apenas à participação política, mas igualmente à participação na tomada de decisões que afetam indivíduos e grupos nos mais variados domínios, da educação à saúde, ao trabalho ou à organização da comunidade93.

A dimensão da participação das pessoas vulneráveis é, de resto, muito enfatizada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, já referida (vd. artigos 29.º e 30.º), que traz uma nova abordagem dos direitos das pessoas com deficiência, substituindo o modelo médico pelo modelo social da incapacidade94, mas igualmente em

outros instrumentos, designadamente no próprio Relatório PNUD 2014, já referido. A articulação entre igualdade e dignidade — que a Constituição da República Portu- guesa, de resto, expressa através da fórmula da “igual dignidade” (n.º 1 do artigo 13.º) — aponta para a fórmula dworkiniana de igual consideração e respeito, que significa que a igualdade não garante a cada um o mesmo tratamento que é concedido aos demais, mas que ele seja tratado, na imposição de sacrifícios ou concessão de benefícios, como igual, com igual consideração e respeito — e daí a diferença entre “tratamento igual” e “tratamento como igual”95. “É porque todos têm igual dignidade que devem ser tratados

como iguais”, só sendo admissíveis diferenciações que não ponham em causa a igual consideração e respeito a todos devido, escreve Jorge Reis Novais96, sendo para esse efeito

relevantes, não apenas os fatores que resultam de uma circunstância, mas igualmente os que, resultando em maior ou menor medida de uma escolha, dizem respeito a “opções individuais sobre planos de vida ou orientações que as pessoas são livres de formar”97.

Independentemente de a violação do princípio da igualdade afetar sempre indiretamente a dignidade da pessoa humana, esta poderá estar diretamente posta em causa se o trata- mento desigual se mostra “especialmente denegridor”, “desqualificante” ou humilhante do que a pessoa é98 ou das suas escolhas íntimas constitucionalmente protegidas, ou se

political voice” and opening up “channels for greater participation in the future.” Participation, as she explains, is a “multi-layered concept,” which entails not only political participation but also “taking part in decisions in a wide range of situations affecting individuals or groups, including at the workplace, in education, in health care, and in community organization. The transformative dimension seeks to accommodate group differences; the point is to remove “the detriment which is attached to difference,” rather than difference itself. The redistributive aspect of substantive equal- ity, in turn, aims at “breaking the cycle of disadvantage, which encompasses, among other things, “the maldistribution of resources. Last, substantive equality’s recognition facet seeks to “promote respect for dignity and worth, thereby redressing stigma, stereotyping, humiliation and violence because of membership of an identity group”»

93 Lourdes Peroni e Alexandra Timmer, Vulnerable groups, pp. 1074-1075.

94 Inter alia, Aa. Vv., Direitos das pessoas com deficiência, Lisboa, 2017, disponível em www.cej.mj.pt 95 Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa, Coimbra,

2004, p. 101 e Jónatas Machado, Liberdade religiosa, pp. 290 ss.

96 Jorge Reis Novais, Os princípios, p. 110.

97 Na formulação de Jorge Reis Novais, Os princípios, p. 110.

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assenta num preconceito social dirigido contra grupos ou categorias de pessoas99.

Face ao artigo 13.º da Constituição, e considerando as demais projeções da igual- dade no texto constitucional, a igualdade, na Constituição, é, não apenas formal, mas também material, não apenas jurídica mas também fáctica e estrutural100. É, por con-

seguinte, uma igualdade complexa, que autoriza, ou mesmo exige, a compensação de desigualdades e a promoção da igualdade, a que caracteriza o Estado Social de Direito. O princípio da igualdade não se reduz à proibição de discriminação, e a sua proteção abrange todos os portadores de interesse próprios na sua aplicação, sejam indivíduos, sejam pessoas coletivas e grupos não personalizados101. Por outro lado, não apenas proíbe

discriminações, diretas ou indiretas102, como justifica diferenciações e medidas de ação

afirmativa ou ação positiva103.

Com efeito, um entendimento material da igualdade não apenas consente, como em alguns casos impõe, a adoção de medidas de ação positiva, cujo objetivo é eliminar obstáculos ao exercício dos direitos ou, de outra perspetiva, discriminações, com vista à obtenção de uma igualdade real. Seriam tratamentos discriminatórios ou privilégios, não fosse o facto de estarem justificadas pela prossecução de uma igualdade material, comba- tendo “de forma razoável, objetiva e proporcional” a discriminação e, ao menos de acordo com certo entendimento, pela sua provisoriedade — duram enquanto a situação de de- sigualdade à partida que as justifica durar e cessam quando cessar a situação de desvanta- gem104 (o que é, também, uma dimensão de proporcionalidade). Estas têm sido admitidas

por diferentes órgãos internacionais de proteção de grupos vulneráveis, e.g. no âmbito do Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres ou do Comité para os Di- reitos das Crianças105, e são igualmente admitidas, para os portadores de deficiência e para

os idosos, pelos artigos 71.º e 72.º da Constituição da República Portuguesa.

99 Isto é, se “visa ou tem como efeito o desrespeito da humanidade intrínseca, a discriminação

desqualificante ou humilhante e é justificado em função do ser, da natureza da pessoa ou da pre- sença de características independentes da vontade e da responsabilidade do próprio”, escreve Jorge Reis Novais, A dignidade da pessoa humana, p. 134.

100 Sobre estes conceitos, Jorge Reis Novais, Os princípios, pp. 103 ss. e Maria da Glória Pin-

to Garcia, Estudos sobre o princípio da igualdade, Coimbra, 2005, pp. 7 ss. e 35 ss.

101 Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Anotação ao art. 13.º in Constituição Portuguesa Anotada,

Tomo I, Coimbra, 2010, p. 237.

102 Assim, Acórdão n.º 232/03 (preferências regionais) do Tribunal Constitucional, pesquisável

em www.tribunalconstitucional.pt

103 Trata-se de conceitos de fronteiras imprecisas. Sobre a questão, vd. Ana Maria Guerra Mar-

tins, A igualdade e a não discriminação dos nacionais de Estados terceiros legalmente residentes na União Europeia, Coimbra, 2010, pp. 69 ss. e Maria da Glória Pinto Garcia, Estudos, pp. 21 ss. e 75 ss. Vd. ainda o Acórdão n.º 483/2003 (prémios para atletas de alta competição portadores de deficiência), também do Tribunal Constitucional, já referido.

104 Esta característica permite distinguir as medidas de ação afirmativa dos direitos especiais de

grupo, mas não é, contudo, pacífica. Em todo o caso, diversos órgãos internacionais que admitem a possibilidade de discriminações positivas fazem referência ao seu carater temporário, vd. uma resenha em Fernando Arlettaz e Maria Teresa Palacios Sanabria, Introducción, pp. xvii ss.

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Na sua dimensão de diferenciação, o princípio da igualdade justifica e impõe uma atenção especial aos mais débeis, através da remoção de obstáculos para uma participação livre e igual na vida em comunidade106. Trata-se, em suma, de garantir condições para

uma cidadania efetiva e inclusiva, igual, mas também diferenciada. Evocando a bela fór- mula utilizada em 2005 pelo Tribunal Constitucional da África do Sul, no caso Fourie, “a força da nação que a Constituição tem em mente vem da sua capacidade de acolher todos os seus membros com dignidade e respeito”107.

106 Como escreve, numa perspetiva de Direito Constitucional Europeu, Mariana Canotilho, El princípio de igualdad en el Derecho Constitucional Europeo, Tesis Doctoral, Universidad de Granada, 2014-2015, pp. 447 ss., acessível em http://hdl.handle.net/10481/41149

107 Tribunal Constitucional da Africa do Sul, Caso Minister of Home Affairs and Another vs. Fourie and Another, 01/12/2005, CCT 60/40 Fourie 2005, 01/12/2005, [61], p. 40, pesquisável em ht- tps://collections.concourt.org.za/handle/20.500.12144/2249 (tradução nossa)

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