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OS NOVOS REGIMES DE PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM CAPACIDADE DIMINUÍDA

2. Fundamentos de um novo paradigma

3.2. Novo entendimento da capacidade

A centralidade do beneficiário dos regimes de salvaguarda e a sua assunção como ver- dadeiro centro de imputação de relações jurídicas, pleno sujeito de direitos27, só poderá

ser plenamente conseguida se assentar na rutura com a tradicional compreensão legal de incapacidade28.

Esta cisão representa a superação de um modelo (quase) unitário de incapacidade de agir ancorada no regime da menoridade29. Aponta assim para um regime jurídico autó-

nomo face às categorias em torno das quais se constrói a proteção à menoridade, que fazem corresponder o círculo de incapacidade (tendencialmente genérica) com a medida de proteção, identificada com o meio de suprimento da incapacidade — a tutela dos menores30. Tal não significa que esta não possa conservar a sua vocação de regime jurídico

supletivo, todavia, as soluções legais deste instituto não se compaginam com a realidade de interesses de uma pessoa maior, que se presume plenamente capaz do ponto de vista jurídico31. Não parece, todavia, que o regime do maior acompanhado faça uma remissão

meramente supletiva para o regime da tutela — na verdade, e ao arrepio estas conside- rações, manda-se aplicar o regime da tutela, sem mais, no que diz respeito ao exercício dos poderes de representação por parte do acompanhante (artigo 145.º, n.º 4 do CC).

O estatuto jurídico da menoridade pressupõe uma incapacidade jurídica regressiva e a consequente aquisição progressiva de capacidade à medida que se dá a aproximação à maioridade, motivando nomeadamente o reconhecimento de maioridades especiais32.

Encontra-se funcionalizado ao desenvolvimento e formação do menor como cidadão de pleno direito, correspondente à sua natural progressão biológica e social33. Tal não

acontece, nem pode acontecer, no caso das pessoas maiores. Existe antes a necessidade de consagrar instrumentos que assegurem que se mantenha e, mais importante, que se efetive o estatuto adquirido com a maioridade.

27 Geraldo Rocha Ribeiro, A Protecção, p. 426 ss.

28 Daí a proposta de Joaquim Correia Gomes de optar por um novo termo, discapacidade, mais

conforme com esta evolução. Joaquim Correia Gomes, Constitucionalismo, Deficiência Mental e Discapacidade: um Apelo aos Direitos, in Julgar, n. 29, 2016, p. 122.

29 Sobre o princípio da incapacidade por menoridade, ver Rosa Martins, Menoridade, (In)capa- cidade e Cuidado Parental, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 66 ss.

30 As mesmas considerações não se podem tecer relativamente ao exercício das responsabilidades

parentais, que são mais do que meio de suprimento da incapacidade e que levaram Clara Sotto- mayor (Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 17 ss.) e Rosa Martins (Menoridade, p. 225 ss.) a optar pela expressão “cuidado parental” para caracteriza a relação entre pais e filhos.

31 Artigo 130.º do CC.

32 Guilherme de Oliveira, O Acesso dos Menores aos Cuidados de Saúde, in Temas de Direito da Medicina, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, p. 226 e Rosa Martins, Menoridade, p. 117. 33 Geraldo Rocha Ribeiro, A Protecção, p. 425 e 426 e Rosa Martins, Menoridade, p. 117.

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Para além disso, o novo paradigma rejeita que a condição da pessoa maior se funde numa incapacidade geral ou numa capacidade limitada de agir34. Deste modo, convoca-

ção de instrumentos de salvaguarda não deve implicar necessariamente a incapacidade do beneficiário. Tal implica que se afastem soluções abstratas de restrição de capacidade jurídica e que qualquer limitação à capacidade jurídica seja entendida como uma solução de ultima ratio35. Só este entendimento garante o pleno reconhecimento da pessoa como

sujeito ativo no mundo jurídico.

O regime do maior acompanhado avança que o exercício pelo acompanhado de di- reitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário (artigo 147.º do Código Civil). Ora, tal não deve cingir-se apenas aos de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente. Daí que a consagração de um núcleo mínimo de capacidade não pareça dever ter relevância autónoma, face a um sistema que se anuncia não restritivo da capacidade, por princípio, como decorre da exposição de motivos da proposta que deu origem a esta reforma36.

É ainda exigível face ao novo paradigma que qualquer restrição de capacidade deva assentar na formulação de um juízo judicial em função do caso concreto.

No que diz respeito à exigência de decisão judicial, há que notar a expressa menção do regime do maior acompanhado de que “o acompanhamento é decidido pelo tribunal” (arti- go 139.º do CC). De facto, uma vez que as decisões que envolvam incapacitação implicam a restrição de direitos fundamentais, não pode ser-lhes negado o seu carácter de decisões de natureza jurisdicional e, logo, sujeitas à reserva absoluta de jurisdição. Assim, a decisão de incapacitação deve ser sempre da competência do tribunal. No entanto, esta exigência só se justifica na medida em que exista a potencialidade de afetar a capacidade — só aqui estamos perante a restrição de direitos fundamentais37. Não seria necessária, todavia, quan-

do, fazendo funcionar o sistema do acompanhamento esta possibilidade de incapacitação não se colocasse, como seria o caso de fazer funcionar instrumentos da índole do mandato.

A determinação da capacidade (ou melhor, da sua limitação) em função do caso con- creto implica uma resposta individualizada que não existia no tradicional figurino da interdição e, embora em menor medida, nem no da inabilitação. Da primeira resultava a incapacidade geral de agir do interdito e a atribuição de poderes de representação le- gal ao tutor na exata medida daquela incapacidade, com a consequente substituição do interdito na tomada de decisões. Na inabilitação não deixava de se prever um conteúdo mínimo rígido de incapacidade, com a sobreposição da medida de proteção ao âmbito desta incapacidade através do instituto da assistência.

Esta exigência implica que não se devam extrair efeitos imediatos da instauração de 34 Cf, art. 12 da CDPD e Theresia Degener e Andrew Begg, From Invisible Citizens to

Agents of Change: A Short History of the Struggle, in The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities. A Commentary, Della Fina, Valentina, Cera, Rachele, Palmisano, Giu- seppe (Eds.), Springer, 2017, p. 23

35 Geraldo Rocha Ribeiro, A Protecção,p. 427. 36 Proposta de Lei n.º 110/XIII, p. 3.

OS NOVOS REGIMES DE PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM CAPACIDADE DIMINUÍDA Paula Távora Vítor

uma medida de apoio quanto à capacidade relativa a atos de natureza pessoal. O regime do maior acompanhado parece aderir a esta exigência, numa proclamação inicial de que “exercício pelo acompanhado de direitos pessoais” é livre (artigo 147.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC). Tal está em consonância com a ideia de que ser beneficiário de uma qualquer medida de apoio não tem de implicar, nomeadamente, falta de capacidade para consen- tir, para casar, para perfilhar ou para exercer responsabilidades parentais. É aliás o que decorre tanto da Convenção de Oviedo38 (artigo 6, n.º 3 ), como da Convenção das

Nações Unidas (artigo 23.º do CDPD).

Mas as exigências do direito internacional vão mais longe. A CDPD determina o re- conhecimento às pessoas com deficiência dos direitos de “contraírem matrimónio e [de] constituírem família com base no livre e total consentimento dos futuros cônjuges”, de de- cidirem sobre o estabelecimento de vínculos de filiação, nomeadamente “sobre o número de filhos e o espaçamento dos seus nascimentos”, mas também que não haja separação da criança dos seus pais “contra a vontade destes, exceto quando as autoridades competentes determinarem que tal separação é necessária para o superior interesse da criança”.

Ora, o regime do maior acompanhado, todavia, admite que a própria sentença de acompanhamento determine a restrição destes direitos pessoais. Pense-se no direito a casar que pode ser restringido na sentença de acompanhamento ou no próprio exercício das responsabilidades parentais que é passível de ser inibido em sede daquela decisão39.

Mas as formulações do regime do maior acompanhado são, em alguns pontos, ainda mais ampliadoras da possibilidade de ablação da capacidade para praticar estes atos. Veja-se a falta de capacidade para perfilhar ou para prestar o consentimento para ser perfilhado, que resulta meramente de haver “restrições ao exercício de direitos pessoais” (artigos 1850.º, n.º 2 e 1857.º do CC). Ora, a formulação tão ampla da letra da lei não parece ser admissível face aos restantes dados do sistema, pelo que se justificará aqui de- fender a interpretação restritiva da norma.

O regime do maior acompanhado encaminha-se, portanto, na direção da preservação da capacidade no âmbito dos direitos pessoais. Ao contrário da interdição e da inabilitação, não resulta diretamente da instauração da medida de proteção a eliminação da capacidade (de gozo) para estes atos. Todavia, fica aquém daquelas exigências ao permitir que seja na própria decisão que determina o acompanhamento que esta limitação tenha lugar.

Várias questões podem levantar-se quanto à possibilidade que é assim aberta pela lei, desde logo, quanto ao fundamento legal para restringir direitos pessoais. Lembremo-nos que alguns destes direitos são objeto de tutela constitucional40, pelo que qualquer restri-

ção de que sejam alvo depende da determinação dos seus pressupostos. Ora, a determi- 38 Ver artigos 6 e 9 da Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human Being with regard to the Application of Biology and Medicine: Convention on Human Rights and Bio- medicine, disponível em: https://rm.coe.int/168007cf98.

39 Cf. as versões introduzidas pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, do artigo 1601.º b), relativo

à capacidade matrimonial, do artigo 1913.º, n.º 1, al. b), sobre a inibição do exercício das respon- sabilidades parentais, do artigo 1933.º, n.º 2, quanto à nomeação como tutor ou o artigo 2189.º, al. b), relativo à capacidade para testar.

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nação da capacidade quanto a estes atos deve ser realizada relativamente a cada um e em sede própria da sua prática41.

Finalmente, ao eleger como fim a inclusão da pessoa maior, o novo sistema abandona a conceção de que a incapacitação jurídica constitui, ela própria, o meio de proteção. Tal não implica necessariamente que deixe de ser reconhecida como ferramenta necessária de proteção, face a determinados casos concretos. No entanto, exige-se uma especial densi- dade ao nível da sua fundamentação, que deve incluir a identificação dos interesses pes- soais e patrimoniais que justificam a sua restrição, das situações de perigo que são criadas pela incapacidade natural e do seu nexo com a potencial auto-lesão daqueles interesses42.

Em suma, sendo o novo entendimento da incapacidade uma das linhas essenciais do novo regime, este foca-se na sua desvalorização e contenção, em favor da promoção da capacidade.

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