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AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

4. As (in)capacidade e a capacitação

4.3 O quadro jurídico contemporâneo da capacitação

O panorama anteriormente traçado permite compreender que o regime jurídico das capacidades não se reconduz unicamente ao Código Civil, ao contrário do percurso seguido pela generalidade da jurisprudência, que, por exemplo, nos casos de interdição e inabilitação, tem persistentemente ignorado o citado artigo 12.º da CDPD, quando o mesmo já estava vigente, não tendo efectuado qualquer leitura da disciplina daqueles últimos à luz deste.62

Este quadro jurídico multinível, porquanto são distintas as suas fontes, foi ultima- mente completado com a Lei n.º 49/2018, de 14/ago. (DR I, n.º 156), ao instituir o re- gime do maior acompanhado, substituindo precisamente aqueles institutos da interdição e inabilitação do Código Civil, assim como com a Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/ago. (DR I, n.º 158), ao introduzir alterações às leis eleitorais.

Através da primeira optou-se por um regime monista híbrido que, só por si, tanto permite um sistema de apoio, como manter um sistema de substituição, conferindo, de resto, preferência a este último, porquanto a representação legal começa e acaba na tutela (artigo 145.º, n.º 4). Poder-se-ia argumentar a favor desta restrição legal substitutiva, por via tutelar, da capacidade jurídica, mediante o artigo 26.º, n.º 4 da Constituição, por- quanto este só afasta por inconstitucionalidade as restrições com fundamentos políticos. Mas esta é uma leitura desfocada da realidade constitucional, mormente da compreensão dialógica das suas múltiplas fontes normativas constitucionais. Diremos, por agora, que a possibilidade de restrição do direito fundamental de personalidade na vertente da capa- cidade civil não é um mandato constitucional em branco, conferindo total liberdade de conformação legislativa. E isto porque a leitura daquele segmento normativo (artigo 26.º, n.º 4), deve ser conjugada com os artigos 13.º, 18.º, n.os 2 e 3, 16.º, n.º 2 — interpreta- do extensivamente, de modo a abranger qualquer declaração internacional específica dos direitos humanos –, 26.º, n.º 1, todos da Constituição, 26.º da CDFUE e o artigo 12.º da CDPD. Assim e para obstar a esta ilegítima preferência por um modelo de substituição, que contraria os compromissos assumidos pelo Estado Português, sugerimos, mediante uma forte sustentação da capacitação jurídica, uma interpretação legal conformada pelo referenciado bloco normativo multinível, ancorado no valor constitucional da autonomia pessoal, que anteriormente desfiámos, conferindo primazia aos modelos de apoio.

62 Acs. TRC 11/11/2014; TRC 13/09/2016; TRG 28/09/2017; TRC 17/10/201, TRG

AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO Joaquim Correia Gomes

Mediante a segunda, continua-se a interditar a capacidade eleitoral das pessoas com discapacidades mentais, quando “notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento”, pelas simples razão de estarem “internados em estabelecimentos psiquiátricos” ou como tais “declarados por uma junta de dois médicos” — estas duas últimas circunstâncias é que são determinantes da inibição do direito ao sufrágio, pois ocorrendo apenas aquele primeira circunstância, nada disso acontece. Este recorte legislativo, mantém a tradição da Lei n.º 2.105, de 28/ mai/1946 (DG I, n.º 116), dos tempos da autocracia salazarista, relativamente aos “no- toriamente reconhecidos como dementes” (artigo 2.º, n.º 2) — agora com aquela outra designação, mais eufemística, na linha de uma “langue de bois”. E continua a consagrar que um internamento em estabelecimento psiquiátrico ou uma declaração de dois mé- dicos, que putativamente designa por “junta”, restrinja os direitos liberdades e garantias de participação política, suspendendo o direito de sufrágio (48.º da Constituição). Ora, nem o internamento médico por razões de saúde mental traduz, só por si, qualquer limi- tação da capacidade eleitoral, nem a Constituição confere aos médicos qualquer tipo de função jurisdicional de administrar a justiça, pois esta está acometida aos tribunais (ar- tigo 202.º, n.º 1), sendo nítida a ilegitimidade constitucional daquela disposição legal.

Por último, consideramos que o arsenal jurídico fornecido pelas diretivas antecipadas de vontade (artigo 2.º, Lei n.º 25/2012), atenta a abrangência de situações de prestação de cuidados de saúde, incluindo os casos de doença avançada e em final de vida, como seja o delinear do plano terapêutico final (artigo 3.º, n.º 2, Lei n.º 31/2018), conjugado com o mandato com vista ao acompanhamento (artigo 156.º do Código Civil), possibili- tando a existência de um procurador ou/e acompanhante ou de um assistente único, permite a coexistência e coordenação de regimes e a realização de um mandato global de planea- mento futuro dos cuidados de saúde e de gestão do património.

5. Conclusões

O reconhecimento da autonomia pessoal, enquanto expressão dos direitos humanos, no sentido de que cada pessoa — atenta as suas condições e no seu contexto social, am- biental — possa estabelecer o governo da sua vida, de acordo com a sua vontade, desejos e interesses, corresponde a uma reivindicação moral, que é politicamente legitimada, sendo juridicamente sustentável e exequível. Isto significa que uma pessoa não seja con- dicionada por qualquer tipo de coerção, manipulação ou incentivo (dimensão negativa), dispondo de condições efetivas para refletir, exercer e fazer valer a sua autonomia pessoal (dimensão positiva), nas suas diversas modalidades e variantes.

Uma pessoa é autónoma quando, dispondo das informações necessárias e adequadas (autonomia informativa), a propósito das suas possíveis opções e de acordo com as suas funcionalidades e habilidades (autonomia funcional), as suas condições internas (auto- nomia governativa) e as circunstâncias externas (autodeterminação), mesmo que tenha de socorrer-se de um sistema de apoio (autonomia capacitiva), decide em conformidade (autonomia deliberativa), agindo, por comissão ou omissão, por si ou através de outros (autonomia representativa), de acordo com a sua livre vontade, desejos e interesses, ainda

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que previamente manifestados (autonomia prospetiva), manifestando esta por qualquer meio de transmissão (autonomia comunicativa).

O maior desafio do presente é que a jurisprudência seja auto-criativa, fazendo uma leitura dialógica do quadro jurídico multinível da capacitação, mormente à luz dos direi- tos humanos, não se restringindo ao instituto do maior acompanhado do Código Civil, percebendo que já não estamos no domínio ultrapassado das interdições e inabilitações. O maior desafio para o futuro é que venha a ser uma realidade o mandato global de pla- neamento futuro dos cuidados de saúde e de gestão do património.

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