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ELEMENTOS DE DIREITO COMPARADO QUANTO AO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES

2. O que é o cuidado? Algumas implicações éticas, políticas e sociais

De maneira geral, define-se a atividade de cuidar como a ação social dirigida a garan- tir a sobrevivência social e orgânica das pessoas que carecem ou perderam a autonomia e precisam da ajuda de outrem para realizarem os atos essenciais do quotidiano1. Por um lado, a experiência de cuidar e de sermos cuidados está a marcar a forma de nos autodefi- nirmos, assim como os nossos relacionamentos sociais. Hoje em dia, o cuidado constitui uma parte integral do processo através do qual a sociedade mantém e reproduz a saúde física e a força de trabalho. Como nos relembra Pérez Orozco, o cuidar apresenta uma dupla dimensão: tanto material ou corporal — aliás, realizar tarefas concretas com resul- tados tangíveis que visam atender o corpo e as suas necessidades fisiológicas — quanto 1 Sandra Huenchuan, ¿Qué más puedo esperar a mi edad? Cuidado, derechos de las personas-

mayores y obligaciones del Estado, in Sandra Huenchuan, Rosa Icela Rodríguez (org.), Autono- mía y dignidad en la vejez: teoría y práctica en políticas de derechos delas personas mayores (LC/L.3942), Santiago de Chile, CEPAL, 2014, p. 153, pesquisável em https://repositorio.cepal.org/bitstream/ handle/11362/39570/S1421014_es.pdf?sequence=1&isAllowed=y (aceso a 5/09/2018).

O DIREITO E O DEVER DE CUIDADO Jorge Gracia Ibáñez

imaterial, afetiva ou relacional — relativa ao bem-estar emocional2. Partindo desta dupla dimensão, o cuidado exige amor, carinho, afeto (love), mas também trabalho (labour). Aliás, identidade e atividade. Estamos diante, como frisam Finch e Groves, de um tra- balho do afeto (a labour of love)3. É também inserida neste contexto social que Gilligan, autora muito citada e nem sempre bem compreendida, propõe uma ética do cuidado, vista como responsabilidade social que procura o bem-estar das pessoas4.

No debate acerca do cuidado e sua interligação com os direitos humanos, temos de introduzir o conceito de dependência. A dependência é um risco constante na vida hu- mana. Os indivíduos podem precisar de cuidados por causa de uma deficiência, doença crónica ou trauma que venham limitar a sua capacidade de realizar os seus próprios cuidados ou atividades pessoais básicas no quotidiano. Como conclui María Ángeles Durán, o modelo de resposta às necessidades geradas pela dependência da população em geral, mas especialmente em pessoas mais velhas ou portadoras de deficiência, é deter- minado pela potencial estimativa da oferta de cuidados, o que não é uma categoria de- mográfica, senão social e política5. Este modelo dependerá da resposta coletiva oferecida aos seguintes problemas: Quem tem o direito / obrigação de cuidar de quem? Com qual base legal, moral ou social? Até que limite? Com que contrapartida? Quais os mecanis- mos sociais e legais que interagem para garantir / recompensar / punir a violação destes direitos e obrigações?

Com efeito, na sociedade hodierna este debate foca-se especialmente sobre quem e como é responsável pelo cuidado de determinados coletivos: nomeadamente os doentes, as pessoas com deficiência e os idosos dependentes6. E, mais especificamente, sobre se tem que ser a sociedade como um todo quem deve assumir essa tarefa ou se devem lidar com ela, de forma pessoal, os indivíduos e as famílias afetadas.

A resposta a esta questão supõe consequências importantes do ponto de vista do de- senvolvimento de políticas sociais e familiares. Todavia, a plena consideração do cuidado como um direito social está longe de ser uma questão consensual. Numa abordagem de di- reitos, o cuidado pode ser definido como um direito subjetivo, aliás, como uma expetativa que a pessoa formou acerca da ação do Estado, dos poderes fáticos e do resto das pessoas.

A obrigação do Estado diante da procura de cuidados é garantir o acesso aos serviços sociais para todas as pessoas que se encontrem em situação de dependência, quer de 2 Amaia Pérez Orozco, Amenaza tormenta: la crisis de los cuidados y la reorganización del

sistema económico, Revista de Economía Crítica, 5, 2006, p.10, pesquisável em http://observatori- desc.org/sites/default/files/1_amenaza_tormenta.pdf (acesado a 5/09/2018).

3 Janet Finch e Dulcie Groves, A Labour of Love. Women, Work and Care, 1.a ed., Londres,

Routeldge. 1983.

4 Carol Gilligan, C., In a different voice. Psychological theory and woman´s development, 1.a ed.,

Cambridge, Harvard University Press, 1982; Carol Gilligan, Hearing the difference: Theorising connection, in Hypatia, vol. 10, 2, 1995, pp.120 — 127.

5 Mª Ángeles Durán, Dependientes y cuidadores: el desafío de los próximos años, Revista del Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, 60, 2006, pp.57-73, pesquisável em http://www.empleo. gob.es/es/publica/pub_electronicas/destacadas/revista/numeros/60/Est04.pdf (aceso a 5/09/2018).

AUTONOMIA E CAPACITAÇÃO

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forma temporária, quer permanente. Estaríamos diante de um direito estreitamente re- lacionado com a solidariedade e, especialmente no seu aspeto familiar, também conexo com a ideia de afetividade.

Desde a abordagem dos direitos, o cuidado pode ser definido como um direito sub- jetivo; aliás, como uma expetativa que a pessoa se formou acerca da ação do Estado, dos poderes fáticos e do resto das pessoas7. A obrigação do Estado no que diz respeito à procura de cuidados passa por garantir o acesso aos serviços sociais para todas aquelas pessoas que se encontrarem em situação de dependência, quer de forma temporária quer permanente8. No entanto, como ressalta Nuria Belloso, esta ligação entre cuidados-afe- tividade-solidariedade pode ser perversa no sentido de colocar a responsabilidade toda do lado das famílias9. Assim sendo, o significado da solidariedade neste contexto devia ir muito mais além do que solidariedade intergeracional no seio das famílias até atingir uma dimensão social global. Desta forma, o direito não se pode apoiar num vínculo de afetividade a que não reconhece qualquer efeito, embora o paradoxo resida, neste caso, no facto de o cuidado estar socialmente baseado também nessa ideia de afetividade.

A solidariedade intergeracional no seio das famílias, que estariam a suportar uma parte importante dos cuidados nas nossas sociedades, não pode ser uma desculpa, a nosso ver, para os Estados não intervirem através de políticas públicas adequadas desde uma pers- pectiva de direitos. Sendo assim, a consideração do cuidado enquanto direito supõe para o Estado, não apenas obrigações negativas (e.g. não impedir o acesso das pessoas idosas ao sistema de saúde), mas também obrigações positivas, tais como o fornecimento dos meios para cuidar (no âmbito familiar e no âmbito institucional). Ademais é necessário assegurar que esse cuidado seja exercido em condições de igualdade entre homens e mulheres, pois tradicionalmente as tarefas de cuidado têm sido atribuídas na sociedade às mulheres geran- do graves desigualdades. Desta forma, “a compreensão da cidadania pode ser enriquecida por uma ética do cuidado, mas deve ser garantida por uma ética dos direitos” 10.

Como concluem Gherardi e Zibecchi: “A mudança de paradigma que implica o reco- nhecimento do cuidado como um direito que inclui a existência do direito ao cuidado, a cuidar de si e a ser cuidado, constitui uma nova questão social, essencial para gerar condições para uma sociedade mais justa e para que a promessa de igualdade de oportu- nidades para mulheres e homens esteja mais perto de ser uma realidade” 11.

7 Luis Daniel Vazquez e Sandra Serrano, Los principios de Universalidad, Interdependencia, Indivisibilidad y Progresividad. Apuntes para su aplicación práctica, Mexico, Biblioteca Jurídica Vir- tual UNAM, 2017, pp. 137-138, pesquisável em https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/ libros/7/3033/7.pdf (aceso a 5/09/2018).

8 Sandra Huenchuan, ¿Qué más puedo esperar a mi edad?, 2014, p. 158.

9 Núria Belloso Martín, La proyección del cuidado y la afectividad en el principio de soli-

daridad (familiar). Una propuesta del cuidado como derecho social, in Tânia Da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira e Antônio Carlos Mathias Coltro, (org.), Cuidado e Afetividade, 1.a ed., São Paulo, Atlas, 2017, p. 435.

10 Ruth Lister, Dilemmas in engendering citizenship, Economy and Socety, 1, 1995, pp. 1-40. 11 Natalia Gherardi e Carla Zibecchi, El derecho al cuidado: ¿Una nueva cuestión social ante

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3. O direito/dever do cuidado do ponto do vista dos direitos humanos: análise da

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