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AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

1.1. As origens helénicas: uma ideia política (autonomia política)

Os helenos na antiguidade organizavam-se de acordo com a sua identidade cultural, os seus interesses políticos e as suas leis (nómoi), através de múltiplas cidades-estado (polis).4 Cada uma destas assumia-se como uma comunidade (koinonia) de cidadãos (politai), com as suas instituições políticas (politeia), tendo uma estrutura organizativa própria. Por sua vez, as relações intercomunitárias deram origem a uma estrutura federa- tiva, desde a mais rudimentar e tribal (ethnos) até à mais sofisticada e estadual (koinon ou 1 A designação original era “Autonomia e interdição/inabilitação”, mas as subsequentes e recentes

alterações legislativas levaram a ter em atenção não só o passado, como o presente e o futuro.

2 Stefano Rodotà, La vita e le regole — Tra diritto e non diritto, Milano: Feltrineli, 2009, p. 248;

considera que sendo a morte natural, o morrer é governável, sendo uma expressão da autonomia, enquanto Carlo Castronovo, Autodeterminazione e Diritto Privato, in Francesco D’Agosti- no (cura di), Audeterminazione: Un diritto di spessore costituzionale? Atti del Convegno nazionale dell’U.G.C.I, Pavia, 5-7 dicembre 2009, Milano: Giuffrè, 2012, p. 54, considera que o suicídio, a renúncia ou a desistência de tratamento médico surgem como manifestações da autodeterminação, enquanto subcategoria da liberdade.

3 J. B. Schneewind, The invention of Autonomy — A History of Modern Moral Philosophy, Cam-

bridge: Cambridge University Press, 2005, Reimp., pp. 514, 515, ainda que considere David Hume e Jean Jacques Rousseau, como os percursores de uma moral autónoma, situa Kant como o inventor da autonomia dos agentes racionais.

4 Mogens Herman Hansen, , Polis and City-State — An Ancient Concept and its Modern Equiv- alent, Acts of the Copenhagen Polis Centre, Vol. 5, Copenhagen: Trykkeriet Viborg, 1998, pp. 52, 53 sobre o conceito de polis e os seus diversos sentidos.

AUTONOMIA E (IN)CAPACIDADES: PASSADO, PRESENTE E FUTURO Joaquim Correia Gomes

sympoliteia).5 A autonomia surge, então, como a expressão política de cada uma dessas cidades-estado ou comunidades ao nível da sua organização territorial, melhor expressa nas suas relações externas (autópolis), mas abrangendo outras autonomias, como a fiscal (autotelés) e a judicial (autódikos).6 A autonomia e a liberdade (eleuthería) de cada terri- tório (khóra) seriam a expressão máxima da sua integridade política e da soberania, como agora se designa, sem que tal, nalguns casos, chegasse a ser expressamente consagrado ou referenciado. No entanto, e na prática, a autonomia acabava por ser uma concessão das cidades-estados mais influentes ou poderosas relativamente às demais, permitindo a cada uma destas estabelecer as suas normas de convivência.7 Deste modo, a concepção de autonomia surge essencialmente relacionada com a cidade-estado, mais precisamente com a organização da respectiva comunidade e no âmbito das relações intercomunitá- rias, tendo um cunho essencialmente político, sendo estruturante para a sua soberania.

Entretanto, e no âmbito da literatura helénica, tem sido reconhecido que a palavra autonomia (αὐτονομία), de que é exemplo a Antígona de Sófocles, foi utilizada como metáfora da autonomia política, para descrever uma qualidade pessoal de quem desafiava os poderes da polis ou então, como sucedeu no Tratado Hipocrático, enquanto antinomia de despotismo.8 Mas foi igualmente assumida como um “princípio de vida”, tal como foi invocado pelos estoicos, a partir da sua “filosofia de vida”, sustentando que só as pessoas sensatas podiam viver segundo as suas escolhas.9 Uma dessas referências foi Dião Crisós- tomo, segundo o qual o ser humano é por natureza livre e não escravo, estando a justiça nas suas “próprias leis”, salientando que estas não são arbitrárias ou despóticas, mas que correspondem às leis da natureza, que seriam as leis de Zeus.10

A autonomia tem sido confundida ou equiparada com autarcia, que tem a sua origem no grego autarkeia (αὐτάρκεια)11 — sendo muitas vezes associada a liberdade e indepen- 5 Hans Beck, New Approaches to Federalism in Ancient Greece — Perceptions and perspectives,

in Kostas Buraselis; Kleanthis Zoumboulakis, (Ed.), The Idea of European Community in History: Conference proceedings, Volume II — Aspects of connecting poleis and ethne in Ancient Greece, Athens: National and Capodistrian University of Athens, pp. 177-190 (180, 181).

6 Emiliano J. Buis, Ancient Entanglements: The Influence of Greek Treaties in Roman “Inter-

national Law” under the Framework of Narrative Transculturation, in Thomas Duve (Ed.), Entan- glements in Legal History: Conceptual Approaches, Berlin: Max Planck Institute, 2014, pp. 151-185 (156, nota 12).

7 Martin Ostwald, AUTONOMIA: Its genesis and early history, USA: Scholars Press, 1982, pp. 7-10. 8 Martin Ostwald, ob. cit, 1982, pp. 11/12.

9 John M. Cooper, Stoic Autonomy, in Ellen Frankel Paul; Fred D. Miller Jr.; Jeffrey

Paul, (Edited by), Autonomy, Cambridge: CUP, 2003, p. 5.

10 Dyo Chrysostom, On Freedom, in Discourses V, The Loeb Classical Library, London: Wil-

liam Heinemann Ltd, 1951, edição bilingue, tradução de H. Lamar Crosby, pp. 317 e 319.

11 A palavra grega autarkeia, também mencionada como autarkheia, resulta da composição de αuτός (si mesmo) e αρχω (comandar), sendo literalmente “comandar-se a si mesmo” ou “auto-co- mando”. Derivou para o latim autarchia e para o português autarcia ou autarquia, tendo o signifi- cado linguístico de poder absoluto ou autossuficiência. Muito embora os dicionários portugueses sejam praticamente unânimes em atribuir o seu significado, uns optam pela designação autarcia, como sucede com Lello Universal — Dicionário Enciclopédico, Vol. I, Porto: 1997, p. 256, dizendo

AUTONOMIA E CAPACITAÇÃO

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dência.12 A diferença entre uma e outra não é apenas o grau de governamento estadual ou pessoal, mas é essencialmente substantiva. A primeira exprime “auto-governação” (self-rule), ao nível interno, do exercício dos poderes ou faculdades, assim como da sua orientação, enquanto a segunda significa “autossuficiência” relativamente à influência do exterior, assumindo-se um convicto isolacionismo.13 Precisando o conceito de autarkeia no pensamento helenístico, encontramos essencialmente duas perspectivas: (i) a de Aris- tóteles, segundo o qual seria a independência da polis em relação ao mundo exterior; (ii) a cínica ou estoica, através da máxima revelação do individualismo, sendo a possibilidade do homem virtuoso ser feliz, independentemente dos circunstancialismos externos en- volventes, como sejam dos cuidados que lhe fossem prestados ou das alegrias reveladas pelos outros.14

Em suma, a autonomia na antiguidade helénica foi tanto uma manifestação política ou comunitária, como uma expressão individual ou pessoal. No entanto, o termo au- tonomia era sobretudo empregue num contexto de política de estados e das respectivas comunidades, considerando-se como tal aqueles que produziam e aplicavam as suas pró- prias leis, estabelecendo a sua “auto-governação”, fazendo-o de modo distinto em relação às demais cidades-estado, afirmando quanto a estas a sua “autodeterminação”. Por sua vez, a autarcia representava tanto a independência dessas cidades-estado, como o “indi- vidualismo isolacionista” de quem, por si só, procurava a felicidade.

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