• Nenhum resultado encontrado

2. MATERIAIS E MÉTODOS

4.3. Morfologia funcional da dentição e paleoecologia em Mariliasuchus amarali Mariliasuchus amarali é reconhecido por possuir uma heterodontia bastante

4.3.3. Anatomia interna do esmalte dentário em M amaral

Sander (1999), em sua extensa revisão sobre a morfologia interna do esmalte dentário em répteis, afirmou que os Crocodyliformes formavam um dos grupos taxonômicos mais relevantes para o estudo da micromorfologia do esmalte dentário, uma vez que apresentam diversas variações ecomorfológicas em sua dentição, suas relações filogenéticas são relativamente bem compreendidas, sua amelogênese é potencialmente estudável em animais atuais e seus materiais são relativamente fáceis de obter (p. 94). Embora as relações filogenéticas dos crocodilomorfos não estejam tão bem resolvidas quanto o autor quis demonstrar, as outras afirmações são válidas. Entretanto, mesmo com diversos materiais fósseis conhecidos para o grupo, no próprio levantamento de Sander (1999) há apenas amostras relativas a dois clados de crocodilomorfos: Eusuchia e Thallatosuchia. Nos últimos anos, algumas contribuições importantes foram realizadas no estudo da microestrutura do esmalte dentário em répteis (Creech, 2004; Hwang, 2005; Hwang, 2011), mas o amplo e diverso clado dos Notosuchia nunca teve nenhum representante estudado neste sentido. A presente contribuição representa, então, a primeira descrição da microestrutura do esmalte dentário para o grupo dos notossúquios. O padrão zifomorfo (sensu Andrade & Bertini, 2008c), exclusivo para Mariliasuchus, também é descrito pela primeira vez em sua anatomia interna.

Em répteis, ao contrário do que é observado em mamíferos, a morfologia interna dos cristais de esmalte está mais relacionada à função da dentição do que à filogenia entre os táxons (Sander, 1999), embora alguns estudos recentes tenham notado a presença de padrões filogenéticos na microestrutura do esmalte dentário em dinossauros (Hwang, 2005; 2010). O tipo de esmalte predominante em Mariliasuchus é o parallel crystallite enamel, com presença de BUL em variáveis espessuras ao longo da série dentária. Esse tipo de esmalte aparece principalmente em animais de alimentação durofágica, como em alguns ictiossauros, mosassauros, lagartos varanídeos e teiídeos, etc, embora ele também esteja presente excepcionalmente em animais com outras dietas inferidas, como carnívoros, herbívoros e onívoros de alimentação variada (Sander, 1999). A observação deste padrão em

123 Mariliasuchus, juntamente com a constatação de uma densa camada de esmalte recobrindo a coroa dentária com até pouco mais de 300µm de espessura, reforça a hipótese de que o táxon possuía uma alimentação com inclusão de itens duros durante sua vida, com uma coroa dentária altamente reforçada por cristais de esmalte paralelos entre si. Essa combinação de características pode ter favorecido o processamento alimentar durante a oclusão dentária ao oferecer uma camada de esmalte bastante resistente a quebras e fraturas.

Foram observadas incremental lines ao longo de todos os morfótipos dentários estudados, com maior ou menor evidência. Entretanto, no caniniforme as incremental lines são muito mais numerosas e evidentes. Como elas representam faixas de crescimento diferenciado entre os cristais de esmalte (Sander, 1999), acabam formando “espaços” maiores entre pacotes de cristais, que são visíveis numa coloração mais escurecida em MEV (Figuras 132 II e 133 IV). A presença mais frequente de incremental lines no caniniforme é aqui atribuída ao fato deste morfótipo ser o maior elemento dentário em Mariliasuchus que, portanto, apresenta um crescimento maior e possivelmente mais rápido do que outros elementos dentários e facilita o surgimento de zonas de crescimento desigual entre os cristais. Outra característica diferenciada da microestrutura dentária em Mariliasuchus é a presença de numerosos enamel tubules ao longo da série dentária, principalmente nos dentes mais posteriores da maxila. Embora a natureza de origem dos túbulos não seja bem compreendida (Sander, 1999), a presença de túbulos é bem comum em mamíferos (Koenigswald & Sander, 1997), e a alta frequência destas estruturas em Mariliasuchus pode, também, indicar algum tipo de convergência estrutural entre os grupos. Mais estudos dessa natureza em crocodilomorfos heterodontes podem ajudar a elucidar essa questão, uma vez que existe a hipótese de que esses animais possam ter ocupado nichos ecológicos semelhantes aos de mamíferos durante o Cretáceo do Gondwana (O’Connor et al., 2010).

É importante notar que o padrão parallel crystallite enamel observado em Mariliasuchus não é formado por cristais perfeitamente paralelos entre si (Figuras 131-134). A natureza levemente ondulada dos cristais de esmalte, em corte longitudinal, lembra o padrão wavy enamel descrito pro Sander (1999) para o grupo dos Hadrosauridae e Iguanodontidae e ampliado por Hwang (2005) para o grupo dos Euornithopoda mais derivados. Embora o padrão wavy enamel não seja aplicável para Mariliasuchus (uma vez que no crocodilomorfo foram observadas incremental lines, que não são visíveis nos euornitópodes, e nos cortes transversais dos dentes de M. amarali não foi observado um padrão tão ondulado como o wavy enamel deveria ser), alguma convergência funcional entre

124 os dois clados pode existir. Hadrossauros e iguanodontes são dinossauros herbívoros e, assim como Mariliasuchus, apresentam uma relativamente alta capacidade de processamento alimentar intraoral (Sander, 1999). O padrão observado no presente trabalho também lembra a descrição de Hwang (2005) para o tipo de esmalte encontrado em alguns dinossauros terópodes basais e prossaurópodes: diverging parallel crystallite enamel. Apesar do nome ambíguo (por incluir as palavras “divergente” e “paralelo” na mesma nomenclatura), esse foi o termo escolhido pelo autor para designar um tipo de esmalte que é formado por cristais que partem perpendicularmente do EDJ, em direção à superfície externa da camada de esmalte, mas que não são perfeitamente paralelos entre si, formando agrupamentos de cristais com angulação diferenciada (divergentes). Por outro lado, as adaptações da dentição (forma da coroa dentária, macrodesgaste dentário, etc) em Mariliasuchus lembram mais as observadas em euornitópodes do que em terópodes e/ou prossaurópodes. De qualquer maneira, fica claro que o padrão parallel crystallite enamel, tido como basal para os répteis (Sander, 1999), é muito generalista e engloba uma série de táxons amplamente diferenciados quanto às suas relações filogenéticas e variações ecomorfológicas. Uma revisão deste padrão, num estudo mais amplo, pode designar melhor algumas de suas variações mais importantes e elucidar sua função na dentição dos Amniota.

Outra questão elucidada com a presente análise foi a ocorrência de dentículos verdadeiros em Mariliasuchus. Cortes anatômicos longitudinais e transversais mostraram um padrão único da natureza de formação da carena serrilhada, onde a porção mais apical da carena é serrilhada por dentículos “falsos” (ou seja, apenas tubérculos formados por espessamento do esmalte, sem a participação da dentina) enquanto que a porção mais basal da carena é serrilhada por dentículos verdadeiros (com a participação da dentina). Esse padrão é único até o momento em Archosauria, e corrobora com a hipótese de que Mariliasuchus deve ser incluído em uma categoria de dentição à parte dentro dos Crocodylomorpha, que Andrade & Bertini (2008c) descreveram como zifomorfo.