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2. MATERIAIS E MÉTODOS

3.5. Aspectos microscópicos da dentição em Mariliasuchus amaral

3.5.2. Microestrutura interna do esmalte dentário

Inicialmente, quatro dentes foram extraídos do material MZSP-PV 813, um pertencente a cada morfótipo dentário (incisiforme, caniniforme, pré-molariforme e molariforme), para a análise de suas respectivas microestruturas do esmalte. Posteriormente, um segundo molariforme foi extraído do mesmo espécime, cujo objetivo foi preparar adequadamente o material para evidenciar a natureza de formação de seus dentículos (Figura 62).

Como não há uma tradução adequada para diversos termos técnicos expostos em Sander (1999), como incremental lines, basal unit layer e schmelzmuster, optou-se aqui por descrever a micromorfologia do esmalte utilizando termos técnicos não-traduzidos. Os padrões serão descritos para cada morfótipo dentário presente em Mariliasuchus.

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3.5.2.1. Incisiforme

A camada de esmalte da coroa dentária neste morfótipo apresenta uma espessura que varia entre aproximadamente 100µm a 200µm. A coroa apresenta baixa ornamentação, e isso é visível pela camada externa do esmalte ser praticamente paralela em relação à junção entre o esmalte e a dentina (EDJ, do original em inglês enamel dentin junction) (Figura 131 I). Os cristais de esmalte partem perpendicularmente em relação ao EDJ até a porção mais externa da camada de esmalte (Figura 131 II). Esse tipo de organização estrutural é conhecida como parallel crystallite enamel, onde os cristais são paralelos entre si (Sander, 1999). Entretanto, é interessante notar que os cristais não são perfeitamente paralelos entre si, formando frequentemente núcleos de convergência/divergência e, em alguns pontos, chegam a formar pacotes relativamente curvos de cristais (Figura 131 III). Este padrão lembra um tipo de organização encontrada exclusivamente em dinossauros ornitópodes, principalmente em hadrossauros, conhecido como wavy enamel (Sander, 1999; Hwang, 2005). Como o padrão wavy enamel não apresenta incremental lines visíveis (que são linhas paralelas à EDJ formadas por crescimento diferencial do esmalte), e as incremental lines são visíveis no esmalte dentário de Mariliasuchus (principalmente no caniniforme – ver Figura 132), enfraquece-se a hipótese de que Mariliasuchus possa ser o primeiro táxon fora de Euornithopoda a apresentar wavy enamel. Por outro lado, o padrão curvado dos cristais “paralelos” observados aqui lembra a descrição de Hwang (2005) para um outro padrão, não reconhecido por Sander (1999), que Hwang descreveu como diverging parallel crystallite enamel. O autor reconheceu a ocorrência deste padrão para diferentes clados de dinossauros: terópodes basais e prossaurópodes.

Abaixo da camada de cristais paralelos, próximo à EDJ, é possível observar uma basal unit layer (BUL) bem desenvolvida (Figura 131 IV). A BUL é composta por unidades poligonais de cristais de esmalte, e representa provavelmente o primeiro estágio de amelogênese do esmalte dentário (Sander, 1999). Embora a BUL seja normalmente melhor observada em cortes transversais da coroa dentária, alguns cortes longitudinais também evidenciaram bem sua presença (Figura 131 II). Esse fato se dá pela causticação diferenciada entre o esmalte e a dentina: a dentina, por ser um tecido bem menos mineralizado que o esmalte, sofre maior ação do ácido clorídrico durante a preparação do material para observação em MEV, e “abre” mais espaço para a visualização da base da camada de esmalte (Sander, 1999). O corte transversal mostra, também, a ausência de bordas poligonais bem

95 definidas entre pacotes de cristais de esmalte; essa ausência, junto com a não distinção de zonas bem definidas de convergência/divergência dos cristais em cortes longitudinais, descarta a possibilidade do tipo de esmalte presente ser classificado como columnar enamel.

3.5.2.2. Caniniforme

Foi extraído apenas o ápice do caniniforme para o presente estudo (Figura 62), uma vez que o dente completo é muito comprido para ser analisado dentro do aparelho de microscopia eletrônica. A espessura observada do esmalte no ápice do caniniforme variou de 100µm a 180µm, embora seja razoável supor que a espessura do esmalte em porções mais medianas/basais do caniniforme possa ser muito maior, uma vez que a coroa dentária do caniniforme é mais ornamentada que a do incisiforme, além do fato que o caniniforme representa o maior elemento dentário presente em Mariliasuchus amarali.

Uma característica única do caniniforme, não observada em nenhum outro morfótipo dentário de Mariliasuchus, é a presença de incremental lines bem desenvolvidas, distribuídas ao longo de toda a camada de esmalte. Embora as incremental lines estejam presentes também em outros morfótipos dentários, no caniniforme elas são muito mais numerosas e evidentes (Figura 132 II-IV). Alguns túbulos de esmalte (enamel tubules em Sander, 1999) estão presentes, e são visíveis principalmente próximos à BUL (que é pouco desenvolvida no caniniforme) e à EDJ. Esses túbulos são passagens não mineralizadas que partem da EDJ em direção às camadas internas do esmalte, e podem estar relacionados à deposição de cristais de esmalte (Sander, 1999). Enamel tubules são bastante comuns, também, em mamíferos (Koenigswald & Sander, 1997). O preenchimento da camada de esmalte, no caniniforme, também é feito por uma camada bem desenvolvida de parallel crystallite enamel, e aqui os cristais de esmalte são levemente menos ondulados quando comparados àqueles do incisiforme (Figura 132 III).

3.5.2.3. Pré-molariforme

O pré-molariforme selecionado para o estudo de sua anatomia interna do esmalte foi o 1º pré-molariforme pré-maxilar (o último elemento dentário da pré-maxila). Este dente possui carena com tubérculos de esmalte apenas em sua superfície distal, na porção posterior da coroa dentária. Através do corte longitudinal anatômico pode-se perceber que, neste elemento, a serrilha da carena é formada apenas por espessamentos diferenciados da camada de esmalte, sem a participação da dentina (Figura 133 I). Em répteis, a presença de carena serrilhada

96 formada por dentículos com participação ou não da dentina é bem variada (Sander, 1999). Prasad & Broin (2002) dividem diversos grupos de crocodilos em “zifodontes verdadeiros” e “zifodontes falsos”, onde uma das diferenças entre os grupos é que os falsos zifodontes apresentam carena formada apenas pelo prolongamento da camada de esmalte (ou seja, sem a participação da dentina), num padrão que eles designaram como dentículos falsos. A carena serrilhada no pré-molariforme é formada apenas por espessamento de esmalte, sem a participação da dentina e, portante, no pré-molariforme não há a presença de dentículos verdadeiros. Entretanto, Mariliasuchus não pode ser designado como um crocodilo falso zifodonte pois apresenta um padrão único em sua dentição, que Andrade & Bertini (2008c) classificaram como zifomorfo.

A espessura da camada de esmalte no pré-molariforme variou de 100µm (no ápice, próximo à zona de desgaste) a 160µm (próximo à base). Próximo ao ápice, os cristais paralelos mudam sua angulação para poder acompanhar a curvatura do dente (Figura 133 II). Notou-se, também, que curvatura dos cristais de esmalte é menos evidente do que a observada nos morfótipos dentários anteriores. A BUL é pobremente desenvolvida neste morfótipo, sendo representada apenas por uma fina camada, e os enamel tubules são ainda mais frequentes (Figura 133 III). Incremental lines são fracamente visíveis em corte longitudinal, e foram melhor observadas apenas em um único trecho mediano da camada de esmalte em corte transversal (Figura 133 IV).

3.5.2.4. Molariforme

Este morfótipo apresentou a camada de esmalte mais espessa dentre todos da série dentária, como seria esperado para o elemento responsável pela oclusão dentária e processamento alimentar. Nos pontos onde a camada de esmalte é mais fina ela tem aproximadamente 100µm (o que parece ser o limite mínimo de espessura observado em todos os morfótipos dentários), enquanto que em seus pontos de maior espessura (como em ornamentações e próximo ao ápice) ela atinge pouco mais de 300µm. Esse alto valor coloca Mariliasuchus entre um dos répteis com a camada de esmalte mais espessa conhecida (levando em consideração as extensas revisões de Sander, 1999 e Hwang, 2005), ainda mais se for considerado o fato de MZSP-PV 813 provavelmente pertencer a um indivíduo subadulto de menor porte.

O corte anatômico permitiu a observação da natureza de formação da carena serrilhada do molariforme, que é motivo de debate entre os pesquisadores. Zaher et al. (2006)

97 consideram que a serrilha é constituída pelo espessamento do esmalte, formando tubérculos globosos de esmalte e não dentículos verdadeiros. Andrade & Bertini (2008b), analisando a morfologia externa da coroa dentária a partir de imagens de Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV), concluem que a serrilha em Mariliasuchus é formada por elementos individualizados, com participação da dentina e, consequentemente, podendo ser caracterizados como dentículos verdadeiros. Um dos objetivos do presente trabalho também era testar estas diferentes hipóteses a partir de cortes anatômicos em dentes de Mariliasuchus, com o objetivo de observar se a carena serrilhada dos molariformes era formada apenas por espessamento da camada de esmalte ou se a dentina participava da formação destas estruturas. A ocorrência de dentículos “verdadeiros” e dentículos “falsos” está amplamente distribuída nos répteis (Sander, 1999), sendo um caráter altamente homoplástico para o grupo. Os cortes anatômicos aqui realizados demonstraram um padrão único e extremamente interessante: a serrilha na carena de Mariliasuchus é parcialmente formada por dentículos verdadeiros e parcialmente formada por tubérculos de esmalte sem a participação da dentina. A porção mais apical das carenas no molariforme mostrou ser formada apenas por espessamento da camada de esmalte, e essa característica ficou especialmente evidente em corte transversal da porção superior da coroa (Figura 135). O corte longitudinal da coroa dentária mostrou que a porção mais basal da serrilha tem sua serrilha formada por pelo menos alguns dentículos verdadeiros, onde a dentina participa da ornamentação da coroa (Figura 135B). Esse padrão de carena (parcialmente formada por dentículos verdadeiros e parcialmente formada por dentículos “falsos”) parece ser único, até o momento, para Mariliasuchus (e, consequentemente, única para o padrão zifomorfo).

Algumas mudanças fundamentais em relação à microestrutura do esmalte de outros morfótipos dentários podem ser observadas no molariforme. Primeiro, neste elemento os cristais de esmalte apresentam pouca ou nenhuma ondulação, sendo muito mais paralelos entre si do que em outros elementos dentários (Figura 134 III). Segundo, a presença de enamel tubules é exponencialmente maior no molariforme do que em outros dentes, onde essas estruturas praticamente dominam a morfologia de toda a base da camada de esmalte em alguns pontos (Figura 134 III). Terceiro, numa observação de um corte longitudinal em posição oblíqua notou-se a presença de uma columnar unit pobremente desenvolvida, com seu característico formato poligonal (no caso, triangular) presente (Figura 134 II). Em quarto lugar, em corte transversal do molariforme, foi possível observar a ocorrência de major discontinuities na anatomia interna do esmalte (Figura 134 III). Essas estruturas são regiões

98 da camada de esmalte onde os cristais, antes perpendiculares à EDJ, se inclinam em distintas angulações para acompanhar a curvatura decorrente de ornamentação na coroa dentária. Como a superfície externa do esmalte é modificada para formar diferentes ornamentações na coroa, ocorre a formação de um “relevo” diferenciado em sua estrutura (Figura 134 IV). Os cristais continuam perpendiculares à EDJ em regiões não ornamentadas, mas em locais onde há a presença de enamel ridges eles se tornam inclinados devido à elevação da estrutura central de ornamentação (Sander, 1999). A consequência disso é o deslocamento dos cristais de esmalte, ora convergindo entre si (major convergences, indicados por setas pretas na figura 134 III) e ora divergindo entre si (major divergences, indicados por setas brancas na figura 134 III, IV).