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CAPÍTULO 1 PREFÁCIO DA DESIGUALDADE TRIBUTÁRIA BRASILEIRA

1.1 TRIBUTAÇÃO BRASILEIRA: EFEITOS, CONCEITOS, ANESTESIA E

1.1.2 Brasil: da anestesia fiscal à ausência de clamor por igualdade

1.1.2.1 Anestesia Fiscal

Após a apresentação de alguns dos mais relevantes estudos sobre as desigualdades sociais (sem querer cometer qualquer injustiça por desconhecimento a outros e esclarecendo que outras tantas pesquisas inerentes ao tema serão acrescentadas no decorrer do atual estudo), decorrentes de características tributárias ainda não detalhadas e tampouco únicas, parece inevitável perguntar-se os motivos pelos quais não se tem observado debates pleiteados pela classe trabalhadora assalariada, a qual, como se pôde observar por meio dos estudos supracitados, possui maior ônus tributário do que a classe empresarial. Nesse sentido, tentar-se-á demonstrar o que algumas reflexões teóricas revelaram.

Em um estudo inédito realizado no Brasil e aplicado na perspectiva da Hipótese de Mill31, Silva e Siqueira (2013, p. 57) descreveram que: “Este estudo encontrou

31 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/viewFile/500/336. Acesso

evidência de que a ilusão fiscal associada à redução da ‘visibilidade’ da tributação tem papel significativo na explicação do crescimento do gasto público no Brasil”. Logo, ignorando propositalmente a consequência que seria o aumento do gasto público (mas sem jamais desmerecê-la), em observação ao que se propõe a pesquisa em tela, e então, recortando ao que a ela interessa, tal estudo não detalha os meios, contudo aponta evidências de mecanismos que de fato poderiam ocultar a tributação. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES, 2011), ao elaborar o artigo intitulado “Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional”, definiu o STB como injusto e apontou alguns fatores que promovem tais injustiças. O primeiro grande problema tributário descrito pelo artigo foi sobre a regressividade, sequencialmente apontando a carga tributária mal distribuída — onde a população mais “pobre” é mais onerada nos tributos do que a população mais “rica” —, sendo que o próprio CDES chegou a conclusões deletérias à sociedade. Mas o que mais chamou a atenção, ao menos às proposituras deste subcapítulo, foi a consequência enunciada pelo estudo, ao discorrer sobre a tributação indireta. Isso porque, conforme a CDES (2011), nos tributos indiretos o consumidor final arca com a tributação, mas não é ele o responsável pelo recolhimento, tornando-se assim a carga tributária praticamente “invisível”, principalmente nos itens de consumo.

É oportuno destacar que neste mesmo artigo o CDES pronunciou a seguinte afirmativa:

O sistema é injusto porque não se verificam as condições adequadas para o exercício da cidadania tributária. Como os tributos indiretos são menos

visíveis que as incidências sobre a renda e a propriedade, é disseminada a

crença na sociedade brasileira de que a população de baixa renda não paga impostos. Em decorrência, as políticas públicas orientadas para a redução das desigualdades e dos índices de pobreza são vistas como benesses tanto pelas camadas mais carentes da população quanto pela parcela da sociedade que se encontra em melhores condições, o que prejudica o entendimento sobre os mecanismos e instituições de participação democrática, dificultando os controles – fiscal e social – sobre o Estado (BRASIL, 2011, p. 15, grifo do autor).

A transcrição acima vai além da estrutura tributária delineada até então, trazendo à luz o que pode ser um prisma imposto pelo pensamento hegemônico presente na estrutura social imbricado no Estado, segundo o qual as pessoas são submetidas à uma espécie de sofisma tributário, sejam elas de qualquer classe social, com a central diferença de que a classe empresarial acredita que arca

majoritariamente com o ônus tributário; já a classe trabalhadora é levada a crer que pouco arca com a tributação quando, na realidade, a forma que se sobrepõe à essência não diminui o fato de o ônus ser intensamente maior aos trabalhadores assalariados.

Ainda no sentido dessa reflexão, Gassen, D’Araújo e Paulino (2013) observaram que a legislação prevalente sobre o consumo no Brasil é mais ou menos enredada a depender do ente federativo competente32. Tal legislação mostrou-se, em outro momento da referenciada pesquisa, extremamente regressiva, segundo tais autores. Acrescentaram que a diversidade de normas, sejam elas legais ou infralegais, contribui exponencialmente para um ambiente de confusão, de pouco entendimento e de baixa coordenação, afirmando que essas complexidades tributárias tendem a custar aos contribuintes de fato. Ou seja, recai não sobre aqueles que possuem a obrigação de pagar o tributo, mas sim sobre aqueles em que incide o verdadeiro ônus tributário, sendo normalmente o consumidor final de bens ou serviços. Segundo os autores, os tributos indiretos, repercutidos na cadeia produtiva e embutidos nos preços finais dos bens e/ou serviços, representam efeitos anestesiantes, uma vez que não permitem ao indivíduo saber sua efetiva contribuição tributária ao adquirir tais produtos e/ou serviços. Gassen, D’Araújo e Paulino (2013) concluem que esse repasse do ônus tributário para o consumidor final se dá por meio desses mecanismos anestesiantes.

Em uma crítica exaltada ao que denomina de “impostos silenciosos”, Cortella (2001) explicitou:

E ele - o ‘povão’ - acha que não paga imposto. Tanto que vai à escola pública e é muitas vezes desprezado na fila; vai ao hospital público e fica deitado na maca no corredor. O ‘povão’ está pagando. A criança reclama da merenda na escola e um colega nosso fala assim: ‘Mas esse povinho come de graça e ainda está reclamando’ ou, no hospital, ‘esse povinho recebe atendimento de saúde gratuito e ainda está reclamando, quer leito bom, quer remédio de graça’. De graça? Aquilo está pago! E muito bem pago!. (CORTELLA, 2001, p. 11).

Salvador (2014) ratificou a presente linha de raciocínio quando versou sobre os preços dos produtos adquiridos pelos consumidores, os quais acabam arcando de fato

32 No Brasil, existem três entes federativos dotados de competência tributária: a união, os estados e

com o ônus tributário, sendo apenas mediados pelos contribuintes legais: empresários. Os últimos estudos descritos indicam, de certa forma, um lado obscuro da tributação, ao menos aos que arcam com seu peso frente aos que, por vezes, imaginam arcar.

Machado Segundo (2011) denominou tal situação acima exposta por Salvador (2014), Gassen, D’Araújo, Paulino (2013), CDES (2011) e Cortella (2001), como uma situação de “anestesia fiscal”, ou seja, quando os contribuintes de direito possuem a ilusão de arcar com todo o peso tributário, sendo que o transferem aos consumidores finais, os quais não têm a consciência de tal ônus. No ano de 2001, o pesquisador da área de finanças públicas, Fabrício de Oliveira (2001), classificou o cenário ante o exposto, intitulando-o de “fetiche dos impostos”.

Teixeira (2015) tratou de forma semelhante o termo anestesia fiscal, imputando:

A tributação sobre o consumo possui uma característica própria que é o fenômeno denominado “anestesia fiscal”. Por se tratar de uma forma de tributação indireta, na qual existe um contribuinte de fato e outro de direito, o ônus da incidência é repassado para o consumidor sem que ele tenha consciência do seu papel de contribuinte. (TEIXEIRA, 2015, p. 90).

Na busca pelo termo expresso de “anestesia fiscal”, encontrou-se a autoria em Aliomar Baleeiro (2015), o qual inferiu que muita gente imagina não pagar tributos; já outros, preferem nada imaginar, mesmo que até mendigos paguem impostos, o que, segundo o autor, explica a indiferença da maior parte da população sobre os problemas públicos. Destarte, citou o pesquisador:

Por felicidade, os impostos que mais ferem a sensibilidade dos contribuintes e despertam, no espírito deles, a consciência fiscal, são exatamente os mais justos e mais benéficos efeitos econômicos: os diretos e pessoais, [...], elementos seguros de capacidade contributiva. Em contraste, a anestesia fiscal é apontada como característica dos impostos de consumo e outros indiretos e reais. Raras pessoas reparam o valor do selo colado aos sapatos, cigarros ou fósforos e raríssimas meditam que esses impostos são regressivos ou inversamente progressivos, isto é, retiram aos pobres maior percentagem de recursos do que aos ricos, já que os artigos de alimentação e vestuário absorvem a quase totalidade dos salários e apenas pequena parte dos altos rendimentos das classes abastadas. (BALEEIRO, 2015, p. 196-197)

Gassen et al. (2016) atribuiu ao STB dois efeitos: um irritante, pois os contribuintes percebem o quanto estão sendo onerados, com tal efeito ocorrendo nas

bases econômicas de incidência, patrimônio e renda; outro (efeito) anestesiante, ocorrendo sobre a base econômica de incidência e consumo.

No segundo caso, dos ‘anestesiantes’, o ônus tributário é repercutido ao consumidor final (contribuinte de fato), que acaba não percebendo o valor do tributo incluso no preço do bem ou serviço. O contribuinte, na maioria das vezes, não sabe dizer qual é o preço de uma geladeira, de um automóvel, de uma bicicleta, pois o valor que ele conhece é o preço total, do bem ou serviço, já incluso o valor do tributo. (GASSEN et al., 2016, p. 17).

Silva (2007), ao se referir aos tributos indiretos, concluiu que estes ocultam do consumidor a ideia de que ele paga imposto, o que faz prevalecer o senso comum e, consequentemente, a noção de que quem paga são apenas as empresas.

Demonstrados alguns estudos que indicam o estado de anestesia fiscal, relaciona-se esse estado com a falta de reivindicações da classe trabalhadora assalariada por igualdade. Tal relação é evidenciada na observação dos aspectos reformistas, os quais, serão expostos a seguir. Mas, se de um lado — dos “consumidores” — diversos estudos elucidaram o fetichismo imbricado sobre aqueles, na mesma face, a face da maioria das pesquisas até agora apresentadas (em que pese as não inócuas contribuições delas) permanece a dúvida se, de fato, estão totalmente desvencilhadas dos semelhantes efeitos anestésicos impostos aos “consumidores”.

Ora, o termo “consumidores” é extenso e genérico e acaba por classificar todos como uma unidade, como se o STB fosse neutro e igualitário, ou, no máximo, houvesse desigualdades entre “ricos” e pobres”. Como se aquele não fosse objeto de lutas políticas e correlações de forças que vão muito além dos engodados termos supracitados (ricos e pobres). É inegável que os “ricos” são tão consumidores quanto os “pobres”, embora, proporcionalmente, estes últimos necessitem deslocar suas rendas face ao consumo em nível bem mais elevado do que aqueles. Mas isso pouco ajuda a compreender a essência da estrutura tributária brasileira, que, como será comprovado por meio desta pesquisa, é indubitavelmente dividida entre trabalhadores assalariados e empresários, sendo que aqueles são tributados duplamente: sobre a renda do trabalho, que compreende, por vezes, concomitantemente, a diminuição não expressa do seu salário, e sobre o consumo, uma vez que, essa base de incidência é notadamente inclinada sobre os trabalhadores, os quais pouco podem fazer com suas rendas senão gastá-las na aquisição de meios de subsistência.

Esta pesquisa, ao contrário do que se possa pensar, não tem o mérito de ser a primeira a perceber tal segregação oriunda do STB. Mais adiante (Cap. 2), poderão ser observados diversos estudos que concluíram que a renda do trabalho assalariado é bem mais tributada do que a renda dos empresários. Contudo, talvez o principal apontamento desta pesquisa resida na confrontação expressa das desigualdades entre classes sociais imanentes ao STB, que, embora sejam excrescentes, foram descritas de maneira bastante reduzida e acanhada pelas pesquisas antecessoras.

Concluindo, nas expressões “ricos e pobres”, o que se evidencia é o fim, o resultado da atual estrutura tributária, a qual contribui para que haja diferenças sociais, perpetuando as condições financeiras das pessoas em ricas ou pobres, mas não explora os meios (tributários) que contribuíram, resultando nessas condições, que são obedientes à estrutura econômica capitalista. No âmago causador desse resultado antagônico, está a divisão tributária que advém da segregação econômica entre os que possuem os meios sociais de subsistência e produção dos que possuem apenas a força de trabalho. Essa comprovação terá amplo amparo empírico nos capítulos que sucederão essa afirmação.