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Os anfiteatros de anatomia foram relativamente comuns a partir do final do século XVI, como o famoso teatro de Leiden. Neles, encontravam -se alegorias que associavam a dissecação ao memento

mori, o que era uma maneira de legitimação científica e religiosa da

prática anatômica. Segundo Arasse (2008, p.578), essas alegorias: [...] davam a entender que o considerável sucesso dos espetáculos pagos dos teatros de anatomia não atraía somente espíritos ávidos de distrações sensacionais e perturbadoras, em particular no mo- mento dos divertimentos carnavalescos, nos quais o corpo grotesco ainda triunfa sobre o corpo moderno.

No início do século XVI, houve um fim da discrição quanto às práticas anatômicas, que, ao mesmo tempo em que causavam hor- ror, também exerciam, sobre o público leigo e os acadêmicos, uma grande fascinação. Em meados do mesmo centenário, os mais bem equipados gabinetes de História Natural e de Anatomia compor- tavam coleções com peças raras de monstruosidades e aberrações, além de tumores, cálculos renais e outras estruturas corporais com o maior grau de variação anatômica possível. Também faziam parte do acervo desses gabinetes, preparações contendo olhos, línguas, artérias, músculos, o que demonstrou que a técnica de injeção de veias e artérias aprimorava -se, assim como o conjunto das técnicas anatômicas de conservação, pouco utilizadas pelos precursores da Anatomia.

A sensibilidade anatômica permitiu o surgimento de novos comportamentos diante da morte, sobretudo por parte dos pró-

prios anatomistas, que passaram a aplicar as técnicas anatômicas nos “ritos funerários”, ou seja, para o embalsamamento. William Hunter (1718 -1783) foi o precursor nesse campo após os egípcios, já que essa técnica ficou praticamente desconhecida na Europa até o fim do século XVIII (González -Crussi, 1990).

Enfim, as dissecações públicas surgiram no contexto social re- nascentista, para, sob os auspícios do naturalismo, suprir a neces- sidade do homem de se autoconhecer a partir do conhecimento do seu próprio corpo. A intensidade com a qual esses eventos foram investidos, tanto psicológica quanto emocional e culturalmente, permitiram que a realidade irrefutável da finitude do corpo fosse incorporada à sensibilidade europeia.

A morte presente no cadáver anatomizável era, de certa forma, a morte de cada um. Com o advento da modernidade e com a neces- sária organização das instâncias científicas, as dissecações, enquanto práticas culturais, deixaram sua esfera mais ampla para restringir -se à subcultura científica, aos laboratórios de Anatomia, às aulas prá- ticas de cirurgia, e aos museus universitários de Anatomia. Nesses casos, o cadáver nada mais é senão um objeto anônimo de ensino.

Considerações finais

As dissecações públicas devem ser compreendidas enquanto prática cultural e como um capítulo à parte no desenvolvimento da disciplina anatômica, parte da história da ciência e que de certa forma culminou no advento, um tanto polêmico, das exposições de corpos humanos reinauguradas por Von Hagens, no século XX. Apelidado de “dr. Frankenstein”, os feitos de Von Hagens por- tam -se nas fronteiras entre as esferas científica, cultural e mercado- lógica, tendo por pano de fundo a “exploração/exposição” do corpo sob condições materiais que nenhuma instituição acadêmico- -científica do mundo tem atualmente.

Com as exposições de Von Hagens, os corpos mortos, privilégio até então restrito à academia, ganharam vida. Retratam atividades

cotidianas com as quais a maioria do público pode se identificar; transgridem a norma do silêncio que impera diante da morte e, além disso, personalizam a mais moderna técnica científica. De- mocratizam o conhecimento da anatomia humana, assim como as lições de anatomia de outrora. Remetem a tempos remotos, nos quais era possível que os vivos convivessem com os mortos, com a morte, em uma dança sem fim, a coreografia da humanidade.

Enfim, se tais exposições permitem retraçar parte da história da anatomia, também causam um alvoroço alimentado por uma indis- farçável ojeriza contemporânea diante da morte e aos corpos mortos. Deslocado para o plano do ensino de Anatomia, o (re)conhecimento prévio da interioridade corpórea por parte daqueles que mais tarde ocuparão a posição de alunos de Anatomia, tem persistido o advento de uma nova e pós -moderna sensibilidade que pode implicar novos desafios para o ensino e a aprendizagem da disciplina.

Referências bibliográficas

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