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Habitat: um meio ambiente geográfico

No contexto do século XVIII, período marcado pelo encontro de uma longa tradição metafísica e um jovem saber científico, des- tacamos, entre os denominados naturalistas, Carl Von Linné (1707- -1778). Para ele, o estudo da história natural permitiria conhecer melhor a natureza, identificar as espécies úteis ao homem e revelar a faceta de uma inteligência criadora. Buscava identificar o lugar dos organismos, ou melhor, a sábia disposição dos seres naturais instituída pelo Supremo Criador em uma economia da natureza4

(Deléage, 1993). Poderíamos dizer, com os olhos do presente, que cada indivíduo ocupava um meio, um ambiente. Mas um meio em que sentido?

Lalande (1999), Abbagnano (2003) e Canguilhem (2001) citam os trabalhos de Newton (1643 -1727) como um marco na utilização do termo meio. Contudo, encontramos já em Blaise Pascal (1623- -1662), como destaca Spitzer (1942), a expressão milieu (lieu, “lugar”) utilizada no sentido de referência geométrica. Nesse con- texto, Pascal referiu -se à posição do homem entre o pequeno e o

4. “Por economia da natureza, consideramos a muito sábia disposição dos seres naturais instaurada pelo Criador Supremo, segunda a qual os seres tendem para fins comuns e têm funções recíprocas” (Lineu, 1972, apud Deléage, 1993, p.31). Oikos, “casa”, nomia, “organização”, portanto, administração ou go- verno da casa (Coimbra, 2002).

grande infinito, ou seja, dizia que o homem ocupava um lócus de- terminado, localizado entre dois polos do absoluto.

Temos, assim, a ideia de milieu como um intermediário (que está no meio) no sentido de espaço geográfico. Ocupar um meio era ocu- par um lugar, termo utilizado para qualquer entidade natural (em- bora o homem ocupasse um lugar privilegiado, entre Deus e as demais criaturas). É provavelmente nesse sentido que Lineu e os de- mais naturalistas representavam o meio ambiente. Portanto, faz sen tido, neste contexto, representá -lo por uma terminologia que trans mita essa noção meramente estática, o habitat.

Em Humboldt (1950) encontramos, além da palavra “meio”, o termo “sítio”, e foi no mesmo período que se utilizaram as pa la vras “estações” e “habitações” (as regiões onde os vegetais crescem na- turalmente), esta última presente nos estudos de Candolle em 1820 (Drouin, 1991). Tem -se então a constituição de nosso pri- meiro modelo teórico, o habitat, entendido atualmente como o es- paço ocupado por um organismo ou o local onde um organismo vive (Odum & Barret, 2011). No dicionário etimológico encontra- mos esse vocábulo com o mesmo significado e ainda temos: do latim habítat, “ele habita”, 3a pessoa do singular do presente do in-

dicativo de habitare.

Para Cunha (1986), a substantivação dessa forma verbal se prende ao fato de que nos tratados de fauna e flora do século XVIII, redigidos em latim, o termo era utilizado para designar o nome do lugar natural de crescimento ou ocorrência de uma es- pécie. Podemos dizer, portanto, que as expressões anteriormente citadas (habitações, sítios e estações) representam o que hoje en- tendemos como habitat. Essa representação, tida como um modelo teórico (Giere, 1992), permite a relação entre o sistema real (aquilo que observamos, o local ocupado por um organismo) e um con- junto de enunciados (a definição de um conceito para representar esse local).

Como afirma Canguilhem (2001), os mecanicistas franceses do século XVIII utilizaram também o termo milieu em outro sentido, não apenas com a conotação de um local geográfico. O meio era

considerado um fluido, ou seja, um veículo de transmissão que não agia diretamente sobre um organismo, não possuindo ações pró- prias que pudessem influenciar ou mesmo modificar um corpo ou um indivíduo. Adotaram o mesmo sentido que Newton dava para os termos “fluido” ou “éter”.

No entanto, ao adentrarmos nas discussões biológicas, em es- pecial nas teorias evolucionistas, a noção de meio necessitará de uma nova ressignificação. É nesse momento, ao passar pelo voca- bulário dos biólogos, que o termo se enriquece, explica Spitzer (1942). Foi com Lamarck (1744 -1829), anteriormente a Geoffroy Saint -Hilaire,5 que o significado biológico de meio remodelou -se.

Como salienta Martins (2002), há em Lamarck certa influência do mecanicismo newtoniano, que pode ser observado em sua tentativa de explicar tanto a origem quanto a própria vida dentro dos fenô- menos físicos naturais.

Embora o naturalista tenha utilizado milieu no plural (milieux), com uma conotação próxima à ideia dos fluidos como água, ar e luz, ele estava referindo -se a todo o conjunto de ações externas que são exercidas sobre uma coisa viva, ou seja, às influential circuns-

tances (Canguilhem, 2001). Há, desse modo, uma ação que atua

sobre os seres. Assim, podemos pensar o meio ou ambiente como uma entidade capaz de modificar os elementos vivos, até mesmo suas necessidades. Em Lamarck (1818), também encontramos as expressões francesas circonstances de situation, circonstances favora-

bles, circonstances particulières e les milieux habites.

Podemos considerar que, na concepção de Lamarck (1986), havia uma relação de conflito entre o meio e o organismo. O pri- meiro impunha mudanças e os seres adaptavam -se a tais alterações das circunstâncias; o milieu provocava o organismo para assim orientar seu desenvolvimento. Podemos verificar uma via única, unidirecional nessa relação, tal como meio → organismo.

5. Lalande (1999) e Abbagnano (2003) citam que Geoffroy Saint -Hilaire teria uti- lizado a terminologia milieu ambiant em suas obras “Memórias da Academia das Ciências” (1833) e “Estudos progressivos de um naturalista” (1835).

O meio aparentemente incluiria o que hoje entendemos por fa- tores abióticos, ou seja, clima, temperatura, umidade, etc. Mas, e as interações entre os próprios indivíduos? Foram as contribuições de Charles Darwin (1809 -1882) que possibilitaram abordar mais ex- plicitamente as influências que os seres exercem uns sobre os ou- tros. O naturalista inglês incorporou assim à noção de milieu aspectos antes não considerados por Lamarck. Para Canguilhem (2001), a relação biológica fundamental aos olhos de Darwin é a re- lação entre as coisas vivas e outras coisas vivas (meio = organismo ↔ organismo). O meio no qual um organismo vive estaria relacio- nado ao conjunto de seres vivos em torno dele que são seus ini- migos ou aliados, presas ou predadores.

A noção de meio passa a considerar não somente os elementos abióticos, mas também as relações entre os organismos, suas inte- rações e influências mútuas, os denominados fatores bióticos. Essa nova representação do meio ambiente dará suporte não apenas ao desenvolvimento das demais unidades ecológicas, mas também da própria Ecologia.

Como citado por Acot (1990), Ernst Haeckel era seguidor das ideias darwinianas e o vocábulo oekologie, em diferentes obras do au- tor, adquiriu novos significados, sendo que, na última concei- tualização de 1874, destacou a importância das teorias de adaptação e hereditariedade. Pela perspectiva de Drouin (1991), embora a obra de Darwin não tenha sido diretamente responsável pela criação da Ecologia, a teoria darwiniana utilizou argumentos adquiridos no seu domínio. Esse “empréstimo” teve efeitos de retorno que foram, de certa forma, decisivos para a história da Ecologia.

Inicialmente, as tradições biogeográfica e darwiniana perma- neceram reciprocamente estranhas. Contudo, tanto uma como outra foram essenciais para a construção da Ecologia (Acot, 1990). Encontra -se, então, o importante papel de Ernst Haeckel. Sua con- tribuição possibilitou uma reorganização da Biologia, ao propor, em bases darwinianas, o estudo dos seres vivos e suas relações com o meio, fundando assim a Ecologia. Para se entender a distribuição dos seres vivos no planeta, deve -se não apenas considerar os as-

pectos físicos do ambiente, mas também as relações entre os com- ponentes bióticos, a seleção natural e a variabilidade. Nasce a Ecologia propriamente dita.