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A doação, por parte das autoridades, dos corpos de suicidas, prostitutas e não reclamados dificultaram a instituição da Ana- tomia como disciplina científica independente e autônoma. Ela precisaria, antes, desvencilhar -se da performance pública, do ca- ráter de espetáculo de que tinha sido investida. Ela precisaria ser despopularizada.

Em meados do século XIX, Sir Astley Cooper, um dos mais re- nomados cirurgiões de Londres, discursou sobre as inúmeras con- tribuições do estudo empírico proporcionado pela prática da dissecação, realizada semanalmente – às segundas -feiras – no lo- tado Surgeon’s Hall, anfiteatro fundado pelo College of Surgeons.

Esse evento, além de ser uma extensão do “espetáculo” da exe- cução pública, correspondia para o próprio público, não raras vezes pagante, à exposição de um capítulo à parte da história individual que ensejava uma contemplação ainda maior: o processo da morte e da corrupção do cadáver. Uma das contingências que certamente levaram à adesão pública foi o medo generalizado da morte e, mais precisamente, do post -mortem. A aversão ao purgatório foi paulati- namente substituída por outros temores. Nutria o imaginário cole- tivo, por exemplo, o medo de ter o corpo subtraído da sepultura ou, ainda, de ser enterrado vivo.

Do primeiro medo – de ter o corpo roubado –, o poema gótico de Thomas Hood ofereceu uma boa descrição em “Mary’s ghost: a pathetic ballad”: “Twas in the middle of the night/ To sleep young William tried/ When Mary’s ghost came stealing in/ And stood at his bed -side.// O William dear! O William dear!/ My rest eternal ceases/ Alas! my everlasting peace/ Is broken into pieces.// I thought the last of all my cares/ Would end with my last minute/ But tho’ I went to my long home/ I didn’t stay long in it.// The body -snatchers they have ome/ And made a snatch at me/ It’s very hard them kind of men/ Won’t let a body be!// You thought that I was buried deep/ Quite de- cent like and chary/But from her grave in Mary -bone/ They’ve come

and boned your Mary.// The arm that used to take your arm/ Is took to Dr. Vyse/ And both my legs are gone to walk/ The hospital at Guy’s// I vow’d that you should have my hand/ But fate gives us de- nial/ You’ll find it there, at Dr. Bell’s/ In spirits and a phial.// As for my feet, the little feet/ You used to call so pretty/ There’s one, I know, in Bedford Row/ The t’other’s in the city// I can’t tell where my head is gone/ But Doctor Carpue can/ As for my trunk, it’s all pack’d up/ To go by Pickford’s van.// I wish you’d go to Mr. P./ And save me such a ride/ I don’t half like the outside place/ They’ve took for my inside.// The cock it crows — I must begone!/ My William we must part!/ But I’ll be yours in death, altho’/ Sir Astley has my heart.// Don’t go to weep upon my grave/ And think that there I be/ They haven’t left an atom there/ Of my anatomie.7 (Hood, 1827)

7. O fantasma de Mary: uma balada patética// Era no meio da noite,/ e o jovem William tentava dormir,/ quando o fantasma de Mary chegou sorrateira- mente,/ e postou-se ao lado da sua cama.// Querido William! Querido William!/ Meu descanso eterno terminou;/ oh!, minha paz eterna/ foi despe- daçada.// Eu pensei que a última das minhas preocupações/ acabaria no meu último minuto de vida;/ mas qual? Eu fui para a minha última morada,/ mas não permaneci muito tempo lá.// Os ladrões de cadáveres chegaram,/ e me ar- rebataram;/ são homens decididos/ não deixaram nenhum corpo!// Você pensou que eu tinha sido enterrada/ razoavelmente decente e protegida,/ na sua sepultura em Marylebone [provavelmente, Mary-bone do original seja Ma- rylebone, bairro de concentração de hospitais, clínicas e cemitérios próximo ao centro de Londres]/ eles vieram e desossaram sua Mary.// O braço que segu- rava o seu braço/ foi dado ao dr. Vyse;/ e minhas pernas começaram a andar/ para o hospital em Guy’s [hospital-escola perto de Marylebone].// Eu prometi que lhe daria minha mão,/ mas o destino nos negou;/ você a encontrará lá, no dr. Bell,/ em álcool e num frasco.// Como meus pés, pequenos pés/ que você costumava dizer que eram tão bonitos,/ um está, eu sei, em Bedford Row,/ E o outro no centro de Londres.// Eu não posso lhe dizer onde está minha cabeça,/ mas o doutor Carpue pode:/ como meu tronco, ela está numa caixa/ para ser enviada por uma viatura da Pickford [empresa de transporte fundada em 1620].// Eu gostaria de ser enviada ao Sr. P./ e me livrar de um passeio;/ eu não gostaria de ficar exposta,/ eles veriam meu interior.// O galo está cantando – eu tenho que ir embora!/ Meu William temos que nos separar!/ Não obstante, eu serei tua na morte/ Sir Astley tem meu coração.// Não vá chorar na minha sepultura,/ e pensar que lá estou;/ eles não deixaram lá um átomo sequer/ da minha anatomia.

Do medo de ser enterrado vivo derivou, na prática funerária, o desenvolvimento de uma série de mecanismos que, instalados dentro dos caixões, permitiam que o pretenso morto pedisse so- corro, em caso de eventuais enganos. Na prática científica, cul- minou na necessidade de se estabelecer limites mais precisos sobre o momento da morte e os sinais definidores do óbito, o que a disse- cação poderia proporcionar, já que não foram raros os casos em que indivíduos “despertaram” na mesa de dissecação (Thomas, 1980).

A questão do momento da morte foi amplamente explorada nes- sas ocasiões. As dissecações realizadas pelo físico italiano Giovanni Aldini (1762 -1834), já no começo do século XIX, constituíam -se em verdadeiros shows, superlotados e aclamados pelo público, sobretudo nas ocasiões em que o anatomista adotou técnicas de galvanização.8

A estimulação dos corpos através de correntes elétricas comu- mente causava reações musculares involuntárias, de modo que as dissecações públicas foram palco para tentativas de “ressuscitação” momentânea – provavelmente um dos motivos da popularidade de Aldini e, certamente, a mola propulsora para o Murder Act de 1812, que proibiu esses experimentos durante as dissecações.

A princípio considerada como uma prática macabra destinada a pessoas de “gosto duvidoso”, a dissecação foi banida do cotidiano so- cial dos leigos à medida que se tornava o privi légio de uma classe cada vez mais restrita de “iniciados”. A princípio, foram restritas aos anfiteatros das escolas públicas e/ou privadas de Anatomia; depois, no fim do século XIX, passou a ser uma exclu si vidade da classe mé- dica, encerrando -se definitivamente dentre os muros da academia, com o advento da ciência moderna, no início do século XX.

Na Inglaterra, as últimas dissecações públicas foram realizadas em 1832, quando a lei que regulamentava essa prática, o Anatomy Act de 1832, foi implementada pelas autoridades. O espetáculo da

8. Referência aos experimentos realizados por Luigi Galvani (1737 -1798) que consistiam na estimulação dos corpos através da eletricidade. A eletricidade, nesse encaminhamento, substituiu temporariamente a noção abstrata de “força vital”, anteriormente proposta por John Hunter (1728 -1793).

dissecação só viria a ser proporcionado em Londres novamente, sob torrentes de críticas e empecilhos legais, no começo do século XXI, com a chegada da exposição itinerante de corpos de Gunther von Hagens (MacDonald, 2006, p.2).