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As transformações do ideário nacional da eugenia

Pouco após a publicação da Bíblia da saúde, a proposta eugênica brasileira experimentou novos desafios que visavam aproximá -la do modelo alemão ou do norte -americano. O movimento que pro- punha a atualização das propostas nacionais deveu -se a vários mo- tivos, dentre eles, o estágio que Kehl realizou na Alemanha, como funcionário graduado da filial brasileira dos Laboratórios Bayer e o advento de uma geração de geneticistas que, formada na Europa e nos Estados Unidos, atuava sobretudo na Escola de Agricultura Luiz de Queiroz, localizada na cidade paulista de Piracicaba (Stepan, 2005, p.102).

Dentre os novos eugenistas, encontravam -se os biólogos Carlos Teixeira Mendes e Octávio Domingues, que empenharam vários de

seus estudos para enfatizar a pouca validade dos ensinamentos de Lamarck em prol dos princípios mendelianos e da nascente ciên cia da Genética.5 A atualização do ideário, que aliava a prática educativa

a pesquisas com bases estatísticas e a elaborações de leis instruídas pelo saber eugênico apresentou -se claramente durante a realização do 1o Congresso Brasileiro de Eugenia, ocorrido em 1929 no Rio de

Janeiro, cujo objetivo central foi oferecer um renovado aspecto da eugenia, condenando a mestiçagem como “fator disgênico” da raça. A reunião científica contou com 74 apresentações, e, além da edu- cação eugenista, focou novos temas como esterilização dos degene- rados, organização de registro individual e de arquivo genealógico de famílias, biometria, legislação social eugênica, contaminação como delito legal e os males da imigração indiscriminada (Santos, 2008, p.236 -8).

Após 1930, as novas propostas contaram com restrita encam- pação pelo governo de Getúlio Vargas. As pesquisas laboratoriais e biométricas relativas a seres humanos foram limitadas e, no plano legal, a conquista eugênica mais destacada ocorreu em meados da década de 1930, referente à limitação da entrada de imigrantes, principalmente os então qualificados como “raças in fe riores”, so- bretudo os japoneses e, mais discretamente, os judeus, mesmo que os motivos alegados para isto fossem de ordem econômica e cultural.

Frustrados em larga escala em seus novos objetivos, os euge- nistas persistiram em sua saga educativa. Um dos sintomas mais evidentes disso foi a proliferação de livros direcionados para o con- sumo do público infanto -juvenil. Um exemplo disso foi a cartilha

Brasil eugênico, aprovada pela Diretoria Geral do Ensino de São

Paulo, de autoria do professor Ulysses Freire, um dos mentores do

5. É necessário ressaltar que, segundo Stepan (2005), a substituição do la mar- ckis mo pelo mendelismo no Brasil foi um processo demorado. Os geneticistas encontraram apoio em André Dreyfus, pioneiro da genética mendeliana no Brasil e que, em 1943, convidou o russo Theodosius Dobzhansky para, no âm- bito da Universidade de São Paulo, formar o primeiro grupo de brasileiros que realizou experiências genéticas com a Drosophila melanogaster.

movimento da Escola Nova ao lado de Fernando de Azevedo, por sua vez um dos membros fundadores da Sesp e desde então fer- renho defensor da prática da educação física como uma das me- didas de combate à degeneração da raça (Freire, 1932).

O enredo desse livro conta a história da família de Carlos, um menino que, como seus pais, se submetia aos princípios da eugenia. Residente na área urbana de uma cidade localizada no centro -oeste paulista, provavelmente Bauru, Carlos respeitava os pais, os pro- fessores e a pátria; seu dia, após uma noite de sono bem dormido, em um quarto individual e com as janelas abertas para respirar o ar puro, principiava com um banho frio, oportunidade em que fric- cionava o corpo e escovava os dentes. Após realizar exercícios fí- sicos moderados assoviando uma “marcha de guerra” e alimentar -se com uma refeição sadia prescrita pela mãe, rumava para a escola, onde se destacava pela facilidade de aprendizagem, corpo bonito e “espírito potente”, pois “disposto à combatividade”.

Devido aos seus dotes, o garoto foi premiado com uma viagem à capital bandeirante para participar da Semana de Higiene e da Festa da Primavera, eventos promovidos pela esfera oficial, si- tuação que permitiu que Carlos se deparasse com um grupo de gi- nastas de corpos sadios, encontro que o instigou a lembrar -se dos gregos antigos. Em São Paulo, na companhia paterna, refletiu sobre os grandes vultos da história brasileira e os compromissos que de- veria assumir com a pátria. Após visitar parques e monumentos da cidade, associou -se aos escoteiros, não só por estes praticarem exer- cícios físicos extenuantes, mas também por, ao conhecer uma de suas sedes, deparar -se com o seguinte dístico: “Aqui se aprende a ser homem e a vencer na vida” (Freire, 1932, p.57).

As belezas e comodidades oferecidas pela capital estadual, no entanto, não seduziram o turista mirim; ao realizar um breve es- tágio entre os escoteiros em acampamento montado nas matas de um parque, reconheceu o valor de estar junto à natureza. Esse sen- timento foi complementado pelas ponderações de um escoteiro- -chefe:

Em face da vida bruta [...] é que se forma o espírito de energia e virilidade. As comodidades que se encontram nos grandes centros urbanos nos tornam uns alfenins efeminados. Os cinematógrafos com as fitas de moral duvidosa, os campeonatos de mentira, os bai les públicos e outras diversões profanas estão contribuindo para tornar os brasileiros um povo de basbaques. (Freire, 1932, p.79) Na sequência, pelo que viu e ouviu, o menino retornou à sua cidade de origem, já saudoso do seu cotidiano eugenicamente esta- belecido.

Expressões educadoras como essas proliferaram, muitas delas baseadas no que havia sido ensinado por Kehl. O sentimento de frustração dos eugenistas por não terem suas propostas aceitas in- tegralmente pela sociedade e pelo Estado era flagrante. A sensação de derrota experimentada pelos eugenistas brasileiros foi expressa em uma carta datada de abril de 1936 enviada por Monteiro Lo- bato – um dos patronos não formado em medicina mais refe- rendados pela eugenia nacional – a Renato Kehl. Nessa missiva, Lobato desabafou:

País que nasce torto não endireita nem a pau. A receita [...] para consertar o Brasil é a única que parece eficaz. Um terremoto de 15 dias, para afofar a terra; e uma chuva de... adubo humano de outros 15 dias, para adubá -la. E começa tudo de novo. Perfeita, não? (Lo- bato apud Diwan, 2007, p.137).