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Gaston Bachelard (1884 -1962) tem uma vasta produção literária impregnada de intenção pedagógica e demonstrou não apenas um olhar voltado para as condições de produção do conhecimento cientí- fico, mas também com os problemas de ensino e aprendizagem desse conhecimento (Justina & Ferrari, 2000). Bachelard (1996) afirmou que a crítica dos conceitos só é possível quando relacionada com o contexto de sua construção histórica. Para Bachelard (2004), os con- ceitos devem ser vistos sempre como parte de um conhecimento aproximado, como algo transitório, em constante (re)criação. Assim, em uma perspectiva histórica, o conceito é integrador de outros con- ceitos, e o conhecimento científico passa a ter um enfoque problema- tizador e, consequentemente, uma abordagem interdisciplinar.

O estabelecimento de relação entre a epistemologia e a História da Ciência, para Bachelard (2006, p.125), possibilita compreender que:

O espírito tem uma estrutura variável, a partir do momento em que o conhecimento tem uma história. Com efeito, a história humana, nas suas paixões, nos seus preconceitos, [...] pode bem ser um eter no recomeço; mas há pensamentos que não recomeçam: são os pensamentos que foram retificados, alargados, completados. [...] O espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. [...] A sua estrutura é a

consciência dos seus erros históricos. Cientificamente, considera -se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro, con- sidera -se a experiência como retificação de uma ilusão comum e inicial. Toda a vida intelectual da ciência se joga dialeticamente neste diferencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido. A própria essência da reflexão é compreender que não se tinha compreendido.

Entre as contribuições da epistemologia de Bachelard (1996) para a educação em ciências estão a noção de descontinuidade con- ceitual no pensamento científico e a existência de obstáculos episte- mológicos. Os obstáculos epistemológicos são inerentes ao pro cesso de conhecimento, e se constituem em acomodações ao que já se conhece, podendo ser entendidos como antirrupturas. Os obstá- culos podem aparecer na forma de um contrapensamento ou como limitação do pensamento. São encarados como resistências do pen- samento ao pensamento. Não são obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem relativos à fra- gilidade dos sentidos e do espírito humano. Enfim, é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de impera- tivo funcional, lentidões e conflitos.

Dentre os obstáculos referidos por Bachelard (1996) em sua obra A formação do espírito científico, está o obstáculo do conhe- cimento unitário e pragmático, que se refere não ao pensamento empírico, mas ao pensamento filosófico. Todas as dificuldades se resolvem diante de uma visão geral de mundo, por simples referên- cia a um princípio geral da natureza. Com a ideia de substância e com a ideia de vida, ambas entendidas de modo ingênuo, in tro- duzem -se inúmeras valorizações que prejudicam os verdadeiros valores do pensamento científico. Bachelard (1996, p.102) também salientou que o uso de analogias e metáforas pode se tornar um obs- táculo à construção do conhecimento científico. “O perigo das imagens imediatas para a formação do espírito científico é que nem sempre são passageiras; levam a um pensamento autônomo; ten- dem a completar -se, a concluir -se no reino da imagem”.

Além do conceito de obstáculo epistemológico, Bachelard (1996) explicita o conceito de ruptura como uma descontinuidade entre o conhecimento comum e o conhecimento científico. Para Santos (1989), embora a ruptura bachelardiana interprete com fi- delidade o modelo de racionalidade da ciência moderna, pesqui- sadores pós -modernos apontam que o senso comum apresenta posi tividades não opostas à ciência, surgindo assim o termo dupla ruptura. A primeira ruptura refere -se ao distanciamento da ciência e do senso comum, não há diálogo entre os dois conhecimentos. Já a segunda ruptura implica uma transformação de ambos, não há um retorno, mas um estabelecimento de relação entre o conheci- mento científico e a cultura particular de cada indivíduo. Andrade & Smolka (2009) afirmam que, na definição de ruptura bachelar- diana, está inerente a possibilidade de corte/parada/quebra de algo que está acontecendo. Também se pressupõe que exista uma certa continuidade para a qual um momento de ruptura se impõe como forma de modificação e de reorganização/direcionamento do pro- cesso de (re)construção da ciência.

No livro Ensaio sobre o conhecimento aproximado, Bachelard (2004) aponta que a origem dos conceitos ocorre por meio de exci- tação nervosa, pela assimilação funcional e intencional e pela orga- nização reflexa. Mas é pela vontade e pela escolha ativa do indivíduo que os conceitos são organizados e (re)criados, passando de traços múltiplos e mal associados em conceitos sólidos e duráveis. Bache- lard (2004, p.30), ao explicitar a noção de descontinuidade entre os conceitos, afirma que “os conceitos formam um sistema. Isto basta para conferir -lhes uma solidariedade, que é uma forma de conti- nuidade. Além disso, convém lembrar que os pontos que servem como centros para a cristalização conceptual não são fixos”. Nessa perspectiva, para Andrade & Smolka (2009), Bachelard aponta a presença tanto de espaços de continuidades como de rupturas entre os conceitos.

Para Bachelard (2006, p.200), a ciência “é constantemente reti- ficada, completada, diversificada. A linguagem da ciência está em estado de revolução semântica permanente”. Assim, para Bachelard

(1996), a fecundidade de um conceito científico é proporcional à sua capacidade de deformação, no sentido de incorporar novas infor- mações. A definição científica correspondente a um fenômeno parti- cular é um agrupamento de aproximações sucessivas. A conceituação científica precisa de uma série de conceitos em via de aperfeiçoa- mento para chegar à dinâmica que se pretende, para formar um eixo de pensamentos inventivos. Uma ideia científica que não esbarra em nenhuma contradição tem tudo para ser uma ideia inútil.

No tratamento da História da Ciência, “a partir do momento em que se aborda a região dos problemas, vive -se realmente numa época marcada por instantes privilegiados, por descontinuidades manifestas” (Bachelard, 2006, p.196). O ser humano aperfeiçoa -se à medida que pode ligar o seu ponto de vista a concepções ante- riores. O “novo” conhecimento pode ser acomodado em redes con- ceituais mediante a sua ressignificação e relação com as construções anteriores.

Outro conceito explicitado por Bachelard (1978, p.25) é o de perfil epistemológico em sua obra A filosofia do não. A compreen- são de um dado conceito científico passa por cinco fases distintas: animismo, realismo, positivismo, racionalismo, racionalismo com- plexo e racionalismo dialético. Para Lôbo (2008), mediante a utili- zação da noção de perfil epistemológico, é possível mostrar que as diversas filosofias podem estar presentes num mesmo conceito, mesmo quando algumas delas são conscientemente consideradas inadequadas para caracterizar determinada noção científica.

O pensamento de Bachelard incentiva a inventividade no ato de ensinar, valorizando, nesse processo, a análise histórica do conheci- mento científico. Por um processo por ele chamado de recorrência histórica, o conhecimento do passado é relacionado ao conheci- mento do presente. Segundo Lôbo (2008), ao propor essa noção, Bachelard não pretende fazer um julgamento de valor. Ao julgar o antigo em função do novo, ele reconhece uma ciência contempo- rânea pautada em recursos teóricos e técnicos não disponíveis no passado. Assim, trata -se de uma racionalidade mais complexa, portanto, mais próxima do pensamento científico atual.

Promover aproximações dos conceitos bachelardianos expostos anteriormente com a pesquisa em e no ensino de Biologia pode ajudar em ações e postura crítica de pesquisadores, professores e alunos em relação ao enfoque e compreensão da natureza dinâmica do conhecimento biológico. Isto implica uma releitura mediante um olhar epistemológico da história da Biologia. Nessa perspectiva, na sequência apresenta -se uma análise de algumas ideias explicitadas no debate sobre a herança biológica com base na epistemologia