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Na segunda década do século passado, uma vasta parcela dos intelectuais brasileiros adotou a eugenia como possibilidade de re- generação nacional. Mas, como postular a redenção da raça em um ambiente marcado pela predominância dos tipos negros, indígenas e mestiços? Como aplicar aqui as orientações de uma ciência que prescrevia a necessidade de adoção dos hábitos e consumos típicos

da Europa? Como apontar, como era comum na Alemanha, na Sué cia e nos Estados Unidos, um nativo do mundo rural como tipo padrão de saúde e moralidade para ser adotado como modelo pelos habitantes das metrópoles?

As inegáveis dificuldades de aplicação das formulações de Gal- ton e de seus continuadores para explicar e transformar o “homem brasileiro” impôs que a eugenia fosse remodelada para atender às circunstâncias nacionais, tornando evidente que “as ideias, mesmo as científicas, são sempre reconfiguradas seletivamente quando cruzam as fronteiras culturais, e as locais – culturais, políticas e científicas” (Stepan, 2005, p.40).

A urgência de medidas regeneradoras da raça determinou que, em janeiro de 1918, fosse criada a Sociedade Eugênica de São Paulo (Sesp), sob a presidência de Arnaldo Vieira de Carvalho, diretor da Faculdade de Medicina e Cirurgia paulista. O mentor da nova as- sociação foi Renato Kehl, que, mesmo tendo se graduado em medi- cina três anos antes, já granjeara reputação como eugenista e, graças às influências familiares, conseguira reunir a nata dos intelectuais bandeirantes em prol da eugenia.

A Sesp foi a primeira associação de eugenistas da América Lati- na e sua finalidade declarada era a de disseminar as ideias formula- das pela nova ciência, não demonstrando em sua efêmera existência – que se encerraria no final de 1919, com cerca de 150 membros – nenhum pendor para a pesquisa, mesmo a de caráter estatístico, como estipulara Galton. Em resultado, a instituição responsabi- lizou -se pela publicação de um único número de seus anais, o qual foi composto por textos de palestras, artigos de jornais e trechos de apresentações em defesa da eugenia assinados na maior parte por brasileiros, mas também contando com colaborações de especialis- tas latino -americanos e europeus (São Paulo, 1919).

A partir desse material, constata -se que, desde as suas origens, o eugenismo nacional foi pautado por um ecletismo que alimentou uma série de atritos entre os membros da Sesp. Afastou também o movimento, em referência a vários tópicos, das ideias defendidas pelos eugenistas europeus e norte -americanos.

O primeiro e mais notável motivo de dissintonia entre os euge- nistas referiu -se à noção de raça. Para alguns, existia apenas uma “raça humana”, o que deixava implícito o suposto de que todos os homens eram biologicamente iguais, atribuindo -se à “moral cor- rompida” a causa maior da degeneração biológica. Segundo Rubião Meira – personagem destacado do quadro docente da Faculdade de Medicina e Cirurgia –, os negros eram anatômica, física e moral- mente iguais aos brancos e a degeneração neles detectada devia -se aos séculos de escravidão e a uma liberdade desamparada pelos seus antigos senhores e pelo governo (Meira, 1919, p.50 -1).3

As estratégias para se reportar à existência de uma raça única no Brasil foram múltiplas. Luiz Pereira Barreto, médico reputado e pioneiro no “cruzamento científico” de raças bovinas no país, pre- feriu afirmar que todos os brasileiros pertenciam à “raça latina” (Barreto, 1919, p.140). Não obstante, a tendência dos membros da Sesp foi convergir para o postulado de que a raça se confundia com a população nacional, inserindo nos Annaes um trecho de uma con- ferência do médico francês Edmond Perrier, no qual afirmava que: “é a pátria [...] que define a raça, mas a raça não define a pátria” (Perrier et al., 1919, p.206).

Tal convergência não inibiu demonstrações de discordância de alguns dos eugenistas. O próprio Rubião Meira, contradizendo -se diversas vezes em uma de suas palestras, alegou a existência de “raças do sertão”, enquanto Olavo Bilac – que teve sua “Oração aos moços” inserida nos Annaes – pontificou: “Nos rudes sertões, os homens não são brasileiros, nem ao menos são verdadeiros homens; são viventes sem alma criadora e livre, como as feras, como os in- setos, como as árvores” (Bilac, 1919, p.252).

Mesmo assim, nenhum dos filiados à Sociedade Eugênica referiu -se declaradamente à existência de uma hierarquia entre as raças. A exceção deveu -se à inserção nos Annaes de um texto assi-

3. Ressalta -se que a Sesp em nenhum momento referiu -se aos mulatos como de- generados, provavelmente porque vários de seus membros eram mestiços, in- clusive o médico psiquiatra Juliano Moreira.

nado por Augusto Forel, professor de Psiquiatria da Universidade de Zurique, evidenciando a principal diferença entre os eugenistas brasileiros e os europeus. Mostrando -se favorável ao eugenismo negativo, ele declarou: “É preciso ensinar ou mesmo impor, de um modo prático o neomalthusianismo aos doentes, aos incapazes, aos imbecis, aos amorais e criminosos e às raças inferiores” (Forel, 1919, p.227).

Expressões como estas não impediam que a maior parte dos membros da Sesp admitisse a existência da “raça brasileira” e que esta era assolada pela degeneração porque “combalida por mil ra- zões” (Magalhães, 1919, p.160). A primeira medida a ser tomada era incentivar o cruzamento entre os nativos e os imigrantes re- centes, pois, diferentemente da postura europeia, para os euge- nistas nacionais a miscigenação imporia um novo e mais vigoroso aspecto à “raça brasileira”, mesmo que em prejuízo do estrangeiro (Meira, 1919, p.60).

Rubião Meira preconizou apenas o cruzamento de brasileiros brancos com imigrantes originários da Europa, excluindo os japo- neses, negros, índios e mestiços da equação. Várias palestras ver- saram sobre casamentos de brasileiros com alemães e ingleses, defendendo -se que desses enlaces resultariam tipos robustos na primeira geração, mas que depois poderiam degenerar se não se to- massem os devidos cuidados. Em primeiro lugar, o clima tropical foi avaliado como elemento degenerador, mas alertava -se que a ciência estava capacitada para contornar essa ameaça. Em segundo e mais importante, a educação eugênica poderia garantir a conti- nuidade das proles saudáveis.

O exemplo positivo da miscigenação encontrava -se em São Paulo:

Os cruzamentos entre indivíduos de diferente nacionalidade [sic], mas dentro da mesma raça, tal os brasileiros, espanhóis, italianos e portugueses, fornecem magníficos resultados. Um atestado desse acerto está na população de S. Paulo, antes feia e hoje bonita após o cruzamento com o italiano. (Magalhães, 1919, p.162)

Outro ponto de concordância entre os eugenistas brasileiros dava -se em relação às características da hereditariedade. Aproxi- mando -se do pensamento reinante em parte dos galtonianos fran- ceses, mas muito mais arraigado que eles, entendeu -se o processo hereditário como um fenômeno plástico e dependente do meio am- biente; acreditava -se, como ensinou Lamarck, que as alterações biológicas e morais ocorridas nos pais seriam herdadas pelos seus descendentes, tornando -os mais aptos na disputa pela vida, já que “viver é reagir contra a morte”, tanto a morte individual quanto da raça e também da espécie.

Definida como cruzada ou guerra, a “ciência da raça” meta- morfoseou -se em uma campanha de salvação nacional. Mesmo que num cenário repleto de divergência, a Sesp declarou em inúmeras ocasiões que, juntamente com o incentivo à miscigenação, cabia aos médicos a missão educadora que permitiria não a eliminação física dos degenerados, mas sim sua reeducação.