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ANTíDOTO CONTRA O SONO

No documento PARTE I para o desenvolvimento? (páginas 32-36)

Marta Porto

Ensaísta e consultora

PREâMBuLO

Antes de entrar no tema principal desse artigo, que indaga quais políticas cul- turais que são apropriadas para estimular o engajamento comunitário, quero fazer um amplo preâmbulo que situa as indagações que faço sobre esse nebuloso território da mediação e dos projetos culturais cujo foco são ideias de inclusão e transformação social. O que muitas vezes pode ser traduzido pelo velho e deja vù, “bom mocismo”.

Optei em posicionar o campo da política, onde filosofia e povo (no sentido filosó- fico) se encontram.

Vivemos em um tempo onde a Política – um modo de relação entre as partes para garantir o Bem Comum entre o que habitam e participam da vida na cidade (Aristóteles, in Ferreira, 1998) – parece esquecida, como nos lembra o intelectual brasileiros Adauto Novaes (Novaes, 2006).

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Esse é o lugar onde mora a Política. Crer na política, é crer na palavra. Crer na palavra, é crer na Política. A crença na imaginação criadora, que une sentidos espirituais da vida, para instigar uma nova estética do estar juntos. Que tensiona e oxigena as noções de bem comum, que se nega a facilidade dos controles sociais que entorpecem os sentidos e promovem estagnação, desesperança e mesmice. Concluindo esse longo preâmbulo: pensar na relação entre política, arte e cultura é antes afirmar a liberdade criativa e criadora, a possibilidade da energia que se desloca momentaneamente da realidade para navegar em possibilidades ficcionais, incursionar em experiências cuja motivação é artística e nada mais. E assim, abrir o campo objetivo da atuação a reinvenção “da forma como entendemos e fazemos as coisas juntos”. Uma metáfora poética é a usada por ítalo Calvino no capítulo onde ele trata da Leveza, em Seis Propostas para o próximo milênio (Calvino,1990). O escritor italiano nos lembra que a relação entre Perseu e a Górgona é comple- xa, do sangue dela nasce o cavalo alado Pégaso, ou seja “do peso da pedra pode reverter o seu contrário”. Mas é sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, “mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como fardo”.

O que o mito parece nos dizer é a máxima de Aristóteles na Poética: “Não cabe aos poetas representar o mundo e sim imaginar como ele gostaria que o mundo fosse”. Isso não é uma recusa da realidade, como nos lembra Calvino, mas uma forma de abordá-la que abre espaço para uma imaginação criativa, mágica. Em Leveza, Calvino nos oferece uma imagem interessante para pensarmos na figura da arte como pulsão criativa que ao se deslocar do real pode reconfigurá-lo (Porto, 2009). E a mediação? É possível buscar interpretações ou crer em ferramentas pedagó- gicas entre a criação – imagem poética – e sua repercussão?

Diria que há possibilidades quando se cria outras modulações para aproximar pessoas da fonte inspiradora que gera a experiência artística. Uma experiência de O escritor Salman Rushdie, perseguido pelos mulás do Irã, por escrever Os Versos

Satânicos, na sua condição de “escritor desaparecido”, escreve um livro para seu filho Zafar, Haroun e o Mar de Histórias, celebrando a liberdade de criar e contar histórias e a alegria de poder ouvi-las. Em um trecho, Rushdie pergunta:

“E para que servem essas histórias que nem sequer são verdade?

Haroun queria pegar suas palavras de volta, arrancá-las de dentro do ouvido do pai e enfiá-las de volta na sua própria boca; mas naturalmente isto era impossível. E foi por isso que pôs a culpa em si mesmo quando, logo depois, nas cir- cunstâncias mais constrangedoras que se possa imaginar, aconteceu Algo Impensável: Rashid Kalifa, o fabuloso Mar de Ideias, o lendário xá do Blá- -blá-blá, postou-se diante de um vasto público, abriu a boca, e descobriu que não tinha mais histórias para contar.

Rashid não sabia dizer para que serviam as histórias que contava. Mas Kattam-Shud, o líder dos Tchupwalas, o Mestre do Culto de Bezaban, sabia muito bem, porque estava envenenando o mar de histórias, porque queria colocar uma rolha na fonte das histórias e parar o interminável fluxo de fios de histórias: as histórias são divertidas, fazem as pessoas imaginar. O mundo, porém, não é feito para ninguém se divertir, respondeu Kattam- -Shud. O mundo é para se controlar.”(Rushdie, 1998)

Nada mais atual. Em tempos onde fundamentalismos de todos os matizes e origens, jogam artistas, escritores, intelectuais no cárcere de fato ou no simbólico, com medo de chocar, incomodar, ou pensar e criar livremente, a fábula de Rushdie nos pergunta se há uma função social para a arte ou se simplesmente ela é expressão criadora que revela uma dimensão, espiritual talvez, da vida humana.

Qual o valor de contar histórias? Qual o indicador que mede a diversão? O riso, o corpo que dança? A obra, a poesia, a música que te faz chorar?

Para Borges, a Biblioteca, templo da palavra, era onde residia o antídoto contra o medo e a apatia. A leitura, era um corpo presente, ativo, feito de muitas tessituras e linguagens, presença que se torna carne na resistência à morbidade do presente.

Sugiro aqui o fim desses serviços? Não, mas a retomada da pesquisa, dos expe- rimentos e do silenciar de um certo ruído que tinge de cores pastéis o que pode ser uma paleta vibrante.

NOvOS PúBLICOS E ENGAjAMENTO COMuNITáRIO

Por outro lado, há os projetos de engajamento comunitários cada vez mais rele- vantes para as políticas e programas culturais.

Há duas dimensões centrais nesse processo: uma que se refere ao trabalho com novos públicos, pessoas que não produzem arte, mas que podem ser sensibilizadas a parti- cipar da vida cultural mais ativamente. A outra dimensão é do trabalho com grupos artísticos comunitários a partir de espaços e programas de instituições culturais. No primeiro caso, me parece quase uma imposição ética e de sobrevivência dos espaços culturais. Quando o público não se renova, sugere, recomenda, opina, os espaços e projetos perdem densidade e razão de existir. Projetos bem sucedidos nesta área acontecem invariavelmente extramuros das instituições e se valendo de propostas de engajamento nas coisas e onde as pessoas estão. Ensaios em praças públicas e mercados, piqueniques de livros no parque, integrar-se em redes que discutem problemas comunitários, desenvolver ações em diálogo com as pessoas comuns, se valendo de opções muitas vezes estranha a missão institucional, são formas de atrair e acolher novos públicos. O que deve ser feito cada instituição pode indicar o caminho, mas o centro é o diálogo e a abertura para criar experiências que façam sentido para as pessoas não especialistas, pensando em estratégias distintas para públicos diferentes.

O desafio de novos públicos e a participação nos processos são hoje uma dimensão que deveria ser tratada com planejamento específico dada a sua importância. A outra dimensão, a do trabalho com grupos artísticos comunitários, é antes uma ação de desmistificação de conceitos. E também um trabalho de discernimento de onde se quer chegar. A arte é meio ou fim? Ou é ambas as coisas?

performance como a que Marina Abramovic2 propõe, onde a presença do corpo

institui o ato artístico, recebe uma modulação quando o rapper Jay Z propõe uma “sinfonia de corpos” 3 e produz uma música performance nos palcos do Metropolitan

Museum. Ou quando o publico da exposição da artista Yayoi Kusama na Tate Modern, é convidado a intervir com uma cartela de círculos adesivos multicoloridos em uma sala branca composta como o quarto da artista. De alguma forma, os dois exemplos metaforizam a experiência criadora instituindo modulações para novas experiências. A ideia central é a que a experiência poética é vivenciada de forma pessoal e subjetiva, choca, provoca, emociona, inspira, e quando se torna objeto de projetos educativos ou de engajamento comunitário deve antes provocar, em novas modulações, esses sentidos criadores. Neste espaço, o processo ganha vigor, tônus e corpo.

Nesse sentido, a ideia de mediação não é a mais apropriada, pois não se busca interpretar, ou instruir, mas provocar. Isto é especialmente importante quando se trata de projetos educativos em espaços e programas culturais.

De fato, se observa uma grande sobrecarga de projetos em museus, bibliotecas e centros culturais que trabalham buscando mediar obras e experiências artísti- cas, muitas vezes usando de narrativas impessoais e alheias a energia presente no trabalho do artista. Gastasse muita ação e tempo com isto! Fichas, folders, descrições de quem foi o artista, sua obra, oficinas, traduções. E todo este trabalho integra as noções mais usais dos serviços educativos. O resultado são informações. E informações são básicas para quem as busca, mas irrelevantes para compor um quadro de estratégias que despertem ou revelem a imagem poética.

Interpretar sentidos também é um risco. Circuitos de museus onde há excesso de mediação são muitas vezes exercícios de apagamento dos sentidos e emoções pessoais de cada um diante do trabalho do artista. Indiferença, sono ou magia e reconhecimento, o pathus, campo das emoções, é o motor dessa experiên- cia e raramente pode ser compartilhado.

2 The Artist is Present, MoMA 2010. 3 Picasso Baby, MET 2013.

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“A Batalha do Passinho. Tem influências de Kraftwerk e Afrika Bambaataa. Juntam tudo e fazem uma coisa totalmente insólita. Você vê break, frevo... A surpresa não está só no som, mas na abordagem específica e global ao mesmo tempo.”

Esse é o tipo de espírito e de abordagem que os curadores e programadores de- veriam ter quando pensam em experiências, artistas e grupos cuja origem é não habitual para os estereótipos artísticos. Não há centro e periferia na arte. Há arte. E o que define se essas produções vão se constituir e ser reconhecidas como arte, são as oportunidades de desenvolvimento e de inserção nas programações ditas oficiais. Nada muito diferente do que vive todo artista, mas em condições muito mais difíceis e complexas.

Traçadas essas que me parecem distinções importantes entre o trabalho genui- namente artístico-cultural e o de vocações assistenciais, proponho um retorno ao início desse texto: onde se cruzam a dimensão política da vida, a arte e suas modulações de experiências?

Algumas ideias para indagações. Na crença na imaginação criadora e na sua re- percussão no Outro. Na tensão entre o espaço possível e desejável da reinvenção da política e seu entorpecimento contínuo. Um antídoto contra o sono, alojado em nós mesmos. Um corpo presente. Carne que resiste a morbidade do presente. E sobretudo nutrindo curadores, gestores, os propósitos e programas de arte e cultura de energia, curiosidade, risco e potência. Abrindo um caminho para libertar a arte e suas representações públicas de todo o tipo de domesticação que elimina inquietações e angústias e acaba por fazer o jogo do já jogado.

Se é meio, talvez não deva estar em programas artísticos culturais já que sua finalidade é medida por resultados que não podem ser evidenciados claramente pelo trabalho cultural. Exemplos são fartos e geram confusão conceitual e pro- cessual, entre ações de finalidade social, e mesmo assistencial, e aquelas cuja natureza é a de assegurar com métodos planejados e rigorosos a potencialização e a formação do trabalho artístico.

Digo isso, por que me deparo com ações cheias de boas intenções, que sinalizam com resultados como “a arte ajudando a reduzir a pobreza”, “a cultura como meio de reduzir a violência”, “arte e cultura juntas promovendo a auto-estima de jovens”, e outras tantas afirmações que se justificam quando se olha por lentes de acolher e trabalhar as vulnerabilidades e mazelas sociais, mas de difícil resultado quando a origem e a motivação é artística e mesmo cultura.

Tenho tratado disso em vários artigos e ensaios nos últimos anos e não gostaria de me alongar neste tema, mas apenas sublinhar um aspecto central que diferencia o trabalho social do cultural: em arte e cultura se trabalha com a potencia, o que exige rigor e indagações próprias. No social a mola propulsora é a vulnerabilidade do sujeito diante do meio, o que embaça resultados que possuem propósitos di- ferentes. A motivação de um trabalho cultural sério nunca pode partir de ideias como reduzir violência, mas sim de comungar com uma energia criativa que por óbvio, não tem origem, classe ou geografia privilegiada para existir, mas condições e oportunidades de florescer.

E como surgem as condições e as oportunidades para engajar trabalhos artísticos incríveis que surgem fora da cena tradicional? Primeiro fazendo os programadores serem mais curiosos com linguagens e produções que surgem dos territórios mais distantes do epicentro das produções conhecidas. Um exemplo inspirador vem do Lincoln Center em Nova York, onde o ex-curador público Bill Bragin, faz um trabalho de garimpagem planetário, abrindo espaços para trabalhos artísticos como o da Batalha do Passinho, linguagem coreográfica identificada com as comunidades populares do Rio de Janeiro. Em entrevista feita ao jornal O Globo4,

quando perguntado se algo ainda o surpreende, Bragin afirma:

PARTE III - A mediação cultural junto dos territórios e das comunidades CAPíTULO 6 - Antídoto contra o sono

4 Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/bill-bragin-produ-

ção, prontos a assumirem o risco das suas vidas numa relação corajosa consigo mesmos e com a vida. Hoje, a arte está-se a aproximar escandalosamente das técnicas mais assépticas e esterilizadas, em que o trabalho de campo daqueles que trabalham com o real se assemelha a uma caça ao tesouro para promoção posterior. Existe como tal uma obscenidade flagrante na forma como se absorve o real como de uma potente máquina de sucção, para débito posterior nas redes sociais e em obras de pensamento e autenticidade mais do que duvidosa. O que hoje se diz ser arte comunitária é, cada vez mais, um autêntico cenário de guerra mediática pelos projetos mais socialmente corretos, que nos dão aquele bene- plácito, sorriso seráfico de boas consciências em paz com as suas hipocrisias. É pois de crise que estamos a falar. Vimos, por exemplo, passar nestes anos pela nossa região (no contexto do Nodar Rural Art Lab da Binaural/Nodar) toda uma legião de artistas que, confessemo-lo, nos foram deixando cada vez menos entusiasmos, numa suave curva descendente com belíssimas exceções. Tantas palavras, tantos projetos, tanta indiferença, tanto ego, tantas carreiras. Parece que hoje já ninguém questiona, por exemplo: porque raio um artista tem que ser cada vez mais um universitário para adquirir legitimidade? Não será esta asso- ciação o paradoxo e negação de toda a condição artística, daqueles que antes escolhiam deliberadamente outra estrada, mais perigosa, suja, rica e individual, como forma de expiarem demónios, culpas e talentos numa conexão invisível com o mais visível que há no mundo, naqueles átimos entre sensação e pensamento que nos ligam de forma irremediável ao outro, o qual não tem que ser um ser exótico e periférico ao nosso mundo, pode ser qualquer um que esteja ao lado das nossas escolhas de vida.

2. DO CADERNO DAS NOSSAS PERPLExIDADES, ALINHEMOS ALGuMAS EMANAçõES DESTES TEMPOS.

Estes são tempos de produção maciça e rumorosa de imagens e sons e de indiferença crescente em relação ao específico, à poiesis, ao pathos, à crítica, ao subtil, ao difícil de ser contado.

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No documento PARTE I para o desenvolvimento? (páginas 32-36)