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O QUE PODE O COMUM TER DE ExCECIONAL?

No documento PARTE I para o desenvolvimento? (páginas 38-43)

Elisabete Paiva

Diretora artística do Festival Materiais Diversos

No ano de 2009, precisamente numa formação da ARTEMREDE, apresentei como premissa do trabalho que desenvolvia no Serviço Educativo do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, a substituição do termo “públicos” pelo termo “comuni- dades” para designar os destinatários daquele programa. Se me parecia evidente que precisávamos de incluir nos processos os mediadores da nossa intervenção, os adultos, pais ou educadores, a quem cabia a decisão de participar ou não nas atividades propostas, na verdade, o que me parecia mesmo necessário era ter uma postura crítica sobre o nosso papel, não apenas enquanto departamento educativo mas enquanto instituição cultural, responsabilizando-nos pela nossa forma de atuar num contexto onde éramos simultaneamente uma referência, para uns, um corpo alienígena, para outros, e nada, para alguns.

Resumindo, definir o programa educativo de uma instituição cultural de acordo com públicos-alvo e faixas etárias que deveriam (vir a) frequentar espetáculos – basta fazer um esforço - porquê copiarmos indolentemente as escolhas

do vizinho?

Ouvir, ver e agir com paciência e profundidade, sempre.

Não apaparicar comunidades com sorrisos seráficos (que lindas são estas velhinhas!) como meio para obter consentimentos criativos.

Atuar com frontalidade no real, dizendo o que se pretende e esperar sauda- velmente o confronto e alguma dose de incompreensão (quão deliciosas podem ser as incompreensões).

Não ter medo da solidão criativa. Mais vale um criador solitário que arrisca o pêlo quotidiano do que 100 criadores medianos “pour épater la bourgeoisie”.

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Voltando ao ano de 2009.

As Comédias do Minho produziam Contrabando, de Madalena Victorino, e a AR- TEMREDE produzia Vale, também de Madalena Victorino, com música de Carlos Bica. Surgia, no Martim Moniz, o Festival TODOS – Caminhada de Culturas e, em Minde, o Festival Materiais Diversos. Em Guimarães, realizava-se a primeira edi- ção d’Os Dias a Crescer, programa que tinha como elemento central um projeto de criação comunitária (mais tarde corrigido para “participação comunitária”) e a apresentação lado a lado de manifestações de várias origens, do tradicional ao experimental, do popular ao erudito. Entretanto, a direção de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura constituía a sua equipa de programadores e assumia como uma área fundamental e autónoma o que designou como “área de Comuni- dade”, a primeira equipa que avançaria para o terreno, ainda no final daquele ano. Algo estava a acontecer. Artistas, programadores e decisores políticos integravam nos discursos, nas práticas e nos orçamentos “as comunidades” em projetos de criação artística com grande ou razoável visibilidade pública, realidade que se consolidou e expandiu nos últimos cinco anos, ao nível da produção e do discurso. Mas, se este investimento se apresenta quase consensualmente como relevante e necessário, não deixa de ser urgente acautelar algumas questões nem sempre aprofundadas.

Quando falamos de projetos de criação artística com as comunidades, depreen- demos que habitualmente existe entre uma coisa e outra uma separação? Quem define essa separação e em que consiste ela? Terão as artes e as comunidades de andar juntas, mas separadas de alguma outra coisa? E o conhecimento, de modo mais geral, anda ligado às comunidades? Que outras dicotomias se revelam face a esta e deveriam ser discutidas: institucional/ alternativo, formal/ informal, erudito/ popular, tradicional/ experimental, cultural/ social, rico/ pobre? Que tensão existe entre individual e coletivo? De que forma as comunidades inte- gram ou se impõem sobre os indivíduos? As comunidades em que queremos atuar são libertadoras, opressoras, fortes, frágeis, construtivas, dinâmicas, fechadas? e oficinas parecia-nos francamente pouco, porque retirava ao “espaço do tea-

tro” a possibilidade de ser um lugar de acontecimentos e atravessamentos, um lugar de risco, emocionante, um lugar verdadeiramente do lugar, ou, se quisermos figurar: uma praça em vez de um farol.

De forma simples começámos a identificar várias comunidades: a comunidade fa- miliar, nuclear ou alargada, tradicional ou não, a comunidade escolar, com as suas hierarquias específicas, a comunidade educativa, que inclui as duas primeiras e outros agentes locais; e o programa começou a contemplar os cruzamentos entre elas. Num segundo momento tomámos consciência de que existem hoje diversas comunidades marcadas por uma espécie de institucionalização e não apenas aquelas que naturalmente já encaramos como institucionalizadas. Para além dos seniores, detidos, portadores de doença, pessoas com mobilidade reduzida, também as crianças e os jovens, que não podem (ou dificilmente podem) nego- ciar a sua obrigação social de “ir à escola”, e os professores, que cumprem neste quadro um papel tão ingrato, estão em boa medida sujeitos a processos de insti- tucionalização quotidianos, que pesam sobre os seus modos de pensar e de agir. Um terceiro ponto ainda: havia que ter consciência do peso que tem a divisão social entre os que produzem e os que não produzem e da voz que, por esse motivo, é dada a uns e retirada a outros.

Por último, era óbvio que teríamos de pensar sobre a pertença da própria insti- tuição. O que significa para um “teatro” (chamo-lhe assim por simplificação) ser um projeto da cidade? Quem é que um teatro representa, quando se trata de uma instituição pública? Uma comunidade, várias, todas, nenhuma?

Tornava-se claro que, apesar de identificarmos as comunidades já referidas, elas não esgotavam as diversas pertenças dos já referidos públicos... e muito menos o vasto leque de não-públicos... Começou-se então a formar a figura dos “outros”, que naquele caso representavam principalmente as comunidades rurais e subur- banas do concelho de Guimarães. E aí começámos a entrar num terreno em que as questões da identidade cultural adquiriram outro peso.

âmbito ainda sofre de dois excessos: excesso de identidade e excesso de arte. Tentarei explicar.

Em que medida excesso de identidade?

As ditas comunidades surgem na maioria das vezes vinculadas à identidade de um território, mas há que pensar que comunidades ditas “naturais” provavelmente já não existem. E, por isso, ao falar da identidade de determinado território há que ser cauteloso e declinar o termo no plural – identidades. Assim, por exemplo, nas cidades portuguesas de média dimensão existem ainda muitos traços de ruralidade, que normalmente se quer esconder, e que convivem com o mesmo universo do digital e das redes sociais que em qualquer cidade europeia. Do mesmo modo, nem todas as comunidades migrantes se querem ver identificadas com as suas raízes, mas podem, ao invés, querer ser aceites como parte de um nós, onde quer que agora estejam. Ou, ao contrário, sofrem elas próprias de excesso de identi- dade e operar sobre esse sentimento pode promover um isolamento persistente. Face a estas questões penso, pois, que pode ser mais produtivo operar nas tensões entre: as identidades individuais e as identidades coletivas, as múltiplas pertenças e outra noção de território – do imaginário e do porvir.

Excesso de arte porquê?

Porque fazer pesar sobre as artes aquilo que é da responsabilidade conjunta da política, da economia, da educação ou do urbanismo não é rigoroso e instrumen- taliza não apenas as artes e os artistas, mas também os desejos das comunidades. Por outro lado, face à incrível diversidade de linguagens, estéticas, metodologias e filiações filosóficas parece-me pouco que os projetos de criação com as comu- nidades se reduzam, na sua maioria, a projetos feitos com equipas artísticas que produzem espetáculos com não profissionais.

Por último, a ideia de investir nas comunidades de forma mais direta representa para muitos decisores (les élus, os eleitos, como dizem os franceses) um fator O que define as comunidades? É o território? É uma identidade? É um sentimento

interno ou definido por um olhar exterior? Se uma possível e simples definição de comunidade é “o sentimento de nós” (seg. Ferdinand Tonnies) não deixa de ser curioso perceber que na maioria dos casos nos projetos de criação comunitária as comunidades são “os outros”: outra cultura, outra zona da cidade, outro estrato socioeconómico, outra idade, ... Esses outros precisam de nós? Há uma vontade recíproca de nos encontrarmos e de fazermos algo em comum?

Fazemos parte de uma só comunidade? De várias?

Que “sentimento dos outros” é esse? Os artistas estão a operar em comunidades que sentem como suas ou não são suas as comunidades mas os problemas delas? Ou não são seus os problemas mas o património? Ou será um património em devir que é comum?

É um problema de responsabilidade? De quem, dos artistas?

Que papel cabe a cada ator nestes projetos - artistas, comunidades, programadores, decisores políticos? Ele é claro para todos os intervenientes? Existe uma definição de papéis a priori? Existe uma metodologia adequada para estes projetos? Os projetos artísticos com as comunidades têm sempre que se concretizar num produto final? E esse produto tem de ser sempre um objeto artístico? O que acontece quando esses projetos se tornam replicáveis? É replicada a metodologia ou é replicado o objeto criado? Perdoem-me o excesso de perguntas.

O assunto tem crescido dentro e fora de Portugal ao ponto de, por exemplo, numa rede de programação europeia com parceiros muito diferentes dos portugueses em escala, mediatismo e consolidação, se fala da hipótese de passar a investir apenas em projetos artísticos com as comunidades a breve trecho...

Que projetos então? Para que territórios? Com quem? Com que fim?

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Poderão ser projetos artísticos que têm o desejo de se ancorar numa pesquisa junto de cidadãos comuns, mas cujo objetivo não tenha na criação a sua participação direta. Poderão ser projetos de co-criação ou projetos mais dirigidos.

Creio que todas estas abordagens configuram territórios de atuação possíveis, mas elas devem ser adequadas aos contextos, desejos e atores convocados para o pensar e para o fazer.

É necessário ter consciência do recorte que se propõe das referidas comunidades, que as dignifique e que as não encerre num tempo anacrónico, numa geografia confinada, num território cristalizado. Saber da necessidade de estar aqui e não acolá, com estas pessoas e não com aquelas. Saber da vontade de as pessoas darem do seu tempo, de se exporem, sem estar ao serviço de algum propósito alheio que venha confirmar o status quo.

É necessário que estes projetos se enquadrem num pensamento transversal sobre os lugares e sobre a sociedade.

É importante conferir materialidade a estes projetos, tornando-os visíveis, mas saber diferenciar a natureza adequada de cada projeto, de carácter mais artístico, mais transdisciplinar, mais engajado, mais poético, permitindo aos artistas o es- paço de experimentação formal que a eles compete, dando-lhes uma retaguarda justa, sólida e dialogante.

É essencial não ser moralista em relação às artes – não colocar sobre elas o peso da salvação, o peso da utilidade, o peso do serviço público, o peso do consenso. Não são essas as funções das artes. É por outros motivos que elas são absolutamente necessárias, para cada um e para que existam nós.

O que pode então o comum ter de excecional?

O que podem as artes, que lidam com a exceção, no terreno do comum? de descriminação em relação ao financiamento de projetos protagonizados por

artistas. Um projeto com a comunidade “em cena” pesa mais, levando a esquecer que a melhor forma de devolver aos cidadãos as suas expectativas é fazê-lo em diversidade de formas, não procurando o consenso de um auditório cheio, mas o acesso democrático a cidadãos com diferentes territórios imaginários a uma casa que é pública, comum – seja ela teatro, biblioteca ou museu.

Ao cabo de alguns anos de caminho e face a tanto potencial é de facto impor- tante repensar as formas como se podem desenvolver e manifestar os projetos de criação comunitária.

Poderão ser projetos de pesquisa de carácter social, educativo, económico ou científico destinados ao desenvolvimento de determinada comunidade ou terri- tório, integrando equipas pluridisciplinares onde também haja artistas – quantas vezes os artistas são chamados a integrar este tipo de equipas?

Poderão ser projetos de documentação e arquivo feitos por uma comunidade sobre si mesma ou por outra comunidade sobre essa ou, de forma transversal, sobre um deter- minado aspeto do território ou da atualidade que mereça atenção. E podem resultar desses projetos manifestações físicas evidentes, mas pode também colocar-se em primeiro plano a aquisição de ferramentas de registo, arquivo, comentário e debate, em processos de co-responsabilização dos cidadãos no combate ao esquecimento, à univocidade, à volatilidade, enfim, à morte do melhor que constitui as cidades. Poderão ser projetos essencialmente educativos, em que a cooperação e a ho- rizontalidade na aprendizagem sejam o foco, em que aqueles que pensam que nada sabem vêm partilhar o que afinal sabem com outros com maior capital simbólico reconhecido.

Poderão ser projetos artísticos protagonizados por não profissionais em que não haja qualquer problema social a resolver, mas antes se realce a necessidade da poesia e do sensível na vida, compreendendo que a experiência de criar, interpretar, compor, ouvir, ver-se e ver os outros é profunda, comovente e edificante e, por vezes, transformadora.

Mas o aspeto que mais me comove e me mobiliza nos projetos de criação comu- nitária é o trabalho em comum, o fazer em comum.

Porque a cooperação e em particular a cooperação entre os diferentes é, a meu ver, nesta sociedade em transição, uma resposta urgente e necessária à volatilização das relações, dos recursos, das ideias e dos compromissos. Porque abre lugar ao diverso e ao complementar e por isso se distancia do totalitarismo.

Porque o trabalho em comum exige negociação, exige a escuta e a manifestação de pontos de vista, exige presença e tempo, e por isso devolve à linguagem um lugar de possibilidade e ao corpo um lugar para existir.

E tudo isto não deixa de me encher de esperança5.

A energia partilhada nestes projetos, que se multiplica, contrasta com o dispêndio isolado de energia que com frequência sentimos na vida quotidiana, em particular nas cidades, onde as relações de vizinhança e de cooperação tendem a ser mais precárias. Esta vitalidade pode alimentar e inspirar, renovando as vontades e a capacidade de agir não só de quem participa como de quem frui dos resultados dessas ações quando eles são visíveis.

Ler e mapear o seu próprio território experiencial e relacioná-lo com outros ter- ritórios promove seguramente o desenvolvimento da consciência de si e amplia o conhecimento e o leque de referências de indivíduos e grupos, mas pode também desenvolver a autoestima, o sentido crítico, a curiosidade e o sentido de coletivo. Promove-se assim a construção de sentidos de pertença que transcendem o núcleo familiar, o espaço físico da casa (ou mesmo do quarto), a tribo, enfim, o nível mais comum das afinidades imediatas e quotidianas – percebemos, e isso é muito impor- tante, que não estamos sozinhos. Constrói-se um espaço e um potencial de relações. E coloca cada um e cada nós em contacto com ideias diversas sobre o outro, os outros e sobre si mesmo, contrariando o confinamento ideológico e aceitando a alteridade e a complexidade de ser indivíduo e de no viver presente poder reclamar múltiplas pertenças.

Este é também um passo para uma operação intelectual fundamental, a abstração. O trabalho de criação é um trabalho de construção: ele manifesta-se, gera ma- téria e, nesse sentido, é afirmativo. Por outro lado, a criação artística integra o erro, o pormenor, o acaso, “o lado b”, a dúvida, o subconsciente, o inexplicá- vel, o subtil, enfim, é uma construção que não é obrigatoriamente eficiente nem eficaz, embora forme corpo.

O trabalho de criação também pode destruir. Ele pode ser um meio de pôr em causa, de questionar, de provocar, de desobedecer, de fraturar, mas porque se trata de um trabalho de ensaio e de representação, não compromete imediatamente a estabilidade que a realidade já conhecida representa na sua ordem. É por isso um espaço de enorme liberdade e de reinvenção.

5 Sugere-se a consulta de Cardoso (2011), Guimarães (2012), Rayner (2013) e Sarmento (2012, 2014), bem como dos

seguintes sítios: http://www.collettivocinetico.it/age.html | http://joaosousacardoso.pt: https://www.facebook.com/pages/TEATRO-EXPANDIDO/820265858064722?sk=photos_stream; https://museudacrise.wordpress.com | http://www.museudodouro.pt/educacao.

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Teatro Expandido!, de João Sousa Cardoso | A Ronda, de Arthur Schnitzler, janeiro 2015, Teatro Municipal do Porto (Campo Alegre) | créditos Catarina Oliveira

Museu da Crise, de Daniela Paes Leão e Merel Willemsen, créditos Merel Willemsen, 1 - workshop na Universidade do Minho (2012), 2 - workshop na Plataforma das Artes (2013)

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