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COMO TORNAR MAIS EFICIENTE UMA POLíTICA “FRACA”?

No documento PARTE I para o desenvolvimento? (páginas 44-47)

joão Ferrão

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Esta intervenção parte de uma questão inicial: como colocar a cultura em agendas mais vastas ou, dito de outra forma, como colocar uma política pública “fraca” em agendas poderosas de outros?

A questão colocada baseia-se num pressuposto que, na verdade, corresponde a uma constatação: as políticas culturais, como as de ordenamento do território e tantas outras, são estruturalmente “fracas”. Por quê? Porque não possuem nenhuma das características das políticas “fortes”. Em primeiro lugar, não inte- gram a família das políticas comunitárias, como a política agrícola comum (PAC) ou a política de ambiente, que por essa razão beneficiam da existência de quadros legais vinculativos para todos os estados-membros e ainda de apoios financeiros diretos avultados. Por outro lado, não mobilizam interesses económicos pode-

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cadeia de valor do turismo da Região, tendo uma grande importância na crescente captação de fluxos turísticos” (p. 123). Estipula-se, mesmo, que “As intervenções de promoção e desenvolvimento do património cultural e os projetos de animação e programação cultural ou de organização de eventos deverão estar devidamente enquadrados em estratégias de promoção turística.” (p. 127).

Em terceiro lugar, o acesso a serviços culturais como componente de estratégias de redução de desigualdades, promoção da inclusão social e combate à pobreza e à discriminação, envolvendo, por exemplo, ações de mediação intercultural em serviços públicos junto de comunidades imigrantes e minorias étnicas ou, ainda, atividades culturais dirigidas a idosos.

Finalmente, e em quarto lugar, a cultura como componente de estratégias de desenvolvimento socioeconómico de base territorial (intervenções integradas de regeneração urbanística e social em comunidades e zonas urbanas desfavo- recidas, intervenções locais de base comunitária), incluindo um leque reduzido de referências explícitas à componente cultural, como, por exemplo, a promoção e valorização económica do património cultural (p. 179).

Crescimento inteligente, atratividade turística, inclusão social e desenvolvimento socioeconómico de base territorial: estas são as quatro agendas, com destaque para as duas primeiras, presentes no Programa Regional de Lisboa 2014-20 que invocam o domínio da cultura, ainda que de forma muito distinta: como atividade económica, como recurso/ativo, como serviço aos cidadãos ou como fator de desenvolvimento local. Em todas estas situações a cultura ocupa um papel relevante mas instrumental em relação a objetivos que lhe são externos: a cultura é vista como um meio e não como um fim. Não surpreende, portanto, que a cultura enquanto domínio específico e agenda própria não tenha representação neste Programa Regional.

Face a esta constatação, não podemos deixar de colocar três questões para debate:

Como podem os atores culturais aumentar a sua capacidade de iniciati- va, diálogo, mediação e coprodução no contexto de agendas produzidas iniciativas de proximidade desenvolvidas nas últimas décadas pelas autarquias

um pouco por todo o país, existe hoje uma maior consciência social em relação à importância da criação e da oferta culturais ao nível local.

Compreende-se agora melhor o sentido da questão inicialmente formulada: face à existência débil e mesmo em quebra das políticas culturais ao nível nacional, como colocá-las noutras agendas mais poderosas, como integrar as agendas dos outros, retirando dessa presença vantagem para criadores e prestadores de serviços culturais e, ao mesmo tempo, benefício para cidadãos, comunidades e territórios, do bairro ao município, da cidade à região? Em suma, como penetrar, com êxito individual e proveito coletivo, em estratégias e instrumentos de terceiros? A análise do Programa Operacional Regional de Lisboa para 2014-20, onde a cultura per se está praticamente ausente, entreabre, ou abre mesmo, quatro portas a partir de agendas específicas.

Em primeiro lugar, as indústrias culturais e criativas como componente de estra- tégias de crescimento inteligente da Região. As indústrias culturais e criativas são caracterizadas como tendo “um potencial de desenvolvimento acelerado” (p. 5), a valorização dos bens culturais e dos serviços que se lhe associam é classi- ficada como “fundamental para captar e densificar a ‘classe criativa’ e gerar um ambiente mais favorável à inovação” (p. 12) e as indústrias criativas e de produção de conteúdos são eleitas como um dos domínios e prioridades da especialização inteligente da Região (p. 40), sendo-lhes atribuída uma forte capacidade de integração de recursos humanos altamente qualificados nas empresas (p. 157). Em segundo lugar, a valorização dos recursos culturais como componente de estratégias de atratividade turística. Os recursos culturais e patrimoniais são considerados como fatores simultaneamente identitários e diferenciadores da Região (p. 4) e a riqueza de ativos culturais (3 locais classificados como Patri- mónio da Humanidade, mais de uma centena de monumentos nacionais e sete dezenas de museus) é interpretada como a base da atratividade turística da área de Lisboa (p. 7), contribuindo para afirmar esta Região como um destino turístico de excelência (p. 31), já que os recursos culturais são a “base da experiência e da

Existe hoje um número suficientemente diversificado de experiências deste casamento cultura / cidade para podermos avaliar os resultados e impactos alcançados em cada um dos casos, bem como os fatores e as circunstâncias que os influenciaram. Mas para agendas e políticas “fracas”, criar sinergias positivas e duradouras com outras agendas e políticas igualmente “fracas” pode constituir um contrabalanço decisivo em relação aos efeitos centrifugadores resultantes da participação em agendas “fortes” lideradas por protagonistas que olham para a cultura como uma componente basicamente instrumental das suas estratégias. É neste sentido que a cultura e o território deverão constituir dois pilares que se enriqueçam reciprocamente: a cultura contribui para alargar o conteúdo das estratégias de desenvolvimento territorial, com incidência em espaços especí- ficos ou envolvendo diversos lugares organizados em rede; o território amplia o potencial de convergência entre atores e de articulação entre intervenções em torno de projetos territorialmente enraizados, com ganhos de eficiência tanto do lado da oferta como dos públicos visados.

A cooperação entre “fracos” não os torna necessariamente “fortes”. Mas o casa- mento cultura-território surge como uma frente de trabalho particularmente profícua e ainda com um elevado potencial de progressão. Essa integração corresponde, talvez, à alternativa mais sólida e consistente entre uma agenda cultural autónoma mas anémica e uma presença da cultura em agendas pode- rosas e políticas “fortes” mas comandadas por protagonistas que lhe atribuem uma função essencialmente instrumental e uma posição não raro subordinada. e comandadas por atores com visões, prioridades e interesses distintos dos

seus e quase sempre com mais poder e recursos, e com maior visibilidade e reconhecimento social?

Até que ponto podem os territórios, entendidos aqui na sua aceção mais ampla, do bairro ao município, da comunidade rural à região, funcionar como focos federadores de convergências e de co-construção de uma visão parti- lhada e de uma estratégia comum envolvendo uma pluralidade de indivíduos e organizações, incluindo os do domínio da cultura?

Em que medida podemos prescindir do protagonismo político do Governo e das autarquias no que se refere à criação de um enquadramento que incentive e ajude a viabilizar os processos de convergência e de construção conjunta referidos na questão anterior?

Ser convidado, por muito atrativas que sejam as condições do convite e por mais afável que seja o anfitrião, não permite necessariamente ser coautor. Participar numa agenda que é pensada com objetivos próprios e liderada por protagonistas específicos impõe inevitáveis relações de assimetria, em termos de poder, autonomia e liberdade, entre quem comanda e quem é chamado a participar. É certo que os atores da cultura – na sua significativa diversidade - ganham em integrar agendas que lhes são externas. Mas essa não pode ser a única solução que lhes resta num contexto de insuficiente enquadramento político, apoios públicos parcos, reduzida responsabilidade cultural das empresas e escassa consciencialização dos cidadãos no que se refere ao valor social das várias atividades culturais. Por outro lado, a inserção da componente cultural em outras agendas não pode pautar-se exclu- sivamente por critérios de competitividade e de criação de emprego, por muito im- portantes que estes objetivos sejam, sobretudo num contexto de crise como o atual. Ao nível internacional, e em particular na Europa, tem-se assistido nos últimos anos à aproximação crescente de duas agendas “fracas”: a da cultura e a das cidades. Esta aproximação, que em alguns casos permite mesmo falar em hibri- dização, tem assumido modalidades muito distintas, umas centradas numa ótica de mercadorização e marketing das cidades, outras baseadas em dinâmicas de animação, criação e capacitação cultural de base comunitária.

do papel da tecnologia na criação e difusão de obras e imaginários artísticos;

do papel da tecnologia na reconfiguração de identidades e de sentidos de pertença.

II – AS LIGAçõES ENTRE áREAS DA GOvERNAçãO

O campo de intervenção das políticas culturais tem, assim, deixado de se situar apenas no seu campo tradicional e sectorial relacionado com a criação, produção, difusão das artes e com a protecção e promoção do património, para se começar a infiltrar progressivamente nas demais áreas de actividade humana, de natureza económica, social, educativa, etc.

Esta evolução e transformação progressiva de uma área de intervenção sectorial para uma área de intervenção transversal, é complexa e multifacetada. Implica, num primeiro nível, uma abordagem e definição do sector, a partir da sua confi- guração tradicional, na sua pluralidade e diversidade intrínsecas:

em termos dos diversos sub-sectores que a integram - do património às artes visuais, passando pelas artes performativas, pelas indústrias culturais;

em termos dos bens materiais e imateriais e serviços criados e passíveis de ser fruídos;

em termos dos mecanismos de criação, produção, difusão, sustentação financeira e organizacional em que assentam, nomeadamente, no facto de funcionarem num contexto de mercado livre ou de mercado assistido. Nesse sentido, é fundamental pensar as políticas culturais, não apenas a partir das questões ligadas à viabilização de condições para a criação, produção, dis- tribuição e recepção de bens e serviços culturais, mas também a partir da ideia da promoção da cidadania, dos direitos culturais e da liberdade cultural - capa- cidade de escolha da identidade cultural em respeito pela diversidade e pelas diferenças culturais - entendida esta última como uma dimensão fundamental do desenvolvimento humano ou a partir da indispensável preservação e pro- moção da diversidade cultural, entendida como um recurso fundamental para o desenvolvimento sustentável da humanidade.

CAPíTuLO 10

CULTURA E TERRITóRIO:

No documento PARTE I para o desenvolvimento? (páginas 44-47)