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Antropologia criminal: Cesare Lombroso

2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.1.5 Escola positivista

2.1.5.1 Antropologia criminal: Cesare Lombroso

Em uma rápida busca pela internet vamos encontrar dezenas, senão mais de uma centena, de referências em artigos, livros e teses, à Cesare Lombroso como o pai da criminologia26, título que lhe é atribuído em todo o lugar do mundo (HAGAN, 2011; GABBIDON, 2010; FERNANDES; FERNANDES, 1995; THOMPSON, 1998; MAYRINK, 1982). Contudo há quem atribua a paternidade da criminologia a Beccaria (HAGGERTY, 2001; SWANEPOEL; SAFFY; ZIETSMAN, 2008).

Impressionante como se atribuem pais às ciências. Sob a proteção de um pai fica mais fácil cometer equívocos. O pai está aí mesmo para amparar. Freud, paradoxalmente considerado o pai da psicanálise, falando da religião, explicou bem que o indivíduo, destinado a permanecer uma criança para sempre, anseia por um pai que o proteja, com poderes superiores, das consequências de sua debilidade humana (1980). Assim a criminologia ganhou um pai, um exemplo e uma proteção, que lhe permitiu e ainda permite vários erros, porque ele mesmo, o pai, simboliza o equívoco.

Desnecessário reconstruir a teoria lombrosiana do criminoso nato, desenvolvida na obra que selou a sua paternidade da criminologia, publicada pela primeira vez em 1876. Em O homem delinqüente (2001), ele defendia que certos tipos de criminosos eram atavicamente predispostos à prática delituosa, pensamento acerca do qual não há quem não tenha ouvido falar, vez que há o verbete lombrosiano nos nossos dicionários, inclusive no Dicionário Brasileiro de Insultos (ARANHA, 2002). Portanto, Lombroso acabou sendo pai também de outro símbolo, desta vez relacionado ao preconceito e à estigmatização.

Inviável defender a teoria de Lombroso, médico e professor italiano de respeito em sua época, mas pode-se tentar entender o erro do ser humano Lombroso. Sim, o pai também é humano, e Lombroso acreditava, movido pelo entusiasmo do renascimento de uma Itália recém unificada, movimento no qual ele teve participação efetiva, pela força do positivismo

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Apesar de Lombroso não ter se intitulado criminólogo, mas sim da escola antropológica italiana (SHECAIRA, 2008).

que crescia em todos os ramos científicos, que podia criar uma teoria sobre o crime nos moldes do evolucionismo darwiniano. Aliás, o grande mérito atribuído a Lombroso foi o de ter superado a análise metafísica do crime e, embora ainda que erroneamente, ter procurado explicações em fatos e provas materialmente verificáveis (DIAS; ANDRADE, 1997), derivando daí o nome escola positivista.

Ao mesmo tempo, no século XIX, eram poucos os que tinham estudo e poderiam contestar Lombroso, enquanto muitos necessitavam de um sistema geral de crenças que se convertesse em substituto da religião tradicional e desse respostas para questões inexplicáveis. O capitalismo surgia baseado no livre mercado, sem o poder despótico do rei, e uma ciência de controle de massas era bem vinda, “o método científico adotado para o estudo da sociedade seria uma alternativa apolítica para abordar os problemas sociais como objetos neutros governados por leis universalmente válidas” (OLMO, 1999, p. 24)27.

A situação era propícia para um homem que colocava o seu instinto científico acima da própria racionalidade e substituía a meditação lógica pelo improviso, perseguindo seus objetivos obstinadamente em prejuízo à própria verdade, notadamente quando se via contestado e, na Academia, não foram raras as contestações (MAZZARELLO, 1998).

Tendo sido o crime uma doença para Lombroso, o tratamento não poderia ser a pena de prisão reeducativa, mas sim algum remédio que a ciência ainda não conhecia. Enquanto isso, a indicação não era de cárcere, mas sim de medições de crânio, de orelhas, de narizes, pesagens, estatísticas, e quanto mais fosse necessário para separar, classificar e excluir os que eram irrecuperáveis.

Foi Lombroso mesmo quem disse: “não é, por certo, o sistema penitenciário que previne as reincidências; as prisões são, ao contrário, sua causa principal” (2001, p. 403). A despeito da correção da sentença, o médico italiano não estava se referindo ao efeito

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Texto original: “el método científico adoptado para el estúdio de la sociedad sería uma alternativa apolítica para abordar los problemas sociales como objetos neutrales gobernados por leyes universalmente válidas”. Rosa del Olmo, mais adiante, citando Franz Hinkelammert, completa que a ordem capitalista é baseada no conceito de que todos indivíduos gozam de liberdades iguais no seio da sociedade e “‘el individuo que rechaza el orden social es un individuo que rehúsa ser libre y por lo tanto es perverso. La perversión puede tener distintas causas, pero da derecho a obligar al individuo a ser libre y en caso de rebeldia a tratarlo como uma alimaña’. Con esta concepción se justificaba el castigo más severo para el que no quisiera ser libre; pero habría que determinar qué significaba ‘ser libre’ en ese momento” (1999, p. 29)

criminógeno da prisão, descoberto anteriormente por Howard, mas sim ao fato de que muitos criminosos reincidiam porque queriam passar um tempo na prisão para restabelecer a saúde ou para rever os companheiros, retornando de forma gloriosa.

Lombroso não percebeu que o que ele pretendia fazer era uma ciência humana e que, como tal, “apresenta um conhecimento parcial, fragmentado, provisório” (SHECAIRA,2008, p. 42). Ele pesquisou criminosos na prisão, já destruídos pelo próprio cárcere, que mantém uma postura defensiva, quando não irônica ou dissimulada, como forma de proteção contra aquele que vem examiná-lo. E mesmo que trabalhando com quem vivia em liberdade e a quem ele atribuía a qualidade de criminoso, é evidente que suas pesquisas continuavam prejudicadas pelo retraimento comum a qualquer pessoa contra aquele que vem etiquetá-lo.

Paolo Mazzarelo, citando Sighele, definiu bem as penas estabelecidas na teoria lombrosiana para os tipos de delinquentes encontrados:

Para Lombroso existiam os criminosos sem esperança de arrependimento. Tais eram os «delinquentes natos», a forma mais atávica de ser humano. Para confrontá-los a sociedade tem o direito de defender-se inclusive com a pena de morte, assim como o homem se defende dos animais ferozes sem que com isso «sinta culpa de não ter nascido cordeiro». Há igualmente os delinquentes que, por sua potencial periculosidade social, devem ser mantidos no cárcere ou no manicômio por toda a vida, independentemente do crime que tenham cometido. Entretanto há aqueles em que uma genérica predisposição e um fator ocasional no ambiente são desencadeadores de um evento criminal, os quais podem ser enviados para a reabilitação, por exemplo em uma colônia agrícola ou industrial28(2005, p. 24-25) O texto acima é esclarecedor, fala de arrependimento, de defesa social, de reabilitação e até de colônia agrícola ou industrial, estabelecimento que a atual lei brasileira, embora descumprida, exige que tenha em todos os Estados (art. 35, §1º, do Código Penal). É um texto que praticamente resume a história da punição, desde o arrependimento exigido no início, com o acusado podendo ser morto ou purgando uma pena, passando pela defesa da sociedade como um ente estabelecido em contrato, até a reabilitação e os locais de punição que encontramos hoje. Para Lombroso, quanto mais evoluído fosse o homem, mais evoluída deveria ser a pena.

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Tradução livre do texto: “Per lombroso esistevano criminale senza speranza di resipiscenza. Tali erano i «delinquenti nati», le forme più ataviche di esseri umani. Nei loro confronti la cocietà aveva il diritto di difendersi anche con la pena di morte, cosi come l’uomo si difende dalle belve feroci senza com questo «credere che esse abbian colpa di non essere nate agnelli». Inoltre vi erano delinquente che, per la loro pericolosità sociale potencziale, dovevano essere tenuti in cárcere o nel manicômio per tutta la vita, independentemente dall’entità del crimini da loro commesso. Invece altri, nei quali una genérica predisposizione aveva trovato nell’ambiente l’occasionale fattore scatenante di un evento criminale, potevano essere avviati alla riabilitazione, per esempio in uma colônia agrícola o industriale” (BORINGHIERI, 2005, p. 24-25)

Entretanto, bem se vê que não se pode atribuir a Lombroso um ideal ressocializador. Ele era um médico e como médico pensou em tratar o que achou ser uma enfermidade.

Alguns podem ver nas teses de Lombroso o germe do que se convencionou chamar tratamento penitenciário, mas ao que tudo indica essa ideia de tratamento nasceu da mesma forma que a prisão, aos poucos, fazendo parte do próprio sentimento de quem trabalhava com o cárcere. Depois falaremos com mais minúcias (2.1.6), contudo, no momento em que Lombroso escrevia a sua tese, nos Estados Unidos da América, eram criados os primeiros sistemas penitenciários, cada um com uma regra que, cruel ou não, demonstrava o empirismo em que foi forjada a nossa prática penitenciária.

De Lombroso podemos tirar uma lição para o tema deste trabalho: a cegueira que pode afetar a pessoa que trata um assunto relacionado às relações sociais, nas quais se inclui o crime, pode levar a consequências seríssimas. Não interessa de onde é derivada essa cegueira, se do preconceito, da limitação histórica ou social do pseudocientista.

Lombroso possui uma biografia interessante e seus biógrafos afirmam ter sido ele uma pessoa humana e amiga dos pobres, mas também teimosa e perseverante (MAZZARELLO, 1998), o que o fez colocar uma máscara sobre os seus sentimentos em nome da ciência que ele pensava estar criando para ajudar a socieade. Pelo que se extrai de suas biografias, Lombroso não percebeu que sua prática poderia conduzir, ao contrário, à estigmatização e até ao genocídio29. Igualmente Bentham não imaginou até onde o utilitarismo levado ao exagero poderia chegar.

Lombroso foi seguido, tem seguidores até hoje, mas uma das formas de apagar os rastros dos que o seguem foi destruir a sua imagem e seu significado, foi ridicularizá-lo, fazer parecer que Lombroso era um completo idiota. Sua obra foi banida da Academia como uma heresia na Idade Média. Ainda assim há que se citar dois trechos do livro proibido, O homem delinquente:

Eu direi mais: a complacência que encontramos no público, mesmo pela condenação de um alienado culpado de um ato de selvageria, etc, é um resto do antigo sentimento

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Quando as doutrinas antissemitas começaram a se difundir na Europa, a partir de 1880, Lombroso, que era judeu de nascença, se viu obrigado a refutá-las alegando que o antissemitismo sim era uma forma de degeneração. Todavia, o criativo recurso não convenceu os partidos políticos que criavam raízes na França, Alemanha e Áustria (HEMAN, 1998).

de vingança que, a seu turno, como veremos adiante, é a fonte da maior parte dos delitos, porque persiste em maior proporção no criminoso nato. A oposição encarniçada que encontra a nova escola antropológica criminal que, olhando os culpados como doentes, quer, por isso mesmo, lhes aplicar a detenção perpétua, provém, sem qualquer dúvida, de um sentimento que se guarda e esconde, por assim dizer, em qualquer um de nós, mesmo entre os que a defendem com maior energia. Não se vê na detenção uma simples satisfação conveniente. Vemos compensação feroz de ver sofrer aquele que fez sofrer, quer-se o talião – mas somente por pudor muda-se seu nome e aparência (2001, p. 123)

O que Lombroso fala sobre a vingança é essencial. Sendo correta a hipótese de que ele não estava mal intencionado quando escreveu seu trabalho, e não se encontram dados em sua biografia que levem a essa conclusão, Lombroso confessou o verdadeiro motor do seu e de muitos outros posicionamentos atuais que não conseguem perceber o ser humano praticante de um delito como um ser humano que simplesmente errou, e não pode ser tratado como um animal enjaulado: o sentimento de vingança.

Passagem rápida de O homem delinquente, essa referência à vingança não significa que Lombroso fosse favorável a que a pena servisse como vingança. Ele traduziu um sentimento, atávico e superável na sua concepção, em uma sinceridade científica que permitiu que os sentimentos escondidos por detrás da pureza teórica ficassem aparentes.

Nesta concepção, o dia a dia do sistema penal, com prisões superlotadas, pessoas há mais de um ano sob prisão provisória, funcionários, advogados, promotores e juízes incessíveis à exclusão e à seletividade que é o sistema, tudo é mantido pelo mesmo sentimento. Um sentimento que quando é encontrado no criminoso é transformado em agravante da pena, bem aos moldes do que Lombroso queria, mas no profissional do direito deve ser velado. A ciência direito serve como subterfúgio para encobrir o exercício desse sentimento tão humano, mas que, diferentemente do que fez Lombroso, não tem feito parte de nenhuma reflexão.

Winnicott, falando mais de cinquenta anos depois, em 1967, explica o quanto as autoridades encobrem esse sentimento fazendo transparecer que a preocupação principal no ato de punir é com a segurança, deixando de revelar um “reservatório de vingança incosciente” (2005-b, p. 231), que não pode ser revelado e que se tornou bastante impopular, a ponto de ser proibido falar dele.

Muitos viram vantagens no frio utilitarismo de Bentham, o qual serviu para inumeráveis legislações, mas poucos perceberam a sua máquina de chicotear, que dizia muito de seus sentimentos inconfessáveis. Assim é nossa prática no judiciário, uma inconfessável máquina de injustiças.

E segue Lombroso em outra reflexão semelhante a essa:

Para finalizar, direi que a origem impura da justiça pode servir para nos explicar a desigualdade com que ela se distribui, de povos a povos, e, coisa pior, de classes a classes. Sabe-se que, enquanto o parquet em sua cadeira declama a justiça eterna, igual para todos, o pobre não obtém realmente justiça, senão por exceção e como que por caridade. O rico, ao contrário, dispõe de meios numerosos para escapar, ou ao menos para obter um castigo mais suave (2001, p.123)

Assim o professor de Verona termina um de seus capítulos, sem perceber que sua teoria poderia estar infectada pelo preconceito temido por ele próprio, mas expressando uma verdade inconteste, a de que a justiça é feita com ares de ciência e acaba encobrindo ou reforçando as desigualdades que deveria evitar.

Se for dos erros que tiramos grandes lições, o esquecido e enigmático Lombroso não deveria ser evitado. Além de nas reedições de sua obra constar referências aos seus opositores e a argumentos que combatiam a sua teoria, o contexto em que foi escrito O homem delinquente, de uma Itália unificada sem consenso, com o povo do sul insatisfeito, é questão a ser estudada. O descontentamento meridionale fez com que Lombroso, ciente ou não, fosse encontrar naquele povo as características do homem violento, tachando-o como criminoso, servindo sua teoria como um útil instrumento de controle político social.

A ciência destituída da visão de seu próprio momento histórico, econômico e social, acaba como instrumento político. Ruy Barbosa chegou “a apontar os compromissos políticos de Lombroso, mostrando que em todos os anarquistas italianos ele diagnosticava a ‘tara hereditária’” (RAUTER, 2003, p. 33). Todavia, esses compromissos tornam-se mais fortes na medida em que a inconsciência deles mesmos faz com que a ciência ganhe a aparência de neutralidade.