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Reformadores de leis: Beccaria e Bentham

2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.1.4 Primeiros reformadores

2.1.4.2 Reformadores de leis: Beccaria e Bentham

Diferentemente de Howard, as outras duas personalidades consideradas entre os primeiros reformadores, Beccaria e Bentham (BITENCOURT, 1993), tiveram uma preocupação mais abstrata com o sistema penal, não obstante o incontestável poder de influência que obtiveram. Por isso inclusive não haveria como resumir seus trabalhos de caráter filosófico em poucas linhas, razão pela qual mais uma vez o limite será o tema deste trabalho: saber se das mensagens desses pensadores iluministas pode ser tirado algo que justifique a ideia atual de ressocialização por intermédio da prisão.

Vale, contudo, a mesma observação feita com relação a Howard. Estes filósofos, embora de épocas diferentes, buscavam ainda superar o período macabro da Idade Média e toda a racionalidade e humanismo presentes nos seus textos se confundiam com certo medo e apelo à superação de tanta barbaridade. Howard e Beccaria, inclusive, chegaram até a ser acusados de certo sentimentalismo e exagero humanitário, por Ferri, no início do século XX (PIRES, 1998).

A obra de Cesare Bonessana, o Marquês de Beccaria, Dos delitos e das penas (1999), é o clássico do Direito Penal, foi publicada pela primeira vez anonimamente em 1764 e não

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Nas palavras de Howard: “the Legislature will be better acquainted with the real state of Goals; and Magistrates will be able to judge whether the Prisons over which they preside, and to which they commit offenders, be fit for the purposes they are designed to answer” (1777, p. 150).

traz qualquer referência à prisão como pena; cita a prisão anterior ao julgamento, masmorra onde a humanidade iluminista não penetrou, mansões de “desolação e fome” (BECCARIA, 1999, p. 98). Refere-se ao abuso que se fazia na prática de prender, da qual juízes criminosos se aproveitavam como forma de vingança contra inimigos pessoais, mas nunca à possibilidade de recolhimento com tempo e objetivos determinados. A prevenção em Beccaria, por sinal, é sempre a prevenção geral, servindo a pena estipulada na lei como forma de dissuasão, nada mais. Mesmo depois, na sua atividade de administrador, suas manifestações com relação à prisão foram primordialmente de cunho humanitário, bem distantes de qualquer característica reeducadora24.

A preocupação de Beccaria com o bem geral, com o cumprimento das leis, consideradas, em uma concepção contratualista, resultado do acordo comum de todos, levou ao reconhecimento do infrator como um culpado pela quebra desse contrato, portanto um culpado que merecia castigo, uma punição que deveria ser justa e rápida para evitar qualquer sentimento de impunidade, mas era de antemão merecida. O contrato era a garantia das liberdades que estavam sendo alcançadas e violar esse contrato era seguir na contramão dessas liberdades. A propriedade, não abrangida pela proteção do direito natural, precisava ser respeitada, e a construção desse respeito se deu por intermédio do contrato social.

Enquanto a filosofia iluminista, instrumento da emergente classe burguesa, era difundida nas artes, na política, nas ciências de um modo geral, o Direito Penal permanecia abandonado dessa racionalidade, um depósito das antigas práticas e, por isso mesmo, ameaça para a segurança dos que tinham novas propostas e queriam mudar o mundo. Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Beccaria e todos os outros, não se interessaram pela irracionalidade do sistema à toa, eles poderiam ser vítimas dessa irracionalidade, e muitos o foram.

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Como exemplo da preocupação humanista de Beccaria relacionada ao cárcere, em momento posterior à sua célebre obra, quando representante do poder estatal em Milão, encontramos uma resposta à consulta sobre a situação das correntes dos presos da Penitenciária de Pizzighettone, em 1791: “Igualmente com referência ao alongamento das correntes, concordou-se com a opinião do Régio Diretor, que sendo hoje a respectiva corrente de somente quatro braças, pode ser alongada em mais dez braças, com a ressalva, porém, de que o cadeado que atualmente se prende aos ditos condenados a fim de os prender ao muro, representando um enorme peso para os próprios condenados, possa, ao contrário, ser preso á grande argola fincada no muro próximo da terra, e não no alto, para que os condenados não tenham de suportar o peso do próprio cadeado, e possam passear mais comodamente” (2006, p. 55).

Sabemos, porque convivemos com elas, que várias irracionalidades sobreviveram à revolução burguesa e assim como assustavam na sociedade moderna que despontava, assustam hoje. Pena não assustarem os que agora não estão mais ameaçados ou, no dizer de Frank Süb, “agora só se considera delinquente potencial o ‘outro’” (2000, p. 243). Os descendentes dos revolucionários do Estado de Direito estão seguros.

É como se o contrato social os tivesse excluído de qualquer ameaça. Um contrato com cláusulas leoninas que vieram para proteger a propriedade, os proprietários e excluir os despossuídos. Ou, como fala Baratta, “um ‘pactum ad excludendum’, de um pacato entre a minoria dos iguais, que excluiu da cidadania todos os que são distintos: um pacto entre proprietários brancos, homens e adultos para excluir e dominar indivíduos pertecentes a outras etinias, mulheres, crianças e pobres” (1995, p. 124).

Falando de prisão e de Beccaria, não poderíamos deixar passar a oportunidade de citar textualmente uma advertência sua que, entre outras, vergonhosamente mantém a atualidade:

Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado, como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto possível, suavizar-lhe o rigor e a duração. Um cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo; e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar. O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime. O processo mesmo deve ser conduzido sem protelações. Que contraste hediondo entre a indolência de um juiz e a angústia de um acusado! De um lado, um magistrado insensível, que passa os dias no bem-estar e nos prazeres, e de outro um infeliz que definha, a chorar no fundo de uma masmorra abominável (2003, p. 58)25.

A quantidade de presos provisórios que amontoamos em nossas cadeias, maculando um Estado que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, falam por si, pelo que a citação acima prescinde de qualquer comentário. A história provou a importância do trabalho desse italiano, mas as gerações que vieram depois não podem atribuir a ele o valor que se dá à prisão hodiernamente.

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Foram usadas duas traduções neste trabalho. Tendo em vista a diferença entre elas, segue o texto original: “Il cárcere è dunque la semplice custodia di um cittadino, sinchè sia giudicato reo; e questa custodia essendo essenzialmente penosa, deve durare il minor tempo possibile, e deve esser meno dura che si possa. Il minor tempo è dalla necessaria durazione del processo, e dalla anzianità di chi prima ha un diritto di esser giudicato. L’angustia del carcere non può essere che la necessaria, o per impedire la fuga, o per non occultare le prove dei delitti. Il processo medesimo deve esser finito nel più breve tempo possibile. Qual più crudele contrasto, che l’indoleza di un giudice, e le angosce di un reo? i comodi e i piaceri di un insensibile magistrato de una parte, e dall’altra le lagrime e lo squallore di um prigioniero?” (BECCARIA, 1786, p. 81-82).

Álvaro Pires, citando Braive, afirma que, enquanto Beccaria nunca foi um puro utilitarista, Bentham é o protótipo (1998). Jeremy Bentham nasceu em Londres no ano de 1748 e morreu em 1832, era, portanto, dez anos mais novo que Beccaria e morreu trinta e oito anos depois, em 1832 (BITENCOURT, 1993), e com uma obra mais extensa que a de Beccaria, fez realmente jus à classificação de utilitarista.

Para o Direito Penal e Penitenciário, sua elaboração mais famosa é a do Panóptico, um projeto de casa de detenção que serviria para uma vigilância diuturna dos presos. Seria circular, as celas ocupariam a circunferência e haveria um vigia no centro que poderia fiscalizar os presos sem ser visto. Tal construção serviria para “punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos” (BENTHAM, 2000, p. 16).

A ideia de Bentham sobre esse mecanismo disciplinar, descoberto por Foucault em Vigiar e Punir (1998), foi a deixa para o francês criar o simbolismo que ele denominou de sociedade disciplinar ou sociedade panóptica, na qual surgiram os diversos exames classificando doentes, loucos, criminosos, estudantes, militares etc. Foucault chega mesmo, em outra ocasião, com sua ironia costumeira, a pedir desculpas aos historiadores da filosofia por acreditar “que Bentham seja mais importante para nossa sociedade do que Kant, Hegel etc. Ele deveria ser homenageado em cada uma de nossas sociedades” (FOUCAULT, 2009, p. 86). A importância filosófica de Bentham, no entendimento de Foucault, está no fato de que o projeto panóptico serviu para que entendêssemos o quanto nossa liberdade continua limitada, controlada por mecanismos disciplinares invisíveis que nos classificam, permitindo a exclusão ou inclusão. Tudo isso independentemente da atividade direta do Estado.

Mas, procurando não fugir do tema que nos interessa, o Panóptico acabou também sendo reconhecido como a principal contribuição de Bentham para a criminologia (HAGAN, 2011). Para Manheim, Bentham é um dos pioneiros da criminologia e na maioria dos livros ingleses de criminologia Bentham é indicado como um dos reformadores da legislação criminal, o mesmo para os historiadores, que ressaltam a sua influência em diversas legislações posteriores ao seu trabalho (GREENBERG, 1984).

Contudo, a preocupação de Bentham para com as prisões e os encarcerados estava incluída nos seus cálculos utilitaristas. Na Inglaterra diminuía a aplicação da pena de morte, restringia-se a deportação e os cárceres iam ficando cada vez mais lotados (PERROT, 2000), portanto seriam necessárias medidas, não por questão de humanidade, mas por cálculo mesmo, para que a situação não se agravasse.

O excesso de utilitarismo de Bentham fazia com que o valor do indivíduo fosse menor do que o valor que ele atribuía aos interesses sociais. As suas orientações de reformas para a legislação seguiam no sentido de se alcançar a maior vantagem para o maior número de pessoas e, assim, a sua concepção do criminoso era a de que este cometia delitos porque a vantagem que via no ato criminoso era maior do que o receio da punição. O corolário disso era que, para Bentham, a punição deveria ser rigorosa o suficiente para afastar o interesse do prazer que o criminoso via no crime (VITO, 2006).

Conquanto em alguns pontos os cálculos de Bentham possam ter levado a consequências tidas como humanistas, ser humanitário não era o seu intento, mas sim ser objetivamente utilitarista. Quando Bentham defendeu a correção moral, o fez por intermédio de penas duras e severas, o mal pelo mal na medida do que ele entendia por necessário. Por isso a prisão, em alguns casos, deveria ter isolamento, ser escura e impor ao preso uma dieta mais rigorosa no fim da pena, para que a sensação de sofrimento permanecesse (BENTHAM, 2002).

A prevenção geral, a punição para intimidação e a correção pelo mal foram a base das ideias de Bentham. O próprio Panóptico tinha a disciplina como elemento essencial não para disciplinar puramente, mas para causar dor e arrependimento. O mesmo sentido de correção que se viu em toda a história, permanecia em Bentham.

Se o simbolismo do Panóptico fez com que criminologistas entendessem que aquilo era um avanço na direção da recuperação do preso, fizeram uma mais uma interpretação arbitrária para fundamentar seus próprios interesses. Contudo, Bentham era prolixo em simbolismos e se palavras não podem contra um símbolo, podemos buscar outros que demonstrem o despautério de sua concepção de punição justa.

Ao falar das penas aflitivas, Bentham se demonstra incomodado porque os açoites ficam a critério do executor, que os pode maneirar ou agravar conforme seu interesse pessoal ou financeiro, destruindo a intenção do juiz e favorecendo os que mantiveram os objetos furtados em detrimento dos que devolveram o resultado do crime, porque aqueles podem pagar uma seção de açoites menos severa. Se perguntando se seria possível emendar este abuso, Bentham propõe um invento tão criativo quanto o Panóptico:

Não acho dificuldade na invenção de uma máquina cilíndrica, que pusesse em movimento corpos elásticos, como juncos, ou barbas de baleia, que fustigassem com a mesma força, e dessem tantos golpes, quantos determinassem o juiz da sentença: por este modo já a execução do castigo não vinha a ser arbitrária. Um oficial público, que tivesse caráter, estaria presente; e no caso de o réu ter mais companheiros no crime, podia haver outras tantas máquinas que fizessem o mesmo: um semelhante espetáculo, representado ao mesmo tempo, causaria um terror mais considerável, sem acrescentar coisa nenhuma à pena real (BENTHAM, 2002, p. 64).

Portanto, retirar de Bentham fundamento para o que hoje se chama de ressocialização é atitude que carrega consigo extrema parcialidade. As concepções utilitaristas de Beccaria e principalmente as de Bentham podem igualmente ser consideradas a base de algumas ideias humanitárias modernas, como podem ser tidas como a base das ideias antropológicas e estigmatizantes da criminologia positivista, a respeito da qual falaremos em seguida. A escolha foi feita arbitrariamente e a ciência se construiu omitindo várias circunstâncias, criando e mistificando heróis onde só havia seres humanos com seus defeitos e enganos. Até aqui é inexistente qualquer fundamento científico para uma pena de prisão ressocializadora. As ideias foram para reformar prisões e leis, não seres humanos.