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2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.1.5 Escola positivista

2.1.5.2 Sociologia criminal: Enrico Ferri

Enrico Ferri, genro de Lombroso, é considerado “sucessor e continuador do pensamento de seu sogro” e “foi um dos mais importantes pensadores do seu tempo”

(SHECAIRA, p. 104). Apesar de inspirado no médico italiano, Ferri era sociólogo e seu trabalho na criminologia seguiu no sentido de buscar fatores e causas do crime no ambiente e também na história individual do criminoso. No campo do Direito Penal trabalhou em inúmeras reformas legislativas.

O ambiente favoreceria a prática criminosa, mas sempre somado a fatores antropológicos e físicos. Dependendo da situação um ou outro seria preponderante, mas sempre estariam em conjunto conduzindo ao crime. Para Ferri, como uma doença é sempre causada por condições orgânicas somadas a fatores do ambiente, como frio, calor, sol ou vento, o crime também era um fenômeno derivado de diversos fatores30.

O conceito de reeducação social estava fortemente presente em Ferri, em razão de sua concepção de que a função do Direito Penal era a de defesa social. Portanto uma reeducação para combater o crime e não uma medida em prol do condenado. Quando observamos os assuntos tratados por ele na sua última obra, de 1928, percebemos a intensidade de sua influência no pensamento penal atual, pois ele aborda questões como individualização da pena, a interdisciplinaridade da equipe individualizadora, verificação de periculosidade e cessação desta e a classificação e separação de presos (1999), isso para ficar só nas questões relacionadas à pena.

Criou várias classificações para os criminosos e defendia que a pena fosse aplicada com base nessas diferenciações, ou seja, com base no grau do que ele considerava a periculosidade de cada um. Embora o seu projeto para o Código Penal italiano de 1921 não tenha sido levado à frente, em razão do regime fascista que se instalou na Itália, algumas de suas propostas foram adotadas pelo legislador de 1930, entre elas o sistema do duplo binário

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Enrico Ferri esteve no Brasil, e ao retornar à Itália, teria se posicionado relativizando o seu pensamento a respeito da influência do ambiente na prática do crime em discurso pronunciado na Câmara dos deputados, em Roma, em 22 de junho de 1909: “Tive que modificar também, um pouco, meus conceitos científicos a respeito dos caracteres étnicos dos italianos, vendo-os trabalhar naquele ambiente. Na civilização contemporânea as duas grandes raças, latina e anglo-saxônica, com suas derivações alemã, norte-americana e australiana, possuem estes caracteres fundamentalmente diferentes: nos latinos predomina o intelecto e a fantasia, enquanto nos anlgo- saxões predomina a energia da vontade. Mas no Brasil eu vi os italianos acrescentar à admirável potência de seu talento natural uma força de vontade metódica, que não constitui a expressão de um caráter de raça imutável e fatal, mas apresenta em grande parte o fruto do ambiente em que esta nobre raça latina se encontra, desenvolvendo sua luta para uma existência melhor em condições diferentes das que correspondem à sua civilização histórica” (CENNI, 2003, p. 223).

que permitia a aplicação da pena em conjunto com a medida de segurança (CIAPPI; COLUCCIA, 1997).

Com efeito, pode-se encontrar algum indício, enfim, no início do século passado, das raízes de um projeto que se entende por ressocializador, como atualmente se concebe esta palavra. Não obstante, é importante lembrar que Ferri entendia por indispensável uma estrutura técnica eficiente para tanto. Ele entendia impossível o seu projeto reabilitativo mediante uma justiça burocratizada, e defendia a especialização de juízes, funcionários, da polícia judiciária, dos advogados, ou seja, de todos os atores do processo penal. Portanto, somando-se ao fato que Ferri falava como reformador de legislação, o seu projeto e seus textos nada mais eram do que um esquema traçado mentalmente para o sistema penal: um verdadeiro projeto.

Ferri não colocou na balança a realidade do sistema prisional, pensou em reformá-lo somente. Buscando combater a concepção da Escola Clássica que tinha como parâmetro o crime e o princípio da legalidade, tentou incluir o conceito de periculosidade do criminoso, com evidente influência de Lombroso, na dogmática penal. Em outras palavras, Ferri almejava substituir o Direito Penal do fato pelo Direito Penal do autor. Por isso, para ele era indiferente se o fato crime preenchia ou não todas as circunstâncias para ser considerado um ilícito penal, bastava que diante das circunstâncias a pessoa demonstrasse que era perigosa para merecer punição. Para Ferri o crime impossível, por exemplo, não era um fato com ausência de elemento típico, mas um indício de periculosidade que indicava a necessidade de reprimenda (1999).

A denominação de Escola Clássica, para englobar todos os pensadores iluministas que elaboravam e estabeleciam garantias civis, foi uma criação de Ferri. O que ele pretendeu, nos termos da crítica áspera de Zaffaroni e Batista, foi, comodamente, “impor um rótulo comum a todos os penalistas que não compartilhavam seus pontos de vista. Essa invenção não passou de uma atitude autoritária de quem considerava ser o único dono da verdade” (2006, p. 576) (itálico no original).

Embora pudesse parecer que Ferri tentava superar uma concepção abstrata do crime para trazer à consideração a figura do criminoso, o que ele fez, na verdade, foi incluir a figura

do criminoso como ente abstrato no Direito Penal. Um ente construído por ele, com suas classificações arbitrariamente estabelecidas, merecedor de uma correção imposta em nome da defesa social.

O sociólogo italiano acreditava na reforma da realidade social por intermédio da legislação, não só corrigindo o infrator, mas modificando todo ambiente da sociedade que propicia a ocorrência do que ele denominava como praga, o crime (FERRI, 2007), sendo evidente, mais uma vez, a influência do período histórico que favorecia a crença em uma ciência todo poderosa superior às subjetividades e individualidades do ser humano.

Quanto ao réu, a ideia de lei perfeita era tanta que Ferri confundiu comportamento com personalidade, “uma especulação a nível individual entre o que se faz e o que se é”31 (CIAPPI; COLUCCIA, 1997, p. 65), como se o comportamento previsto pela lei fosse suficiente para estabelecer a personalidade desviada que mereceria punição e reforma.

A punição seria de uma extrema gravidade – porque Ferri era a favor da pena indeterminada – alcançando o seu fim somente quando comprovada a cessação de periculosidade. Porque se o crime era comprovação de um mal biológico, o criminoso só poderia ser solto quando comprovada a sua adaptação ao meio social. Posicionamento que, como os outros, colocava sempre o Estado em primeiro lugar.

Ele acreditava que a jurisdicionalização da execução penal poderia trazer critérios justos para a cessação de periculosidade e concessão do livramento condicional, e que a participação do juiz evitaria decisões injustas por parte do diretor do estabelecimento carcerário, tudo sempre acompanhado por médicos que atestariam o fim do estado periculoso do preso:

“É fácil ver, pelo contrário, que na organização penitenciária como, por exemplo o nosso Projeto de C.P. estabeleceu nas suas linhas sumárias, não existirá o ‘arbítrio’ do diretor. Em cada cárcere, deve existir um Conselho de vigilância, composto pelo Diretor, pelo Médico antropólogo-criminalista, pelo Professor, pelo Capelão, por um mestre de obras e também por um condenado (da classe dos ótimos) (...) Fica, portanto, excluída a possibilidade de injustiça ou de favoritismo e são, pelo contrário, garantidos assim tanto o direito individual do condenado como o da sociedade, que não receberá, como até agora, todos os dias a volta de elementos inadaptados e mesmo irredutíveis a uma vida normal (FERRI, 1999, p. 350) (Grifo no original).

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No texto original: “una speculare riflessione a livello individuale tra ciò che se fa e ciò che si è” (CIAPPI; COLUCCIA, 1997, p. 65).

Como se vê, uma estrutura muito semelhante à atual Lei de Execução Penal brasileira, o que além de demonstrar o pioneirismo de Ferri, e sua influência quase cem anos depois, comprova que a sua teoria não era baseada em dados empíricos, mas simplesmente uma estrutura legislativa que pensava ele poder alterar a situação do sistema carcerário e do sistema penal como um todo.

A incompatibilidade do pensamento de Ferri com o mundo atual é óbvia. Sua teoria dependia de um Estado forte, com mão de ferro, pois baseada na soberania absoluta de um ente estatal materialmente considerado, o qual seria a vítima dos crimes e poderia intervir na vida dos cidadãos livres, presos, condenados ou não, para fazer valer sua função de defesa social, ou seja, de defesa dele mesmo. Ou pior, o criminoso, seria um verdadeiro inimigo do Estado, e nessa condição permaneceria enquanto o Estado não o declarasse em paz. Portanto, em um Estado Democrático de Direito, não há como sustentar tal procedimento, que exclui qualquer garantia do ser humano. Também não é difícil perceber que a visão de um Estado desse tipo, naquele momento histórico, foi a causa de tanto sofrimento e morte que todos conhecemos.

E a ideia que Ferri teve de reabilitação não passou de ideia, não só porque ele estava equivocado, ele mesmo não acreditava na recuperação projetada legislativamente, mas igualmente porque nunca houve condições para que pudesse por em prática sua especulação científica. Se o ressocializar presente nos discursos hoje em dia tem alguma coisa a ver com o essa reabilitação da escola positivista não pode ser a crença, já que tantos anos se passaram, mas só a ideia de um Estado arbitrário.