• Nenhum resultado encontrado

2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.3. O conteúdo da punição

Cria-se um enorme desconforto quando são destruídos os fins da pena, porque a ciência deve ser feita com objetivos bons e humanos, deve servir para fazer o bem, e sem esses fins a pena parece se transformar em algo ruim, restando tão somente aquele “reservatório de vingança” inconsciente de que fala Winnicott (2005-b, p. 230). Acontece que, com ou sem os fins da pena, a prisão continua desdenhando da teoria e suas consequências caminham no sentido oposto aos fins de sua sustentação teórica. Portanto ela, a pena de prisão, não parece se transformar em algo ruim, ela é algo ruim, e os fins da pena cada vez mais perdem credibilidade para esconder isso.

Quanto mais precária é a tese de fim da pena, mais o fim se aproxima dos verdadeiros efeitos da prisão. A vingança, que na tese de Lombroso era um sentimento atávico que poderia

85

Cumpre observar que o trabalho do autor citado se restringe à análise das situações dos EUA e da Grã- Bretanha.

ser superado com a evolução da humanidade, é o fim da pena que mais se assemelha à realidade. Sobra, na pena de prisão, o mal pelo mal.

Mas o sentimento de vingança tem mais um inconveniente, além desse de deixar à mostra uma característica atávica ou uma paixão infantil negativa, ou seja, revelar a grande injustiça em que se torna a prática punitiva. Primeiramente, se assumida a vingança como motor do sistema, seria necessário aceitar a presença de sentimentos na atividade Estatal e o homem, que se esconde por trás da ciência e da pseudo neutralidade estatal, seria revelado86.

Mas o maior problema é que, colocando a vingança na reflexão sobre o ato de punir, voltaríamos a estar limitados ao talião, quer dizer, o mal da pena não poderia ultrapassar o mal cometido. Nas teorias construídas durante toda a história, o Estado sempre apareceu como um limitador dessa violência, como um ator neutro que viria para interromper a violência entre as partes. E assim, como ente sem sentimentos, constituído somente da lógica científica, interromperia a prática da violência e, para tanto, para cessar a violência, deveria dar lições de racionalidade. A partir de então a crença no Estado e no contrato social cresceu tanto que a vítima, a única da qual não se poderia exigir ser isenta de paixões, sumiu da relação punitiva.

Por isso as consequências da pena de prisão são tão camufladas, porque elas não passam no mais elementar teste de talião. Assumir o sentimento de vingança é ter que fazer reflexão e ter que perceber até onde se pode ir, mas a pena de prisão ultrapassa todos os limites. Desnecessário aqui enumerar os males da pena de prisão, porque muitos já fizeram e dissertações em todos os campos são escritas aproveitando tamanha incoerência. Mortes, mutilações, torturas, fome, privações das mais variadas espécies, fazem o dia a dia da prisão. Apenas como contraste, basta pensar na história humanizadora do direito penal e se perguntar até que ponto uma marca de ferro em brasa era pior do que alguns anos de cárcere.

Foucault (1998) tinha razão quando advertia que a pena de prisão não humanizou o direito penal, mas veio como um alívio, uma forma de não ferir os olhos delicados do juiz e da

86

Stuart Banner, depois de explicar que o sentimento de vingança sempre está latente em todo o sistema legal, informa que desde o início do século XX, falar de retribuição é tido como acientífico: “but to speak up in favor of retribuition as a ground for punishment was, in the early twentieth century, to brand oneself unscientific” (2003, p. 212)

sociedade com tanto suplício. Varrem-se para debaixo do tapete o suplício e o sofrimento que o acompanha, os quais continuam, mas agora fora de nossas sensíveis vistas87.

Seria esconder o sentimento de vingança uma forma de contê-lo? Caso a reflexão científica assumisse esse sentimento, poderia estar abrindo a possibilidade de dar vazão a um sentimento sem controle? Perderíamos parâmetros e a punição descambaria para o absurdo? Independentemente do fato de que a punição já descambou para o absurdo, a reflexão sobre esse sentimento, aliás a reflexão sobre qualquer coisa, é sempre salutar.

Não se precisa de subterfúgios para limitar a barbárie. As leis estão aí, basta cumpri- las. Como bem explicitou Norberto Bobbio (1992), não é mais o caso de justificar direitos humanos, mas de efetivá-los. E não estamos efetivando justamente porque não se fazem reflexões sobre as causas psicológicas, sociais e econômicas de tanto descaso para com o outro.

Fazer reflexão é aproximar o pensamento da realidade, colocar o sentimento à mostra e poder aí sim limitá-lo. A vingança escondida só será contida quando se perceber o quanto ela já extrapolou o limite do razoável. E só uma reflexão adulta pode evitar que se continue tentando corrigir o outro pelo mal.

Shecaira lembra bem que Durkheim trouxe à consideração a vingança como fim da pena, porque a pena “consiste basicamente em uma reação passional, de intensidade graduada” (2008, p. 221). O sociólogo francês levava em consideração a proporcionalidade da pena para concluir que esta era uma retribuição, um talião moderno, porque para ele a vingança não é um sentimento ruim, mas um sentimento de defesa que não deve ser negado pela sociedade. Não havia problema na pena em si, mas tão somente no reconhecimento de sua natureza:

Entre a pena de hoje e a de outrora não há, portanto, um abismo; por conseguinte, não era necessário que a primeira se tornasse outra coisa que não ela mesma para se acomodar ao papel que desempenha em nossas sociedades civilizadas. Toda a diferença vem do fato de que ela produz seus efeitos com maior consciência do que faz. Ora, ainda que exerça uma certa influência sobre a realidade que ilumina, a

87

A constatação de Foucault de que os suplícios foram desaparecendo para não ferir a sensibilidade dos demais está também em Giles Playfair e Derrick Sington que perceberam que a pena existente na Inglaterra de “cozinhar vivos certos malfeitores” foi sendo abandonada pelo mesmo motivo: “Na realidade, esse castigo, a mais bárbara de todas as punições inglesas, foi abolido no começo do século XV, não porque deixasse de dissuadir (pode-se presumir que era extremamente dissuasivo), mas porque se sustentava que tinha influência degradante sobre os espectadores” (1969, p. 28).

consciência individual ou social não tem o poder de mudar sua natureza. A estrutura interna dos fenômenos permanece a mesma, sejam eles conscientes ou não. Portanto, podemos esperar que os elementos essenciais da pena sejam os mesmos de outrora (DURKHEIM, p. 59)

O funcionalismo de Durkheim não o deixou perceber que a pena, muito pelo contrário, não tem sido aplicada com maior consciência, contudo no seu texto há uma boa definição da essência da punição. Uma advertência, todavia, neste trabalho não se está defendendo que a vingança deva ser considerada finalidade da pena, mas somente que esta integre ao menos a reflexão de quem a aplica, porque no ato de punir, o juiz não é um instrumento mecânico e deve saber que está fazendo um mal. Não importa se esse mal se justifica ou não, é um ser humano aplicando um mal ao outro e se não houver reflexão, e este magistrado se sentir somente um mecanismo insensível da lei, a tendência é de que seja feito um mal maior, para ele e para o cidadão punido.

Como o sentimento de vingança, o mal é de difícil aceitação para o direito. A pseudo neutralidade da justiça e a impossibilidade de se compreender uma ciência que pratica o mal deixam muitos doutrinadores constrangidos em assumir essa característica, ainda que venha disfarçada de construção filosófica ou dogmática de finalidade da pena (PASCHOAL, 2003)88. É ainda Winnicott que explica o processo de aprendizado da criança, preservando o que sente ser bom e afastando o que sente ser mal (2005-a), isto é, aprende-se com a dor da experiência. Na lógica punitiva não é diferente, sentimos que podemos corrigir o outro pela dor ou pelo medo, e tal observação é uma constante em todas as estratégias punitivas pensadas ao longo da história.

Infantil, instintivo, passível de reflexão, também é afastar o outro quando este quebra uma regra de convívio. Piaget (1994) lembra que a primeira atitude de um grupo de crianças quando percebe a violação de uma regra por parte de uma delas é o afastamento, a exclusão permanente ou temporária daquela criança. A prisão e o mal que a acompanha, então, seriam só um instinto infantil se não tivessem inúmeras outras causas políticas e econômicas, mas a reflexão é sempre importante.

88

A autora lembra que, entretanto, não se deve confundir o fim da pena com o fim do direito penal, sendo o fim deste a proteção dos bens jurídicos de maior relevância para a sociedade.

Quando falamos, na introdução, em Direito como diálogo, reconhecemos tratar-se de mais uma meta: fazer do Direito uma atividade dialogal; porque o que tem sido até agora é arbítrio disfarçado de ciência. E só se diminuirá essa circunstância com a assunção da verdade: a punição não é algo bom para ninguém.

O outro conteúdo da punição depende da consideração do primeiro. Vimos que quando as sociedades começaram a se organizar e a expressar as suas regras, o primeiro intento da punição era impedir a prática de outros crimes. O exemplo que não deve ser seguido. O medo do mal. O mal infringido e o mal futuro causando medo em quem pudesse ser uma ameaça para o convívio social.

Contudo nem este efeito terá a norma jurídica que não expressa a verdade, que mente, porque assim ela não é comunicação e não havendo diálogo nem o mal se compreende, porque se torna um espectro, um fantasma que não serve de exemplo, não ensina nada, causa somente horror e desorientação.

Dizendo de outra forma, outro conteúdo da punição é a censura, todavia esta só tem sentido se for comunicada. Enfim, prejudicada a comunicação do mal que se pretende corretivo, nem preventivo nem repressivo ele será. A repressão e a prevenção, previstas como fim da pena no Código Penal Brasileiro (art. 59), ficam prejudicadas. Permanecem como um belo ornamento na legislação, como se o sistema estivesse sendo útil à comunidade, protegendo-a com uma repressão que seria a resposta justa para o fato criminoso.

Quanto à prevenção, fantasiosamente, serviria para fazer o bem, um bem para a sociedade, evitando-se outros crimes, e outro para o próprio criminoso que será recuperado. Portando, não há nada de ruim na pena e podemos continuar aplicando o direito penal e sua principal sanção com a consciência tranquila de estarmos fazendo ciência, laborando para o bem da humanidade.

A ironia é necessária para evidenciar a distância que há entre a ciência penal e a punição do sistema. Pode-se mesmo considerar que não há punição no sistema penal, mas tão somente o uso do conceito de punição que é inerente a cada um de nós. O sistema exclui, segrega e mata cotidianamente e seletivamente, mas usa a ideia de punição para fazer um vínculo com um sentimento que carregamos internamente e assim busca legitimidade.

Na justiça criminal, as atividades (e as experiências) formalmente denominadas castigos não são, pois assimiláveis aos eventos que, fora dela, são considerados como punição. Na prática, chamar tais atividades de punição significa criar uma legitimação infundada; em consequência não considero a justiça criminal como um sistema destinado a dispensar punições, mas sim um sistema que usa a linguagem da punição de modo a esconder os reais processos em curso e produzir consenso através de sua errônea apresentação, assimilando-os aos processos conhecidos e aceitos pelo público (HULSMAN, 2004, p. 36).

Se a punição como a concebemos e a sentimos está distante da realidade do sistema dito punitivo, nem a punição, que é sentimento, nem o sistema, construído sobre bases falsas, podem ser considerados científicos.

E o mais grave é sabermos da influência do sistema punitivo, a despeito de sua distância em termos de linguagem e de prática do meio social, no comportamento e concepção das pessoas, razão pela qual não deve ser irrelevante a preocupação em se constatar quanto o sistema punitivo usa e corrompe a própria ideia de punição inerente em cada um de nós.

Tudo parece racional só porque é oriundo das instituições que temos como naturais e não incluímos no nosso agir a possibilidade de estarmos em um padrão de conduta social irracional. Como ressalta Amartya Sen, “quando as razões para escolhas específicas são estabelecidas em nossa mente através da experiência e do hábito, é frequente escolhermos de forma suficientemente razoável sem nos preocuparmos com a racionalidade de cada decisão” (2011, p. 214).

Ocorre um círculo vicioso no qual o sistema é construído com base em sentimentos e se autossustenta com base nos mesmos sentimentos, mas disfarçado de regras e princípios que só reforçam tais sentimentos, fazendo com que constatações empíricas sejam meros detalhes dispensáveis.