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Os primeiros sistemas penitenciários

2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.1.6 Os primeiros sistemas penitenciários

Se é certo que o sistema penal ocidental, aí incluídas todas as ciências e métodos que formam o que se convencionou chamar sistema penitenciário, sofreu influência mais decisiva desses reformadores ingleses e italianos do que de qualquer outra fonte, fica fácil perceber que entre o início do que Ferri denominou de escola clássica e o início da escola positivista, transcorreram cem anos.

Não obstante ter sido um período de evolução das ideias iluministas, em que foram reforçadas garantias contra o arbítrio do Estado, desenvolvendo-se uma vasta doutrina sobre o crime e sua conceituação, a prática punitiva real, a prisão, continuou abandonada.

A construção dogmática se limitou às garantias da pessoa antes do julgamento. Diversos debates se travaram, teorias foram construídas e conceitos são discutidos até hoje sobre o crime e os limites da imputação por parte do Estado, mas a dogmática encerra após a condenação. Com o perdão de todos os autores que tentam construir uma base dogmática de garantias para o condenado, o debate jurídico científico na execução da pena ainda hoje é fraquíssimo, senão inexistente.

Voltaremos sobre esse assunto adiante. Importante agora, contudo, é a constatação de que apesar de não ter havido debate relevante sobre a prática punitiva, sobre a execução penal, durante muito tempo, as prisões continuaram funcionando. A prisão continuou ganhando espaço no arsenal punitivo do Estado. Por isso que este tópico trata das práticas punitivas nos Estados Unidos, vez que neste país, enquanto a Europa discutia a concepção de crime, algumas experiências com a prisão foram praticadas e serviram de exemplo e lição para o mundo todo. Há quem diga até “que a prisão é um invento norte-americano” (Norval Morris apud BITENCOURT, 1993, p. 59).

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Na monografia Di un critério positivo della penalitá, Garofalo defendeu que a pena deveria ser aplicada na medida da temibilidade do criminoso, nomenclatura que depois foi substituída por Ferri para periculosidade, justificando e citando Rocco, que “a temibilidade de um indivíduo é antes a conseqüência do que é a sua periculosidade” (FERRI, 1999, p. 271).

Alexis Tocqueville e Gustave de Beaumont, magistrados franceses, visitaram os Estados Unidos em 1831, portanto muito antes de a escola positivista pensar em usar o sistema penitenciário como forma de tratamento, para estudar e escrever sobre os costumes e instituições norte-americanas. O trabalho mais conhecido é a análise da forma de governo, publicada com o nome Democracy in America, mas, para o direito penal, ganhou bastante relevo o trabalho de avaliação do sistema penitenciário norte-americano que levou o título de On the Penitenciary Sistem of the United States, and Its Application in France; With an Appendix on Penal Colonies, and Also, Statistical Notes (ROTH, 2006) 34.

O que os viajantes encontraram foi um verdadeiro laboratório de sistemas penitenciários. Seja no que se refere à disciplina, trabalho, saúde, instrução ou arquitetura penitenciária, havia nos Estados Unidos vários experimentos que faziam dos presos verdadeiros objetos. Só como exemplo, em uma penitenciária os presos se alimentavam em conjunto no mesmo pavilhão, mas em total silêncio; em outra, os presos tinham que comer em silêncio e separados, cada um em sua cela; algumas impunham silêncio e isolamento somente de noite; em algumas outras os presos podiam se exercitar em uma área comum; contudo, outras diferentes permitiam que os presos se exercitassem somente sozinhos, em um local definido. Com relação ao trabalho, em alguns locais era permitido o trabalho em conjunto, desde que em silêncio absoluto, mas em outros somente havia trabalho no interior da cela de isolamento (WOLIN, 2001).

Mas, no geral, a impressão dos magistrados foi ótima. Diferentemente do que eles disseram sobre a democracia nos Estados Unidos, na obra acima referida, onde defenderam que os direitos dos indivíduos deveriam ser protegidos da vontade do Estado, com relação ao sistema penitenciário o rigor era necessário para proteger a maioria respeitadora das leis contra a minoria de criminosos que existem na socieade. A impressão foi tão boa que depois Tocqueville, em uma carta de 1836, narrou desta forma o conceito que ele tinha do que deveria ser uma ciência das prisões:

Isolar os prisioneiros, separá-los e mantê-los em celas solitárias durante a noite, submetê-los ao mais absoluto silêncio durante o dia, quando eles são forçados a

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Roth, citando Norman Johnston, informa que teria sido Beaumont quem escreveu a maior parte do livro (2006). Na capa da edição fac-símile da Universidade de Toronto, consta igualmente apenas Gustave de Beaumont como autor (2012).

estarem juntos; em uma palavra, proibir toda a comunicação entre espíritos e mentes, assim como entre corpos: isso é o que eu consideraria o primeiro princípio da ciência [das prisões]35 (Apud WOLIN, 2001, p. 385).

Os magistrados eram considerados humanistas36, mas tinham em mente as prisões abandonadas da Europa, por isso que o zelo e a disciplina rígida dos cárceres norte-americanos visitados tanto impressionaram. Aliás, o elogio ao sistema norte-americano poderia derivar da irritação, incredulidade e até saturação, relacionados ao sistema prisional francês. Contudo, Tocqueville e Beaumont se confundiram, porque a reforma moral dos presos não era o interesse principal daquele sistema, a preocupação maior era com a disciplina e o trabalho que os presos realizavam, era o que se conseguia para o momento, “os presos eram apenas excluídos por algum tempo do convívio social, somente isso”37 (PIERSON, 1996, p. 702).

Ou talvez não tenham se confundido, mas orientado suas descobertas para fundamentar a própria crença no ideal de reforma do ser humano, tanto que chegaram a fazer concessão ao uso do chicote, “necessário para estabelecer o silêncio na recém fundada prisão”38 (BEAUMONT, 2012, p. 45), utilizado, segundo suas palavras, raramente.

As prisões que mais chamaram a atenção dos viajantes estavam na Filadélfia e em Nova York. O que ficou sendo conhecido como sistema filadélfico ou pensilvânico tinha isolamento total durante vinte e quatro horas e foi aplicado pela primeira vez na prisão de Walnut Street Jail, construída em 1776. O idealizador do sistema, Benjamim Franklin, tinha importado algumas ideias de Howard e as somou a um rígido princípio religioso (AGUILERA, 1998).

Na prisão de Auburn, em Nova York, construída inicialmente para seguir o modelo da Filadélfia, criou-se o sistema auburniano, onde o isolamento era noturno e o trabalho diurno

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Tradução livre de: “Isolate the detainees in prison, separate them during the night by means of solitary cells, subject them to absolute silence during the day when they are forced to assemble; in a word, prohibit every communication between their bodies: that is what I would consider the first principle of the science [of prisons]” (WOLIN, 2001, p. 385).

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Sem esquecer a lembrança de José Damião Trindade, de que a concepção de direitos humanos sempre mudou no curso da história e foi objeto de certa vulgarização, a ponto de o próprio Hitler ironicamente ter se queixado no começo de sua carreira, quando preso pelo Tribunal Militar: “como podem os homens, primeiro, criam leis, pensam, depois que estas estão acima dos direitos humanos” (2002, p 13).

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“we put them away for a certain time, that’s all” (PIERSON, 1996, p. 702) 38

No original: “Stripes are not so frequent as is believed; necessary, as they are, to estabilish silence in a newly founded prison” (BEAUMONT, 2012, p. 45).

podia ser realizado em comum, mas em absoluto silêncio, em nome da emenda e reflexão (Idem, Ibidem).

Independente do sistema que se tire como modelo, não há dúvida de que todos nasceram de forma empírica, sem qualquer base científica. Assim, conquanto tenha sido necessário fazer referência ao relatório de Tocqueville e Beumont, os sistemas norte- americanos não comprovaram nenhuma eficiência a que se possa atribuir a crença no ideal ressocializador. Muito pelo contrário, logo, com o tempo, as sequelas desses sistemas foram surgindo e a sua verdadeira função, como dito acima, de exclusão, restou descoberta.

Mesmo na época, os sistemas não foram imunes a críticas. Von Hentig definiu o pensilvânico como uma tortura refinada que “desaparece aos olhos do mundo, mas continua sendo uma sevícia insuportável, embora ninguém toque no apenado. O repouso e a ordem são estados iniciais da desolação e da morte” (apud BITENCOURT, 1993, p. 63). Ferri qualificou o sistema celular norte-americano como aberração, pois não serviria para a emenda do condenado, debilita o seu senso moral e social e é ineficaz porque os presos podem encontrar vários meios para se comunicarem entre si, além do que é “demasiadamente caro para que possa se sustentar”39 (AGUILERA, 1998, p. 62).

Quando, na penitenciária de Auburn, fizeram uma experiência para adotar o sistema pensilvânico, antes da chegada de Tocqueville, recolheram alguns presos em isolamento completo, e a maioria apresentou rapidamente problemas psiquiátricos: um pulou do quarto andar, quando abriram a porta de sua cela, outro cortou as veias com um objeto pontiagudo, e um terceiro perdeu uma vista batendo com a cabeça na parede. Contudo, a própria disciplina de Auburn se foi deteriorando. Em 1910, o edifício já foi encontrado mal cuidado e escuro, não havia mais zelo com os uniformes dos presos, o apoio público às oficinas de trabalho não existia mais, denúncias de tortura ficaram conhecidas, enfim, o sistema disciplinar inicial tinha sido abandonado, apesar do discurso das autoridades não ter sido alterado (MCSHANE; WILLIAMS, 2005).

Mas não são os altos e baixos da administração penitenciária norte-americana que vêm ao caso, o fundamental é saber que a prática penitenciária dos Estados Unidos se constitui em

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uma experiência com seres humanos40. Digo melhor, a prática penitenciária mundial é uma experiência com seres humanos. O que depois passaram a chamar de penalogia, penology, tem nome de ciência, mas é um aglomerado de opiniões e testes com seres humanos.

É certo que uma ciência pode ser feita de experimentos, aliás, deve, mas normalmente esses experimentos precedem o objetivo final da prática científica. Outrossim, se o experimento não surtir efeito, deve-se desistir da prática. O teste é justamente para comprovar uma hipótese e passar à prática. Em outras palavras: com a prisão se fez o oposto, primeiro começaram a prender e prender cada vez mais, depois começaram a fazer testes do que se convencionou chamar reabilitação, ressocialização, ou seja lá mais o que for, para fazer da prisão uma prática cientificamente justificável. Seria isso a penalogia?

Sem querer adiantar raciocínio, mas a ocasião é propícia. Se foram feitas tantas experiências com seres humanos presos, – inclusive de torturas, bem se sabe – pode-se explicar que aquelas pessoas presas eram recém escravos, algumas mendigos sem qualquer status de cidadão, as mulheres nem mesmo tinham direito a voto, então facilmente submetidas à condição de objeto da administração pública. Todavia, hoje não se admite mais tanta experiência, tanto descaso para com o ser humano, todos são sujeitos de direito, miseráveis ou não, e, se o experimento científico não deu certo, é hora de abandoná-lo.

Note-se que a crítica aqui, em tudo que foi e que será dito – é preciso esclarecer – não é direcionada a esta ou àquela pessoa. Todos esses reformadores tiveram importantes participações na história do Direito e na história do ser humano em geral. As críticas que foram feitas, assim foram somente no sentido de fazer ver que todas essas ideias partiram de seres humanos passíveis de erros, que tinham suas paixões não expressadas por trás de tudo que escreveram, sejam esses sentimentos oriundos da classe social a que pertenciam, do momento histórico, sejam derivados da simples sentimentalidade humana. O que não pode é o Direito pretender ser uma ciência exata e fazer de todas essas ideias conclusões matemáticas ou mandamento dos deuses, para, sem discutir, continuar com sua prática prisional irracional.

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Interessante saber que em 1907, Gina Lombroso publicou uma nova edição da obra de seu pai citando várias prisões e reformatórios onde as teorias de Lombroso estavam sendo aplicadas, todos nos Estados Unidos. Trinta anos depois, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, o criminólogo Earnest Hooton, de Harvard, ainda usava os métodos de Lombroso para classificar os delinquentes (HERMAN, 1998). E na década de 40, vinte e sete dos quarenta e oito Estados norte-americanos adotavam medidas de castração de loucos ou delinquentes (SHECAIRA, 2008).

Voltando aos sistemas penitenciários, ou a outras experimentações, não foram só os Estados Unidos que progrediam neste sentido. Na Austrália, por volta de 1840, na colônia penal de Norfolk, faziam-se as primeiras tentativas do que pode ser a origem da remição, como adotada na legislação brasileira. Na Irlanda o preso podia ter o rigor da sua pena atenuado de acordo com o comportamento até obter livramento final sob vigilância. Foi o que depois se denominou, com suas diversas variantes no mundo todo, de sistema progressivo (MUAKAD, 1996).

A distância no tempo em que nos encontramos desses diversos sistemas faz parecer que o ideal de ressocializar movia todos os reformadores, quando a experiência ensina que o motor político é sempre mais forte e usa a teoria como justificativa para suas ações. Quanto ao sistema irlandês, nos livros de direito de hoje pouco se diz sobre a situação daquele país na época do estabelecimento do sistema progressivo, mas naquela época já se observava que a mecânica da progressividade no cumprimento da pena se deu mais em razão do “número insuficiente de penitenciárias” (ARENAL,1895-b, p. 59) do que pelo ideal de ressocializar alguém.

Na literatura espanhola prepondera a tendência a se considerar como precursor do sistema progressivo, o sistema adotado no presídio de San Agustín, em Valência, dirigido pelo Coronel Manuel Montesinos y Molina desde 1834 (AGUILERA, 1998; ARTIACH, 2006). Neste sistema havia três períodos, o primeiro denominado “de ferros”, o segundo “de trabalho em comum” e o terceiro “de liberdade intermediária”41 (AGUILERA, 1998, p. 85-86). Contudo, não é das especificidades de tais sistemas que pretendemos falar, mas da natureza empírica de seus idealizadores.

Por isso a referência ao presídio de Montesinos, porque o Coronel deixou para a posteridade um fato curioso que só reforça a imagem de experimento arbitrário em que se dava o encarceramento. Crítico dos demais sistemas penitenciários que surgiam no mundo, defendendo uma espécie de inclusão social pelo trabalho e pela disciplina, Montesinos resolveu fazer uma experiência para provar que o seu sistema era melhor que os demais. Então, criou um calabouço solitário e, surgindo sanções a serem aplicadas, “foi remetendo uma amostra de apenados, com a precaução de que fossem oriundos de um maior número de

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regiões distintas da Espanha, para poder comprovar os resultados. Naturalmente o experimento resultou em um fracasso, constatando sua inaplicabilidade”42 (ALBACETE, 1999, p. 133). Um dos últimos a servirem de cobaia foi um preso das Astúrias (norte da Espanha) que em poucos dias foi levado à beira do suicídio. Embora não se saiba em que condições foram feitos tais experimentos, sabe-se que Montesinos queria provar que o isolamento absoluto era impraticável nos países meridionais, em razão de diferenças culturais, da maior liberdade do povo, do clima e por diversas outras circunstâncias (Idem, Ibidem).

Finalizando, nos Estados Unidos, aquele que foi tido por Tocqueville como o ideal, o de Auburn, menos severo com certeza, em 1929 ruiu completamente. Em uma rebelião que ficou marcada na história, vários presos destruíram quase por completo a penitenciária. Jogando ácido no rosto de um oficial, os internos conseguiram acesso ao arsenal que ficava localizado no edifício e colocaram fogo em quase tudo. Quatro presos fugiram. Seis alas destruídas. Dois presos morreram e um ficou gravemente ferido. Dois oficiais foram baleados, outro foi queimado por ácido e mais dois feridos (MCHUGH, 2010), mas as experiências continuam.