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2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.1.7 Correcionalismo

2.1.7.2 Concepción Arenal

Na introdução deste trabalho falou-se da importância e atualidade do pensamento de Concepción Arenal (1820-1893), mas não no que se refere ao que foi classificado como correcionalista, muito embora esta mulher, que foi obrigada a enfrentar diversas dificuldades e preconceitos para estudar e escrever, nunca tenha se preocupado em participar desta ou daquela escola dogmática. Aliás, dificilmente uma mulher teria voz na Academia do século XIX e Concepción ultrapassou barreiras intransponíveis, frequentou a universidade vestida de homem, escreveu com pseudônimos ou com nomes de outras pessoas, até conseguir o respeito da Espanha que, após a sua morte, ergueu um monumento em sua homenagem, feito do ferro derretido dos grilhões, correntes e argolas que eram usados nas prisões espanholas, contra os quais Arenal tanto lutou, e cujo uso enfim foi abandonado63.

Concecpión encontrou na filantropia uma arma contra a desumanidade das prisões da Espanha de sua época, procurou “compensar com a caridade o que faltava de justiça na organização social”64 (MARTÍN, 1994, p. 81), porque, para ela, uma sociedade que via o sofrimento dos encarcerados e não fazia nada, antes de viabilizar qualquer moralização,

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Dorado Montero, por exemplo, foi denunciado por alunos seus de direito penal, em janeiro de 1897, junto ao bispado de Salamanca, por suas “doutrinas errôneas e contrárias à religião católica, expostas em dita cátedra” (RABATÉ, 1997, p. 206) e embora não tenha sido excomungado, como pretendiam seus acusadores, suas teses foram classificadas como heresia por decisão da igreja.

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Segundo consta, o monumento foi levantado no “paseo de Rosales de Madri” (VILLENA, 2007). 64

No original: “compensar con la caridad lo que falte de justicia en la organización social” (MARTÍN, 1994, p. 81).

depravava ainda mais o ser humano. Decepcionada com a política que tinha levado seu país a inúmeras guerras internas e externas, nas quais perdeu o pai e o marido, fez de sua ação junto aos cárceres, hospitais e asilos, um protesto sem violência e, quando falava de moralidade, falava mais de se moralizar as prisões do que os presos. Em Foucault há uma definição de que “a política é a guerra continuada por outros meios”65 (1999, p. 22), que se encaixa perfeitamente aos propósitos de Concepción.

O próprio Salillas reconheceu que “não há possibilidade de filiá-la em nenhuma escola, de acomodá-la a nenhum modelo e de encaixá-la em nenhum padrão que não seja o de seu modo de ser, personalíssimo”66 (1894, p. 11-12); com efeito, a sinceridade de sentimentos que a movia em seus escritos era tanta, que não é possível sequer resumir ou relacionar taxativamente as suas ideias e propostas. O que se pode antecipar é que Concepción Arenal não era uma correcionalista no sentido em que a história do direito penal a designou. Em certo momento difícil de precisar, o pensamento original e extremamente corajoso dessa escritora espanhola foi apropriado, retirado de contexto e taxado de correcionalista para compor uma ideologia que não era a dela, ou seja, a de reforçar a conduta encarcerizadora do Estado.

Em uma época em que Lombroso alcançava o auge de reconhecimento e fama com sua tese do homem delinquente, Concepción ousou discordar com um argumento que preserva a sua verdade. Como pode a ciência conhecer o homem delinquente, se ela sequer conhece o homem? “A pergunta: quem é o apenado? Equivale a esta outra: quem é o homem? Para respondê-la, que dificuldades! Quantas dúvidas, opiniões diversas ou contraditórias, e regras distintas!”67(ARENAL, 1895-a, p. 128).

O correcionalismo, para Concepción, era um argumento de reforma da prisão, porque seria “necessário, pois, que a pena não humilhe o apenado, porque desde o momento em que ele se torna objeto de desprezo, difícil será que não seja desprezível, e a lei que contribui para

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Na verdade Foucault inverte a proposição de Carl Von Clausewitz de que “a guerra não é mais a continuação da política por outros meios”, ela “não somente é um ato político, mas um verdadeiro instrumento da política” (apud FOUCAULT, 2002, p. 22).

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Tradução livre de: “no hay posibilidad de filiarla en ninguna escuela, de acomodarla á ningún molde y de encasillarla en ningún patrón que no sea de su modo de ser pesonalismo” (SALILLAS, 1894, p. 11-12). 67

Tradução livre de: “la pregunta ¿ Qué es el penado?, equivale á esta otra: ¿ Qué es el hombre? Para contestarla, ¡ qué dificultades ! ¡ Cuántas dudas, opiniones diversas ó contradictórias, y reglas distintas!” (ARENAL, 1895-a, p. 128) (Grifo no original).

lhe degradar é cúmplice de sua degradação, e se reincide, de sua reincidência”68 (Idem, Ibidem, p. 290). E, assim, correcionalismo, para a autora, significava pena educativa, prisão com o mínimo de condições para que o preso não saísse de lá piorado, pois como também foi observado, a evolução do comportamento nunca é neutra e, na prisão, a tendência era seguir o pior caminho.

O moralismo característico do século XIX, reforçado pela educação religiosa de Concepción, não impediu que esta ampliasse a sua própria visão de moralidade, no sentido de respeito à dignidade da pessoa: “o conhecimento do coração humano e a fria razão dizem, que a dignidade do homem é um poderoso elemento de moralidade, e contribui para desmoralizá- la o que a rebaixa”69 (Idem, Ibidem, p. 291).

Arenal via a prisão como instituição da justiça, o que se mostra difícil perceber ainda hoje, e a degradação daquela contribuiria sobremaneira para a degradação desta. A função correcional, que estava no próprio nome dos estabelecimentos prisionais70 e na legislação, deveria ser cumprida não tanto porque Concepción acreditasse na rígida disciplina, mas porque o descumprimento da lei significava a desmoralização da própria lei.

Aqui não há espaço para especificações, mas Concepción criticou todos os sistemas penitenciários em funcionamento na época em que escrevia. De uma forma ou de outra, qualquer um que examinasse tinha um defeito, uma falha, que ia de encontro com o seu sentimento de humanidade. Criticou a seletividade de encarceramento dos pobres, o tempo prolongado da prisão cautelar, o excessivo tempo de pena, combateu a prisão da mulher com

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“es necessario, pues, que la pena no humille al penado, porque desde el momento em que se vea objeto de desprecio, difícil es que no sea despreciable, y la ley que contribuye á degradarle es cómplice de su degradación, y si reincide, de su reincidencia” (Idem, Ibidem, p. 290). Já para Concepción, diante do que é o encarceramento, “a circunstância de reincidir deve ser atenuante para o que reincide e agravante para a sociedade”(Idem, Ibidem, p. 275-276). Nas palavras da autora: “la circunstancia de reincidir debe ser atenuante para el que reincide, y agravante para la sociedad, que comete el atentado moral de poner á un hombre, bajo influencias depravadas, y luego, la doble injusticia de pedirle cuenta, é el solo, del mal que ella tiene tanta parte” (Idem, Ibidem, p. 275- 276) (Grifo no original).

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No original: “el conocimiento del corazón humano y la fría razón dicem, que la dignidad del hombre es un poderoso elemento de moralidad, y que contribuye á desmoralizarle el que de cualquier modo le rebaja” (Idem, Ibidem, p. 291).

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Já no antigo regime, as prisões na Espanha eram meros apêndices dos quartéis e denominavam-se “presidios correcionales del Reino”, enquanto no início do século XIX aos poucos as prisões vão saindo da jurisdição militar e altera-se a denominação de presídio para “casa de corección de costumbres” (ALBACETE, 1999, p. 118). Por isso chega-se a denominar de “novo correcionalismo” (Idem, p. 129) o que nasce no século XIX, diante da antiga tradição militar.

filho menor, a ausência de pessoal qualificado nas prisões, seus baixos salários, a falta de escolas, a mistura de presos, a tortura institucionalizada; enfim, eram tantas as críticas de Concepción à prisão, que parece mesmo, que se a autora escrevesse hoje, depois de tantas reformas e remendos na instituição prisão, os quais não surtiram muito efeito, seria ela classificada de abolicionista e não de correcionalista.

Contrária ao isolamento absoluto, tão em voga naquele tempo, possuía um argumento que hoje, bem se sabe, serve para a prisão como um todo: “não se pode fazer próprio para a sociedade o homem, senão por intermédio da sociedade”71 (ARENAL, 1895-b, p. 79). E ainda porque haveria uma perda da dignidade nesse tipo de enclausuramento, uma vez que “viver para o homem é perceber variedade de sensações e comunicar”72 (Idem, Ibidem, p. 58).

Sempre revelando suas incertezas em tudo quanto se refere à chamada ciência penitenciária, diferentemente dos positivistas italianos e de seus conterrâneos correcionalistas, Concepción não foi a favor da pena indeterminada, ou seja, até a demonstração da correção do preso. Muito pelo contrário, censurou, no que se refere ao tempo de pena a “regularidade mecânica e a exatidão matemática” que falsamente encobre a atividade punitiva, onde há “profundos filósofos, legisladores e juízes afortunados, que caminham com tanta segurança por caminhos estreitos e rodeados de abismos”73 (Idem, Ibidem, p. 218).

“Oito, dez, vinte, trinta anos de prisão: diz o legislador. Pensou bem o que disse? Talvez não. Acaso aplica ao tempo de cativeiro a medida de seu tempo em liberdade, e calcula, por horas que goza, a duração das de quem sofre [...] porque não há equivalência possível entre a liberdade e o cativeiro”74 (Idem, Ibidem, p. 230-231). Quanto ao estado das prisões na Espanha: “Há anos a estudar o estado de nossas prisões, nos parecia que não era possível que piorassem, que qualquer variação havia de ser útil, qualquer mudança benéfica. Nos enganamos”75 (Idem, Ibidem, p. 370); observação que

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Livre tradução de: “no se puede hacer proprio para la sociedad el hombre, sino por medio de la sociedad” (Idem, Ibidem, p. 79) (Grifo no original).

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“vivir, para el hombre, es percibir variedad de sensaciones y comunicar” (Idem, Ibidem, p. 58) 73

“regularidadd mecânica y exactidud matemática”; “¡Profundos filósofos, legisladores y jueces afortunados, que caminan con tanta seguridad por sendas estrechas y rodeadas de abismos!” (Idem, Ibidem, p. 218).

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Tradução livre de: “Ocho, diez, veinte, treinta años de presídio: dice el legislador. ¿ Ha pensado bien en lo que dice? Tal vez no. Acaso aplica al tiempo del cautiverio la medida de su tiempo de liberdad y calcula, por las horas en que goza, la duración de las de quien sufre [...] porque no hay equivalencia posible entre la liberdad y el cautiverio” (Idem, Ibidem, p. 231)

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“Hace años, al estudiar el estado de nuestras prisiones, nos parecia que no era posible empeorarle, que cualquiera variación había de ser útil, cualquier cambio beneficioso. Nos enganábamos.” (Idem, Ibidem, p. 370)

faz no final de sua obra chamada Estudios Penitenciarios e que demonstra acentuado grau de decepção com o ideal reformador da prisão.

Quando se dá conta de que tudo isso foi escrito no século XIX, fascina a profundidade e coerência da visão da autora, que ainda defendeu a participação da sociedade no problema carcerário e a multidisciplinaridade entre as ciências, estas que às vezes se tornam obscurecidas com o obscurecimento de apenas uma ou se tornam iluminadas com o avanço de outra. Nas palavras cheias de romantismo de Concepción:

As ciências, como que formam parte de uma harmonia, se auxiliam mutuamente; contudo, nas sociais é mais direta e ativa esta influência mútua: os golpes repercutem nelas com mais presteza e intensidade, e não se pode iluminar nem obscurecer uma, sem que de pronto todas se cubram de sombra ou reflitam a luz76 (Idem, Ibidem, p. 350).

Mas Concepción não se resumiu à crítica estreita do sistema penitenciário e mesmo não adotando qualquer posicionamento partidário por esta ou aquela corrente política, não se furtou a realçar o egoísmo imperante em uma sociedade que tem a propriedade como valor primordial, dizendo que “ninguém poderá fazer que a propriedade seja honrada, quando não é honrado o homem”77 (ARENAL apud AZCÁRATE, 1894, p. 70). De forma mais direta e, a nosso ver, extremamente atual: “Na Espanha, é insignificante a quantidade do que é roubado por ladrões que estão no presídio, comparada com o que é roubado pelos que desfrutam em liberdade o fruto de suas rapinas, legais algumas vezes, ilegais outras”78 (ARENAL apud SALILLAS, 1894, p. 31-32).

Do pouco que se extraiu dos ensinamentos de Concepción Arenal bem se vê que dela não se pode tirar qualquer base para o ideal de ressocialização, a não ser no sentido de uma maior socialização para todos os integrantes da sociedade, nunca uma forma de legitimar o encarceramento como meio de reabilitar quem quer que seja para a vida em liberdade. Concepción estava certa ao ver dificuldade não só no capitalismo, pois independentemente de

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Tradução livre de: “Las ciencias, como que forman parte de una armonía, se auxilian mutuamente; pero em las socieales es más directa e activa esta influencia mutua: los golpes repercuten en ellas con más presteza é intensidad, y no se puede iluminar ni oscurecer una, sin que muy pronto todas se cubran de sombra ó reflejen la luz” (Idem, Ibidem, p. 350).

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Tradução de: “nadie podrá hacer que la propriedad sea honrada, cuando no es honrado el hombre” (ARENAL apud AZCÁRATE, 1894, p. 70) (Grifo no original)

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“en España, es una cantidad insignificante la que roban los ladrones que están en presidio, comparada con lo robado por los que disfrutan en la liberdad el fruto de sus rapiñas, legales unas vezes, ilegales otras” (ARENAL apud SALILLAS, 1894, p. 31-32).

se a defesa era a favor do capitalismo ou do socialismo, como poderia algum sistema triunfar se o homem não tiver o mínimo de capacidade de se associar79.

Nada no correcionalismo foi baseado em situações empíricas de uma verdadeira correção do outro. Mas classificar Concepción Arenal simplesmente como correcionalista é criar um obstáculo à própria ciência, porque suas conclusões claras e objetivas muito poderiam contribuir para fazermos ver que nossa crítica é velha e antiquada, como é antiga e superada a instituição prisão. Já que pretendemos falar de diálogo neste trabalho, vem a calhar a observação de que a ciência não tem aberto espaço para o diálogo nem com ela mesma, com suas observações do passado, como se as conclusões tidas como científicas hoje não tivessem uma história de dúvida e titubeio, vacilações que seguem dissimuladas.