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Fins da pena e o ideal de ressocialização

2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.2 Fins da pena e o ideal de ressocialização

Na história da pena dois tipos de atores ficaram bem definidos. De um lado havia aqueles que escreviam sobre a pena e suas funções, preparavam legislações e ganhavam fama com teses e livros publicados. Do outro lado ficavam os atores que trabalhavam de fato com a pena de prisão. Estes, quando tinham recursos e espaço, conseguiam uma reforma aqui e outras ali no edifício, montavam um ou outro pavilhão de trabalho para os presos, mas quando não havia verba suficiente, como foi a maioria das vezes, gastavam o tempo com ajustes, alocando um ser humano lá outro cá para que pudessem dormir ou se esforçando para que a alimentação satisfizesse o máximo possível de pessoas.

Bem, estes últimos não tiveram muito tempo para escrever sobre a prisão. A prisão não permite muito tempo para se refletir sobre ela mesma, porque a prisão é o caos, aliás, o “‘caos’ é seu próprio sentido e sua própria ordem” (SÁ, 2009, p. 16), enquanto isso quem escrevia sobre as funções da pena o fazia, como se está fazendo agora, de um local bem distante da prisão.

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Dizia para o trabalhador quase de forma revolucionária que, diante da injustiça social, “o remédio de seus males não está no socialismo, mas sim na associação” (ARENAL apud AZCÁRATE, 1894, p. 71). Grifado no original: “el remédio de sus males no está en el socialismo, sino en la asociación”.

Ocorre que o caos não se justifica e por isso todas as funções da pena giram em torno da metafísica. São funções filosoficamente construídas para dar alguma aparência de racionalidade à prática jurídica que adota a pena de prisão como sanção fundamental na sua estrutura.

Assim, a prisão ganhou o nome pomposo de pena privativa de liberdade, como se fosse só a liberdade que se estivesse privando daquele condenado. Pior, como se fosse só daquele condenado que se estivesse privando algo. Mas, no momento, não vem ao caso continuar falando dos males da prisão. Diante de tanta diversidade, profissionais preocupados com a sobrevivência no caos e outros dissertando sobre os fins da pena, pouca coisa racional podia ou pode ser dita. Muitos falaram, mas pouco se disse.

Como bem lembra Hassemer (2007), só cresceu a necessidade de se fundamentar a pena em razão do nascimento da prisão. Antes, com o suplício, a morte ou a multa, a pena era aplicada de imediato, mas com a prisão havia o tempo de aplicação da pena, um período vago na vida do preso que precisava ser fundamentado.

Para este trabalho é necessário, com fins metodológicos, ainda que cansativo, repetir a conclusão a que chegou a dogmática sobre as funções da pena, antes de explicar no que acabou se convertendo o que se chama ressocialização atualmente.

Há um manuscrito de uma aula de Hegel intitulado manuscrito Homeyer, oriundo do curso de inverno dos anos de 1818-1819. São comentários orais do filósofo alemão sobre o seu próprio trabalho de Filosofia do Direito, anotados por um estudante de nome Homeyer. Pois bem, há uma passagem interessante nesse manuscrito, quando o professor falava dos fins da pena, que merece ser citada:

Este castigo já não consiste em pagar subjetivamente com a vingança: transforma-se numa reconciliação do direito consigo mesmo, como universal e como lei válida para o próprio criminoso e protegendo-o a ele tanto como aos outros: em pena. (A vingança é um direito em si, mas não numa forma de direito – estou fatigado – a vingança é por sua vez uma ofensa, e assim sucessivamente, até o infinito; a pena, essa, reconcilia) (HEGEL, 1979, p. 49) (Grifei).

Seria engraçada, se não fosse muito importante, a observação: falar sobre as funções da pena, fatiga. Não há como saber se o estou fatigado que consta no meio do manuscrito, entre travessões, se refere ao cansaço do aluno ou do professor, mas o certo é que falar sobre as

finalidades da pena, repetindo tudo que já se disse, cansa. Não só porque é repetição, mas porque se repete para convencer, para legitimar o que é totalmente dissociado da realidade. Por isso, podemos ser breves.

Além do simples fim de retribuição, o qual a doutrina abriga na chamada teoria absoluta, os demais fins propostos para a pena compõem a teoria relativa e estão divididos entre os que têm caráter geral, isto é, são direcionados à sociedade, e os que têm caráter especial, os quais visam ao autor do delito. O fim dado à pena por Hegel, expresso acima em rápida citação, tem caráter geral, pois, para ele, a pena é uma reafirmação do ordenamento jurídico, portanto serve para reforçar os valores que foram violados com o descumprimento da norma penal.

Mas também tem caráter geral o fim dado à pena por Beccaria e pelo extremado utilitarismo de Bentham, quando esperam da pena um poder de intimidação. A exemplaridade da punição faria com que outros na socieade não vissem vantagem em cometer crimes.

A força de intimidação exercida pela lei é o que a doutrina chama de prevenção geral negativa, e a aplicação da lei como reforço de valores é considerada prevenção geral positiva. Haveria uma função educativa na prevenção geral positiva, mas de caráter geral. (CAMARGO, 2002-b).

Para a prevenção especial têm-se também duas formulações. A primeira seria simplesmente pela segregação do delinquente, tolhendo-o da possibilidade material de cometer outros crimes, cumprindo “uma função imediata de segurança, praticamente garantida à sociedade pela ausência do elemento ameaçador (BRUNO, 1984, p. 49)80. A segunda seria a que é objeto deste trabalho, a ressocialização, que seria a reforma moral ou psicológica – aí dependendo daquilo em que reformador acreditar – do criminoso enquanto submetido às instituições punitivas do Estado.

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Para Zaffaroni, Nilo Batista, et al., “ao nível teórico, a idéia de uma sanção jurídica é incompatível com a criação de um mero obstáculo mecânico ou físico, porque este não motiva o comportamento, mas apenas o impede, o que fere o conceito de pessoa (art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art. 1º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), cuja autonomia ética lhe permite orientar-se conforme o sentido. Por isso, a mera neutralização física está fora do conceito de direito, pelo menos em nosso atual horizonte cultural” (2003, p. 128) (Grifo no original).

Esta é uma visão simplista dos fins da pena, mas suficiente para os objetivos deste trabalho. De uma forma melhor ou pior edificada, a história demonstrou que todos esses fins aparecem desde a antiguidade nas intenções de reis, legisladores ou reformadores. O nosso Código Penal é exemplo de que tais fins da pena não precisam estar separados, e dispõe que a pena tem como fim tanto de prevenção quanto de repressão (art. 59). Por isso é preferível ficar com Tobias Barreto (1990) e considerar relegados a metafísica os debates relacionados à finalidade da pena, baseados mais em conceitos políticos do que verdadeiramente jurídicos.

Como a história, em geral, para Cioran, com a pena acontece o mesmo, “há um pulular de fins tão divergentes e fantasiosos que a ideia de finalidade se anulou e se desvanece como irrisório artigo do espírito” (2011, p. 42).

Entretanto, tendo se tornado a ressocialização mais do que um fim para a pena, mais do que um ideal punitivo, superando inclusive qualquer concepção política de controle ou de força sobre o ser humano, e tendo se tornado um instrumento de várias funções, pois compõe discursos jurídicos da mais variada espécie, desde o punitivo até o abolicionista, é necessário continuar falando sobre isso.

A doutrina jurídica que melhor explica o ideal ressocializador é a da que se denomina Escola da Nova Defesa Social. Tal doutrina, se não é responsável pela construção do fim ressocializador da pena, sem dúvida a ela se pode atribuir a renovação de forças desse ideal.

Os expoentes dessa escola foram Filippo Gramatica e Marc Ancel. O primeiro criou, em 1945, em Gênova, um Centro de Estudos de Defesa Social, para inaugurar um movimento que resultou no reconhecimento da ONU, com o surgimento da Seção de Defesa Social, além da realização de diversos congressos e da criação da Sociedade Internacional de Defesa Social, em 1949, sob a presidência do mesmo Fellipo Gramatica (SILVA, 1991).

O nome Escola da Nova Defesa Social foi dado para fazer contraste com a Escola Positivista de Lombroso, Ferri e Garofalo, porque, como vimos, os italianos defendiam a aplicação da pena em nome da defesa social. O estudo do criminoso, a recuperação, eram necessários em benefício da sociedade, em defesa da qual não se mediria esforços.

A Nova Defesa Social também se opunha à defesa social de Adolph Prins, a qual, conquanto em 1910 já defendesse um uso mais racional da pena de prisão, objetivava “garantir, com medidas apropriadas, o patrimônio de segurança e de moralidade social cuja custódia nos está confiada”81 (PRINS, 2010, p. 51).

Felippo Gramatica era o mais radical dos dois precursores da nova defesa social, sua elaboração era a de um verdadeiro novo Estado de Defesa Social, um estado preventivo em que o máximo de sua eficiência levaria à abolição da pena privativa de liberdade. Em compensação, suas medidas de defesa social poderiam ser aplicadas independentemente do cometimento de crimes. Explicando melhor: nessa formação estatal haveria a previsão de condutas antissociais, às quais seriam aplicadas as medidas, educacionais, médicas, sociais, mas sempre com o intuito de trazer um benefício para o cidadão considerado antissocial.

Gramatica chegou à conclusão de que a Escola Positivista, procurando dar ênfase à pessoa do delinquente, acabou criando o estigma do delinquente, porque a partir de então a sociedade ficou dividida em delinquentes e não delinquentes. Partindo desta constatação, para substituir a figura do delinquente foi criada a figura do antissocial. E o que é preciso fazer com um ser antissocial? A resposta é evidente: socializá-lo.

Como a Escola Positivista pensava em reformar o homem que era diferente, doente ou com alguma patologia genética, esta que por vezes tirava qualquer esperança de reforma e levava os autores daquela escola a defenderem a pena de morte, a Nova Escola de Defesa Social não iria mais tentar a reforma, porque o ser antissocial não é um ser humano diferente só porque cometeu um fato contrário à lei, mas vai tentar corrigi-lo para o convívio social (GRAMATICA, 1974).

É um dever da sociedade, por ser a garantidora de um bom convívio entre os cidadãos, promover essa espécie de ressocialização do antissocial, principalmente com medidas preventivas. Assim, esse Estado de Defesa Social de Gramatica, antes de tudo, teria que acabar com todas as condições favorecedoras do que fosse considerado comportamento

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No original: “salvaguardar, com medidas apropriadas, el patrimonio de la seguridad y de la moralidad social cuya custodia nos está confiada” (PRINS, 2010, p. 51).

antissocial, como a pobreza, o aumento desenfreado da natalidade, a venda descontrolada de bebidas alcoólicas etc. (Idem, Ibidem).

Bem se vê o reforço que foi ganhando a ideia de (res)socialização, pois veio em oposição à concepção de tratamento exclusivamente médico, partindo de uma constatação coerente de que uma pessoa normal pode se tornar um delinquente. Contudo, o fim do direito penal e a adoção de um Direito de Defesa Social acarretariam a perda de algumas garantias históricas, pois condicionariam a concepção de antissociabilidade e o método de socialização a conceitos subjetivos, o que, além da ideia abolicionista, foi o principal motivo para que suas proposições não ganhassem apoio da maioria.

Sem embargo, o movimento cresceu e o entusiasmo de Gramática deu frutos. Marc Ancel viria para conter o exagero inicial, mas o direito penal ganhou novos ares, passou a aceitar conceitos que antes lhe eram estranhos, diminuía-se o tecnicismo jurídico e o reacionarismo nazifascista que imperava no Direito pós segunda guerra mundial. Nas palavras de Evandro Lins e Silva, a ciência penal “saía do litoral e voltava a encarar o horizonte. Olhava para frente e voltava a ser uma ciência arejada, sem teias de aranha a proibir-lhe o convívio com outras ciências, na sua origem e sobretudo na sua aplicação a seres humanos” (1991, p. 31)

À Marc Ancel se deve o acréscimo do adjetivo nova à corrente de defesa social que crescia, aliás quase que desordenadamente, com ideias de vários tipos, inclusive retrógradas no sentido de sugestões de esterilização de antissociais (GRAMATICA, 1974)82, mas a maior parte delas reconhecendo a desumanidade em que se tornou a atividade punitiva e buscando saídas para um direito penal mais científico.

Enquanto a concepção de Gramatica era mais de filosofia política, Marc Ancel buscava a mudança da estrutura do sistema penal, mantendo-o, mas abrindo espaços para considerações a respeito da personalidade do autor do delito. Tanto uma quanto outra concepção incorria no mesmo equívoco, sintoma da modernidade, de acreditar em uma

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Gramatica faz referência à proposta de Heuyer de que a esterilização de condenados é uma hipótese que não deve ser descartada, afirmando: “una mención que no debe infravalorarse: la «esterilización», de la que anteriormente hemos hablado” (1974, p. 323).

mudança social com base em reformas legais ou em reformas do sistema punitivo, erro que era a base da Escola Positivista.

O trabalho de Marc Ancel, que era um magistrado francês, teve uma repercussão enorme. Logo se viu traduzido para oito idiomas83. Ele não pretendia criar um dogma, mas um movimento no sentido de humanização do direito penal. Possibilitando o ingresso das outras disciplinas e o debate em torno da questão da delinquência, Marc Ancel nunca poderia imaginar que estava criando espaços para o que depois Michel Foucault chamou de invasão das disciplinas na prisão, uma luta por poder no terreno abandonado do campo penitenciário (1998).

O reforço à ideia de ressocialização foi um pretexto para possibilitar a entrada dessas ciências e para a consequente humanização do direito penal. O resultado não foi o esperado, mas era essa a intenção do precursor daquela corrente, sendo o que se depreende de suas próprias palavras:

O conceito de defesa social conduz, assim, a um verdadeiro humanismo judiciário que tende a transformar, afora qualquer rejeição do sistema de direito penal, e de forma resoluta, a administração da própria justiça penal. Torna-se possível, então, conceber a defesa social, menos como uma doutrina objetiva do que como um engajamento, em sua acepção mais moderna: engajamento que aqui significa a aceitação deliberada de uma certa orientação a ser imprimida à reação anticriminal e à justiça penal, dentro do respeito à dignidade humana, e com a preocupação de reconduzir ao convívio social aqueles a quem esta reação social atinja (ANCEL, 1979, p. 14-16)

Vê-se que o engajamento para um direito penal mais humano passava pela preocupação de reconduzir ao convívio social o autor do delito, pela necessidade de fortalecer o discurso ressocializador. Ao mesmo tempo, “essa ação de ressocialização não pode entretanto se desenvolver senão por intermédio de uma humanização” (Idem, p. 18). Para ressocializar, humanizar, e para humanizar, ressocializar.

A estratégia da nova defesa social se demonstra evidente. Como convencer todos a aceitarem um direito penal mais humano, logo o direito penal que lida com os odiados, os inimigos da sociedade? Nem os direitos civis defendidos desde Beccaria, nem as rígidas regras

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Salo de Carvalho fixa o período de maior influência do movimento da nova defesa social: “o movimento adquiriu, no final dos anos setenta, caráter transnacional, universalizando seus princípios e finalidades, e agindo no câmbio de grande parte dos ordenamentos jurídico-penais e penitenciários da década precedente como, por exemplo, a legislação penal e penitenciária nacional de 1984” (2008, p.72)

de tratamento do positivismo, nada fez com que meio social ou o poder público visse com simpatia qualquer iniciativa de humanização do sistema punitivo. Então, se não era possível abolir o sistema penal por completo, como queria Gramatica, o caminho foi criar um sistema que prometeria uma verdadeira defesa da sociedade por meio do direito penal, a ressocialização.

Aí se produziu uma nova teoria da ressocialização, explicitando que esta a partir de então só poderia se dar com o respeito ao ser humano, por intermédio de um direito penal humanizado. Em outras palavras, a ressocialização foi mesmo um subterfúgio para se alcançar essa humanização. A ressocialização foi um projeto de humanização do direito penal, mas não uma prática cientificamente comprovada.

E se o plano de humanizar o direito penal assumindo a pena de prisão como um dos instrumentos válidos já é contraditório, acrescentar a ressocialização como item humanizador da prisão é mais grave, porque acaba legitimando, reforçando mesmo, a pena de prisão como sanção coerente para o sistema.

O movimento da nova defesa social, tentando limitar o tecnicismo jurídico, trazendo considerações de outras ciências e possibilitando o estudo da personalidade do autor do fato, não conseguiu se ver livre do tecnicismo nem dos dogmas, até porque as outras ciências também têm os seus, mas acabou criando mais tecnicismo, mais dogma, no caso o da ressocialização.

Elías Neuman traz uma excelente visão do momento histórico da nova defesa social. O mundo pós segunda guerra mundial estava perplexo com o extermínio nazista de seres humanos, mas continuava mantendo os seus próprios campos de concentração. Por isso se fez necessária uma justificativa humanitária para o aprisionamento, a qual foi formalizada em Genebra, em 1955, por meio das Regras Mínimas para Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas e, “à ideia de segregação se agrega a de tratamento carcerário. O cárcere serve, dizia- se, para recuperar seres humanos, o que se deve realizar com todos os meios a disposição”84 (2001, p. 145).

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No original: “a la idea de segregación se agrega la del tratamiento carcelario. La cárcel sirve, se dice, para recuperar seres humanos, lo que debe realizarse com todos los medios de alcance” (2001, p. 145).

Se há indícios de que, a partir dos anos 70, houve um declínio do ideal de ressocialização, seja na Academia, seja principalmente nas ações de política criminal, como demonstra o trabalho de David Garland, atribuindo como consequência desse descrédito do modelo ressocializador uma “modificação nas regras de elaboração das sentenças, que olvida a participação em programas de tratamento pelo tempo de cumprimento de pena” (2008, p. 500), veremos, entretanto, neste trabalho (a partir do item 3.4), que no Brasil85 ocorre justamente o contrário, com decisões judiciais continuando a fundamentar um maior encarceramento com base no ideal ressocializador.

Descrédito total para com a racionalidade que deveria haver na ciência do direito, falta de debate democrático, uma vez que o início do questionamento ao ideal ressocializador, baseado em pesquisas empíricas, se deu em um período de total ausência de liberdade política no Brasil, o certo é que no período apresentado pelo autor acima como de descrédito do ideal de ressocialização (anos 70 e seguintes), no nosso país ocorreu o oposto, com o reforço do argumento ressocializador, embalado inclusive pela edição da própria Lei de Execução Penal, de 1984.