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2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.1.4 Primeiros reformadores

2.1.4.1 Reformador de prisões: John Howard

As prisões do século XVIII não eram como as que vemos hoje, embora no Brasil não seja muito difícil imaginá-las. Eram grandes casarões com administração doméstica, onde ficavam misturados desde testemunhas, detidas para posteriormente serem encaminhadas à corte, até devedores, pessoas aguardando julgamento, criminosos comuns e condenados à morte (BENDER, 1997), um verdadeiro depósito18. Presos que eram considerados inocentes, permaneciam detidos quando não tinham dinheiro para pagar as taxas devidas ao carcereiro.

A situação de abandono dos presos, ao mesmo tempo em que era causa de doenças e fome, era propícia à liberalidade. Jogos, apostas, bebidas, festas, fugas, tudo era possível ser encontrado ou comprado nessas prisões. Com isso, a maior parte desses primeiros reformadores não estava preocupada em trazer melhores condições para o encarcerado, mas sim incomodada com a grande libertinagem do local.

A maioria dessas situações, que se conhece das prisões do século XVIII, foi legada por um desses nomeados reformadores, John Howard, que de todos foi o que realmente esteve nos cárceres. Sua obra, na qual narra a situação das prisões da Inglaterra, evidentemente escrita

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O excelente trabalho de John Bender, Imagining the Penitentiary (1997), traz o exemplo e foto da York County Gaol, a primeira casa especificamente desenhada para ser uma prisão na Inglaterra, de 1705, a qual se assemelha aos antigos casarões ingleses.

para que as autoridades tivessem conhecimento do que ocorria nas prisões inglesas, tornou-se o livro The State of Prisions in England and Wales (1777).

Evitando repetir o já dito sobre Howard e respeitando o limite estabelecido pelo tema deste trabalho, ou seja, avaliar indícios, na história da pena, do interesse na correção do ser humano, que originou o termo conhecido por ressocialização, bem parece que Howard não teve muito tempo para tais lucubrações. Suas preocupações eram sinceras e derivadas das condições sub-humanas do cárcere inglês e, como verdadeiro filantrópico, seu tempo foi gasto primordialmente na atividade de apoio material aos encarcerados.

Quando, em sua obra, Howard fala do que é pernicioso para a moral, ele se refere à promiscuidade dos presos, à mistura entre homens e mulheres, entre sãos e enfermos e devedores e criminosos; portanto, o apelo do autor à moral não demonstra um profundo exame filosófico sobre as finalidades da pena. Ao invés, indica que a situação de calamidade era tanta que todos os argumentos deveriam ser usados para sensibilizar as autoridades, por isso não vejo como considerá-lo um correcionalista19, como fez Jimenez Asúa (BITENCOURT, 1993). Inclusive Howard chega a afirmar: “muitas vezes se diz que ‘a prisão não paga dívidas’, mas eu tenho certeza de também poder ser dito que a prisão não emenda a moral”20 (1777, p. 20). Certamente Howard gostaria de reparar era a miséria com que os presos eram tratados e não sua moral.

Embora em uma ou outra passagem de seu livro haja referência à questão moral que, além de ser uma súplica às autoridades, mais facilmente, inclusive ou sobretudo nos dias de hoje, sempre contraditoriamente propensas a dar mais valor a disciplina moral dos presos do que à situação desumana com que são tratados, não se pode esquecer que a prisão estava nascendo como pena, não tinha os seus trezentos anos de história de hoje, e quem supusesse que poderia ser uma sanção viável, cometia um erro perdoável.

O Direito Penal e o Direito Penitenciário deram ênfase às reivindicações de caráter legal de Howard, porque ele, avançado para o seu tempo, foi o primeiro a solicitar o fim das

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A teoria correcionalista seria aquela que defende que o objeto da pena é melhorar o sujeito que delinquiu, fazendo um bem tanto para o indivíduo como para a coletividade (HADDAD, 1999).

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No original: “It is often said, ‘A prison pays no debts;’ I am sure it may be added that a prison mends no moral” (HOWARD, 1777, p. 20).

taxas de carceragem, a necessidade de inspeções periódicas, a classificação de presos, entre diversos outros direitos que até hoje têm dificuldades de implementação, tendo sido considerado o precursor da ciência penitenciaria (MIOTTO, 1992), muito embora em sua obra haja observações de caráter criminológico raramente ressaltadas, como noções básicas de ser o cárcere criminógeno.

Howard conta que em muitas prisões nem o administrador entra na área onde estão os presos e que há locais em que os próprios detentos guardam as chaves das celas; narra a dificuldade dos presos que são liberados em conseguir emprego, apesar da existência de trabalho21; denuncia que prisões têm que ser adaptadas em razão das péssimas condições de manutenção do prédio, onde muitas vezes falta até água; informa que apesar de alguns presos serem obrigados a trabalhar, não há material nem ferramenta para tanto nas prisões. Assim, duzentos e trinta anos depois, qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.

Howard passou por uma experiência de privação de liberdade, preso por corsários franceses em 1756 quando fazia uma viagem a Portugal e confessa em sua obra que talvez o que ele “sofreu naquela ocasião, tenha influenciado na sua simpatia por essas infelizes pessoas, objeto deste livro”22 (1777).

Circunstância a respeito da qual não se pode ter dúvida, pois a experiência demonstra, com tantos anos dessa prática punitiva no Brasil, que as pessoas só podem verdadeiramente demonstrar preocupação com o cárcere quando o conhecem de perto. Um dos efeitos bem descoberto por Foucault sempre esteve presente: a prisão substituiu o suplício para diminuir o sofrimento da sociedade, dos juízes, promotores, mas não do condenado.

O que se deve concluir sobre Howard é ser um erro considerar sua obra uma ode à recuperação do preso. O que mais incomodava o autor era que se as leis eram feitas e os juízes prendiam, legisladores e magistrados deveriam saber a verdadeira situação das prisões, a qual

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Nas palavras de Howard: “the poor acquitted prisioner shall go from door to door asking for work, in vain (1777, p. 39).

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No original: “Perhaps what I suffered on this occasion, increased my sympathy with the unhappy people, whole case is the subject of this book” (p. 23). Todavia, logo que chegou de viagem, Howard passou a ter contato com as prisões em razão de ter sido nomeado sheriff do condado de Bedford, em 1773 (BROWN, 1823).

desvirtuava qualquer interesse de justiça23. Portanto, Howard não era um entusiasta da prisão, apenas desejou vissem que aquela prisão desumana só levava a consequências perversas.

Se ele era religioso e chegou a ver a religião como meio de reforma moral (MAYRINK, 1982), não foi por intermédio da prisão, em hipótese nenhuma. Ocorre que suas ideias de reforma da situação prisional foram usadas pelos que, depois dele, construíram a ciência penitenciária sob as bases do ideal reformador do ser humano, o que demonstra o caráter arbitrário sob o qual algumas ciências são construídas.

Em consequência de sua luta, quando se preparava para visitar o extremo oriente, Howard morre em 20.1.1790, em Kherson, Criméia, acometido da doença das prisões, uma espécie de tifo (MIOTTO, 1992).