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Funções da ressocialização: mito ou mercadoria

2. Breve histórico da punição e o sentimento ressocializador

2.4 Funções da ressocialização: mito ou mercadoria

Por ser mais uma ficção do que um fim para a pena, o termo ressocialização sempre terá um conceito ambíguo, difícil de captar e, principalmente de expressar. Quando imposto como uma obrigação legal do Estado e como um dever do cidadão que delinquiu, pior ainda, porque como termo vago pode ser preenchido por qualquer conceito.

Torna mais complexa a atividade de conceituar quando se percebe que não só há inúmeros sentidos para a mesma palavra89, mas que essa palavra se multiplica em um verdadeiro “leque de ideologias re: ressocialização, reeducação, reinserção, repersonalização, reindividualização, reincorporação”(ZAFFARONI; BATISTA; et al, 2006, p. 126) (Grifo no original).

E permanecer sem sentido faz parte de uma das funções da ressocialização, não só porque pode ser preenchida adequadamente de acordo com as intenções no exercício de poder, mas porque, como toda promessa, cria dependência e favorece o controle disciplinar (BOTELHO, 2005), e, neste sentido, quanto mais sem conteúdo for, mas abrangente pode ser, muito embora o tempo a torne precária.

São comuns as afirmativas de que “o mito da reeducação ou do tratamento já foi em grande parte desfeito pela realidade” (REALE JR, 2006, p.56), que “a reinserção social no seio da prisão é um mito e, como tal, serve como método de controle social para aplacar o mal estar da violência das ruas”90 (VIVANCOS, 2003, p. 9).

Contudo, o mito não serve somente para designar um aspecto negativo, como uma mentira, e assim esclarece Alvino Augusto de Sá, após fazer referência a Jung:

Por isto é que os mitos resistem ao tempo e chegam ao domínio da coletividade: é que eles são ricos de significado e as experiências profundas neles contidas são compartilhadas pela humanidade. Os mitos são símbolos e, enquanto tais, são capazes de transformar a energia pulsional. Eles são como telas, nas quais as energias pulsionais são projetadas, dinamizadas e transformadas. São reveladores de aspectos profundos da mente do homem, de sua história, de experiências profundas por que passou e à luz das quais interpreta a si mesmo, o universo e sua posição no universo. Os mitos são reveladores do inconsciente coletivo. Consequentemente, as verdades neles contidas costumam ser mais profundas e mais significativas que as verdades contidas nos fatos históricos. São verdades referentes à vida interior do homem, aos seus instintos, aspirações, temores e ao próprio inconsciente coletivo. São verdades dificilmente legíveis nos fatos históricos (2007, p. 26)

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Em Elias Neuman: “os termos ‘readaptação social do delinquente’ pertencem a uma linguagem enigmática e paradóxica. Existe um tácito assentimento quando são formulados e o mesmo ocorre com seus sinônimos: correção, emenda, reforma, adaptação, moralização, reabilitação, educação, reeducação, reinserção social e o galicismo ressocialização”. No original: “los términos ‘readaptación social del delincuente’ pertencen a un lenguaje sobreentendido, enigmático y paradójico. Existe un tácito asentimento cuando se los formula y lo mismo ocurre con sus presuntos sinônimos: corrección, enmienda, reforma, adaptación, moralización, rehabilitación, educación, reeducación, reinserción social e el galicismo ressocialización” (2001, p. 143-144).

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No orignial: “la reinserción social em el seno de la prisón es un mito social y, em tanto que mito, sirve como método de control social para aplacar al malestar de la violência callejera” (VIVANCOS, 2003, p. 9).

Uma das dificuldades de lidar com um trabalho que pretende ser interdisciplinar é deparar com conceitos e visões diferentes entre duas ciências. Mas, pelo que se percebe, as características positiva e negativa do mito da ressocialização podem coexistir, e aceitar isso pode ajudar a entender a força que tem o ideal de ressocialização no meio social.

O fato de o mito revelar verdades inconscientes não significa que ele próprio seja uma verdade, e aí talvez esteja a grande importância do mito: quanto mais cedo nos dermos conta conscientemente de sua inverdade, e do quanto somos influenciados por ele, mais perto podemos estar de nos vermos livres dele.

Para Jung, o mito explica as coisas de maneira “alegorizante” (2002, p. 28) e não da maneira causal como a lógica e a razão iluministas91 nos acostumaram, portanto não cabe aqui trazer uma definição para algo que é interpretação, quanto mais de natureza metafísica. Também não há como descartar a hipótese de o mito ser usado negativamente, como uma mentira, seja por uma pessoa e principalmente pelo poder, pois “é possível enganar usando a melhor das verdades; é possível enganar com tudo” (JUNG, 1981, p. 281).

Além do mais, achar um mito que se adéque ao ideal de ressocialização não é difícil, pois o que mais se tem na mitologia é a ideia da transformação do homem, seja em animal, em fogo, em anjo ou em demônio, transformações essas que normalmente veem acompanhadas da dor, assim como todas as diversas punições igualmente presentes nos mitos.

Jung mesmo usou o Gênese e o mito de Prometeu para explicar um sentimento de culpa. Nessa interpretação, o conhecimento do homem subordinaria o contexto natural à arbitrariedade de sua consciência, e o homem assim se transforma e difere dos demais e “o tormento dessa solidão é a vingança dos deuses: tal homem não poderá voltar ao convívio humano. Como diz o mito, é agrilhoado à solitária rocha do Cáucaso, abandonado por deuses e homens” (2008, p. 42). Do texto original de Prometeu Acorrentado, ele foi punido para aprender: “Ele roubou o fogo – seu atributo, preciso fator das criações dos gênios, para

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John-Raphael Staude explica que Jung mantinha distância da política e pretendia nos advertir “quanto ao nosso ‘atraso moral’, que não acompanhou nosso progresso tecnológico e social. Falando como seu profético avô, o deão da Catedral da Basiléia, Jung denunciou a ausência de normas e o oportunismo do homem moderno. Ele advertiu que o homem moderno vendera todo o seu direito de primogenitura, o seu mito de preservação de vidas mantido no Cristianismo Protestante e na tradição, pelo ouro dos joguetes da modernidade e da secularização” (1995, p. 17)

transmiti-los aos mortais! Terá, pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a potestade de Júpiter, e a renunciar a seu amor pela Humanidade” (ÉSQUILO, 1953, p. 7) (Grifo nosso).

Em Salo de Carvalho, a lembrança de que o mundo subterrâneo dos mortos foi herdado por Platão, filho de Saturno, a quem “cabia julgar e encaminhar os espectros ao Hades – reino formado por uma imensa planície subterrânea na qual os que cometeram grandes delitos na vida vagam e sofrem à espera da reencarnação” (2008, p. 286) 92.

Portanto, o mito pode e muitas vezes é ingrediente de uma construção ideológica ou mesmo componente de um estudo científico, visto que “não existe estudo sem uma determinação ideológica” (SÁ, 2011, p. 320). Tentando mais uma vez superar certa dessemelhança de conceitos entre ciências, podemos vislumbrar forte influência de mitos na construção ideológica: “A ideologia tem muita força, porque impulsionada por fantasias, instintos, desejos e mecanismos defensivos, no mais das vezes inconscientes, que demandam incessantemente alguma via de ‘solução’” (SÁ, Op. Cit., p. 319-320).

A referência no título do capítulo a mito e mercadoria conjuntamente é porque na nossa sociedade de consumo as mercadorias viram mitos e os mitos viram mercadorias. Eros Grau diz que há mitos modernos, cuja finalidade é a manutenção ou instauração de uma determinada ordem social, e são como “expressões exotéricas, a serem ‘consumidas’ pela sociedade. São impostos à sociedade, assim funcionando como instrumentos linguísticos de dominação que tanto mais prosperam quanto mais são acreditados” (2008, p. 177).

As relações capitalistas de produção carecem da alienação para se reproduzirem e assim seus produtos ganham mesmo a característica de mitos. “Fetichizando a mercadoria, a sociedade capitalista produz seus próprios mitos e, ao invés de santos nos altares e oferendas aos deuses, contempla artigos de luxo, de consumo cotidiano e até souvenirs” (SELBACH, 2006, p. 236). Por isso não é conveniente apenas relegar o mito à qualidade de uma mentira

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Em outro mito, em Alceste, de Eurípedes, das palavras do próprio Apolo: “Ó palácio de Admeto, onde me vi coagido a trabalhar como servo humilde, sendo embora deus, como sou! Júpiter assim o quis, porque tendo sido fulminado pelo raio um filho Esculápio, eu, justamente irritado, matei os Ciclopes, artífices do fogo celeste. E meu pai, para me punir, impôs-me a obrigação de servir a um homem, a um simples mortal!” (1953, p. 177).

dispensável, mas sim a uma mentira que possa dizer a verdade de uma sujeição a qual o ser humano está submetido.

A dificuldade de, no direito, percebermos essa sujeição vem de outra concepção diferente entre ramos de conhecimento, que reside na definição de sujeito. Para o direito, o sujeito é o sujeito de direitos, livre e independente, enquanto para a psicanálise o sujeito “é o produto do discurso do Outro” (SILVA, 2003, p. 7)93, ou seja, produto de uma sujeição.

Portanto, afirmar isto é um mito não pode ter o significado de isto é uma mentira, mas sim significar um alerta, o de que estamos acomodados, submetidos (sujeitados) a uma estagnação que precisamos superar. Mito grego ou moderno, não interessa, porque a ressocialização não teria tido força dogmática e política se não estivesse sempre presente como característica da punição, seja com o nome de correção seja na qualidade de educação pela dor.

E a ciência do direito, como manifestação de poder que é, tem sabido fazer uso dessa situação. Como as relações de produção, que não produzem mais somente objetos, mas necessidades, com o fim de se autossustentarem, a ciência, que já não se mantém por ela mesma, precisa criar produtos que são vendidos e consumidos igualmente de forma alienada. Assim é o termo ressocialização que, a despeito da grande mentira que a própria palavra transmite por si só, é usado constantemente nos meios científico e social, servindo tanto para fundamentar a prática judiciária quanto para vender à população a ideia de que a prisão tem alguma utilidade.

Desmascara a ciência a confrontação de seus argumentos com a realidade, mas, mais do que isso, mostra como a ciência produz verdades. E, no caso do direito, como este vem se sustentando durante séculos produzindo ou mantendo verdades aleatoriamente. Por isso a grande semelhança entre a produção de verdades no direito e a produção de objetos para consumo no sistema capitalista. Algo precisa ser vendido, algo precisa ser renovado, reificado constantemente.

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Cyro Marcos da Silva nos mostra outro conceito distinto, o de indivíduo, porque individualizar para o direito é especificar, considerar o indivíduo com suas características e peculiaridades, ou seja, no direito podemos conceber a totalidade desse indivíduo, enquanto para psicanálise indivíduo é in-divíduo (dividido dentro), impossível de ser concretizado, individualizado na concepção do direito (2003).

Como bem ressaltou Foucault, “temos que produzir a verdade como, afinal de contas, temos que produzir riquezas, e temos que produzir verdade para poder produzir riquezas” (1999, p. 29). Um paradoxo: o sistema penal, ao se utilizar de verdades ultrapassadas, de verdades que não se sustentam diante do mais singelo exame da realidade, deixa transparecer a sua dificuldade em criar novas verdades.

E assim, o que era desde o início uma verdade produzida, com o tempo e seu uso constante, vai se tornando um mito, um objeto de consumo em que tanto a necessidade quanto as consequências do seu uso são falsificadas, mas continuamos nos alimentando com isso. O mito, que já foi considerado “o passado da ciência e o oposto da ciência” (GARAUDY, 1966, p. 46), a qual se desenvolveria contra o mito, começa a se confundir com a ciência. Esta já não se atualiza, já não se baseia em hipóteses retificáveis, mas está estagnada no mito.

A ciência, que veio para nos proteger da violência arbitrária, vai se transformando em local de argumentos vazios impostos aleatoriamente que nada mais são do que violência. E o uso de uma mentira como argumento jurídico é violência cínica, quase física, pois violência é “a supressão do outro e da racionalidade, da integração e da solidariedade. A violência degenera a comunicação, cessa a reciprocidade, degrada a dignidade do outro” (BITTAR, 2009).

Mercadoria multifuncional que tem várias utilidades, a palavra ressocialização serve para dar um fundamento moral para a pena de prisão, serve para transferir a culpa da reincidência ao próprio preso, legitima o direito de punir, mantém viva uma sanção falida, serve para camuflar o verdadeiro intento de tão somente excluir.

Mesmo quando fica mais do que evidente que a ressocialização é uma prática inviável no cárcere, o próprio insucesso serve para indicar que a culpa não é do argumento pseudocientífico, mas de uma administração incompetente e ineficaz (RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004). Em outras palavras, a mentira se reifica no seu próprio desmascaramento. O Estado, no caso, não reconhece o exercício de poder falho, mas atribui a falha ao administrador da ocasião, protegendo o mito e se resguardando. Em 1844 Marx já dizia que a impotência estatal nunca será admitida e que a administração irá sempre

reconhecer os defeitos como “formais, casuais, da mesma e [irá] tentar remediá-los” (p. 61, 2010).

No Brasil, a situação é mais grave, porque há uma séria tendência em se atribuir a falha na ressocialização à ineficiência comum do serviço público brasileiro, como se somente as penitenciárias daqui deixassem de cumprir o fim que a lei determina. E, com relação a este ponto, foi salutar a bibliografia alienígena até agora indicada neste trabalho, porque em nenhuma delas, em nenhum país, há a informação de que a prisão cumpre o ideal ressocializador, mas, ao contrário, em todas se verificam os mesmos males de uma prisão criminógena, favorecendo o aumento da criminalidade, com drogas, mortes e as demais mazelas que bem conhecemos.

Nos EUA, onde segundo a nossa cultura provinciana tudo funciona melhor, dois terços dos presos que iniciam uma high school não conseguem terminar, 56% dos presos nas prisões estaduais, 45% nas prisões federais e 65% nas cadeias locais (Local Jail), apresentaram algum problema mental94, a classificação de presos tem sido feita mais levando em conta a questão da segurança do que qualquer outro critério, o que proporciona problema de privilégios e benefícios sendo vedados injustamente, inclusive a oferta de trabalho interno (CLEAR; COLE; REISIG, 2009). Notícias de abusos sexuais contra visitantes, familiares de presos também não são raros. Com relação ao sistema em geral, em estudo na década de 90, mostrou- se que um em cada três homens norte-americanos negros, já havia passado pelo encarceramento95 ou por alguma medida penal e mais de um latino, em dez também (DAVIS, 2003), indicando uma seletividade não tão diferente quanto a nossa96.

E a seletividade do sistema penal, constatada e reforçada pela seletividade das instituições carcerárias indica o oposto do que se pode pretender com o objetivo ressocializador, visto que este pressupõe, em seu inerente idealismo, uma quebra dessa mesma seletividade.

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Dados do Bureau of Justice Satistics, Special Report, September 2006 (CLEAR; COLE; REISIG, 2009). 95

O número entre as mulheres negras que teriam experimentado o sistema penal é de 78 % no mesmo estudo (DAVIS, 2003).

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Sobre o assunto, tornou-se célebre o trabalho de Robert Martinson, de 1974, que concluiu sobre o sistema correcional norte-americano no sentido de que nothing works. Todavia, este mesmo trabalho é usado muitas vezes em sentido reacionário, não para diminuir o encarceramento, mas para que as autoridades justifiquem cortes de gastos com programas que seriam realizados em benefício dos presos (WALTERS, 1992), um perigo a que toda a crítica contra a ressocialização deve ter em mente.

A prática judiciária, o discurso do dia a dia, as manifestações na imprensa, os manuais de direito, todos com referências à possibilidade de ressocialização no cárcere, constituem-se em um bombardeamento para o homem fragilizado, seja pela força do trabalho seja pela descrença na sua própria evolução como ser social.

Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são fetichizados, porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas. (ADORNO, 1995, p 132).

Veja-se que o mesmo efeito fetichizante que Marx atribui à mercadoria no mundo capitalista é conferido aos meios e à técnica por Adorno. É o que acontece com um argumento como a ressocialização, esteticamente belo, moralmente admissível e extremamente desejável. Com tantas características boas já não interessa se na realidade o produto está longe de alcançar qualquer dos seus objetivos prometidos. Segue-se como que hipnotizado pelos fins anunciados pelo produto, sem capacidade de perceber sua inutilidade ou mesmo os seus malefícios. O produto ressocialização, assim, tem fácil aceitação no mercado e exerce grande poder sobre todos os que buscam tranquilidade diante das inúmeras atrocidades do cárcere. É fácil creditar tudo à esperança de uma, mesmo que distante, ressocialização.

Os técnicos do direito também se veem fascinados com a possibilidade de fundamentar um nocivo encarceramento. O produto, para estes, traz a promessa de servir para camuflar o verdadeiro propósito de retribuição: um unguento milagroso que faz dos males da prisão algo acidental.

Diante de tantas qualidades, a mídia não tem grandes dificuldades em propagar um produto. Na tela da televisão, no rádio, na internet, tudo é possível; qualquer discurso tem o poder de realizar o irrealizável, fortalecendo o caráter de mito do produto. É uma força poderosa agindo em dois sentidos, reforçando mitos e tornando o homem incapaz de exercer crítica sobre o produto.

Como adverte Shecaira, fazendo referência à Ramonet, “a informação é antes de mais nada uma ‘mercancia’. Como toda mercadoria, está submetida às leis do mercado. Os valores

que a presidem são a oferta e a procura, e não as regras que alguns poderiam pensar se relacionassem com os critérios cívicos e éticos (2001, p. 355-356).

Nesse contexto, em pior situação está o encarcerado ao final da pena que, após conviver vários anos com tanta hipocrisia, precisa ser dotado de forças sobre-humanas para alcançar qualquer adaptação97. E no interior do cárcere, se porventura surgir alguma atividade saudável, esta terá sempre o obstáculo do discurso ressocializador, porque o ser humano encarcerado sente na pele o absurdo que é ouvir falar em tal ideal.

Quando ocorre que alguém sai do cárcere e não reincide, logo tal fato vem como exemplo de que a prisão pode ressocializar. Embora ninguém tenha contribuído para a recuperação daquele ser humano, todos o usam como exemplo e o mito se renova. Se o preso consegue superar todos os males da prisão e amenizar as consequências psicológicas, físicas e sociais do tempo de encarceramento, ninguém a não ser ele pode dizer das razões e das circunstâncias que lhe proporcionaram essa resistência. Como afirmou Jean-Marie Gayu, “só a vontade interior pode eficazmente corrigir a si mesma” (2007, p. 49), e no caso, quando assim sucede na prisão, é apesar da prisão98.

No mesmo sentido, Janaína Paschoal aponta lição oriunda da experiência de Miguel Reale Júnior, de que é possível a mudança de postura do ser humano, “mas não por força da ação estatal. Um criminoso pode mudar de vida em razão de um amor, de uma perda pessoal, da adoção de uma religião etc. Esse paternalismo, essa falsa proteção remete a um autoritarismo do qual o Brasil vem tentando se afastar” (PASCHOAL, 2003, p. 102).

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Alvino Augusto de Sá ensina que “a mera passividade e sujeição poderão, aliás, colocar em risco a qualidade adaptativa. Adaptação não implica em sacrificar a própria individualidade e nem em criar com o ambiente uma relação de onipotência” (1987, p. 3). Embora feita em outro contexto, quanto à almejada adaptação, também a advertência de Adorno de que a adaptação ao sistema pode se constituir em uma desconsideração da própria individualidade: “El mecanismo de adaptación a unas relaciones encallecidas lo es al mismo tiempo de un encallecimiento del sujeto em sí mismo: cuanto más ajustado a la realidad se vuelve, tanto más se convierte em cosa, tanto menos vivo sigue...” (1991. p. 164).

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Angela Davis, referindo-se à biografia de Malcom X, conta que ele, fixado em ler e copiar cada definição do dicionário, declarou que “passou meses sem se sentir como prisioneiro. Na verdade, eu nunca tinha me sentido tão livre na minha vida” (months passed without my even thinking about being imprisoned. In fact, up to then, I never had been so truly free in my life). Mas ressalva que muitas vezes teve que ler infringindo o próprio regime penitenciário, lendo no chão de sua cela com a luz que vinha do corredor e tendo que voltar para a cama de dois em dois minutos, nas horas de passagem do guarda (2003, p. 53).

Embora a reincidência seja efeito mais do que natural das condições do encarceramento, muito se poderia fazer para evitá-la, mas a crença na possibilidade de ressocialização transfere a culpa de sua não realização ao próprio apenado ou, como já ressaltado, à administração.

Mais do que paredes separam a sociedade do meio carcerário. Qualquer ação possível