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Apelo à racionalidade.

No documento A herança de Locke (páginas 30-37)

É já bem tempo de concluir.

Este trajecto por rasgos do programa da modernidade na gnosiologia de Locke ficaria, no entanto, ainda mais desfigurado se omitíssemos dois ou três aspectos mais, que importa evocar, se bem que abreviadamente.

O primeiro prende-se com o conceito de liberdade, de que, a espaços, deparamos com breves afloramentos no Ensaio.

Para Locke, a liberdade supõe e organiza-se em torno de uma atenção por nós próprios, num registo distinto daquele mero interesse – hedonístico ou utilista – que pode encontrar-se ligado a uma procura da «felicidade».

A liberdade assoma, de facto, aqui como um trabalho do cuidar de si mesmo, perfilando-se num horizonte de efectiva auto-determinação.

Um texto há que não pode ser mais claro e elucidativo, pese embora o carácter sintético da sua expressão: «o cuidado de nós próprios [the care of ourselves], que nós não tomamos por engano, imaginariamente, pela felicidade real, é a necessária fundação [foundation] da nossa liberdade.»67

De um modo correlativo, a «falta de liberdade» (want of liberty) não consiste

65«all things exist every moment that he thinks fit to have them exist», LOCKE, Essay, II,

XV, 12; vol. I, p. 269.

66Cf. G2eorge BERKELEY, The Principles of Human Knowledge, I, 33; Works, ed. A. A. Luce

e T. E. Jessop, London, Thomas Nelson, 1948, vol. II, p. 54.

67«The care of ourselves, that we mistake not imaginary for real happiness, is the necessary

senão, para o homem, em «estar sob a determinação de algum outro que não ele próprio» (to be under the determination of some other than himself).68

Significa isto que não é apenas num quadro (ideológico) de apelo à hones - tidade intelectual que Locke castiga com violência os que se revelam incapazes de escapar à reprodução ou imitação servis do pensamento de outrem.

A concepção de base que sustenta esta posição é outra e mais funda. Assume nítidos contornos éticos, e aponta já para uma determinada crítica da alienação.

O segundo tema a evocar de passagem diz respeito à categoria de razão. Em termos de arquitectónica doutrinal lockeana, o edifício teórico em que a razão se inscreve não nos apresenta surpresas de maior. Esta faculdade, é-nos afirmado, «fracassa-nos perfeitamente onde as nossas ideias fracassam.»69 Onto-

gnosiologicamente, e também do ponto de vista ético-religioso, a estrutura fun - da mental continua a assentar no primado originário, e originante, das «ideias» como indeclinável ponto de partida.

No entanto, à razão vem atribuído um papel decisivo no trabalho da mediação, isto é, nas operações teoréticas que permitem, de algum modo, estender, com cer - teza ou plausibilidade, o âmbito do nosso conhecimento através do relacionamento (não empiricamente dado) de materiais disponíveis na consciência, e fundados.

O expediente que Locke encontra para garantir a justeza desta funcio na li - dade da razão é apresentá-la como marca ou revelação do divino em nós:

«Quando achamos uma ideia por cuja intervenção descobrimos a conexão de duas outras, isto é uma revelação de deus a nós, através da voz da razão: porque chegamos então a conhecer uma verdade que não conhecíamos antes.»70

A razão serve-nos, deste modo, «tanto para o alargamento do nosso conhe - cimento como para regular o nosso assentimento [assent]».71Isto é, a razão dispõe

de um poder de amplificação e de orientação, certificante, no que se refere ao

68Cf. LOCKE, Essay, II, XXI, 49; vol. I, p. 346.

69«It perfectly fails us, where our ideas fail.», LOCKE, Essay, IV, XVII, 9; vol. II, p. 405. 70«When we find out an idea by whose intervention we discover the connexion of two

others, this is a revelation from God to us by the voice of reason: for we then come to know a truth that we did not know before.», LOCKE, Essay, IV, VII, 11; vol. II, p. 279. Acerca da razão como «revelação natural» (natural revelation): LOCKE, Essay, IV, XIX, 4; vol. II, p. 431.

71«both for the enlargement of our knowledge, and regulating our assent», LOCKE, Essay,

«objectualmente» cognoscível, e, por outro lado, permite qualificar a própria maneira como aderimos, «subjectivamente», às nossas proposições e juízos.

Daqui que a racionalidade desempenhe igualmente um papel insubstituível em qualquer processo de reapreciação e de revisão crítica de opinações e posicionamentos anteriormente tomados.

Porque se não pode cair no subterfúgio da alienação ou da passiva submissão a uma autoridade alheia não examinada, é para a razão que há que apelar como instância legítima para a introdução, assumida, de eventuais correcções.

Como Locke nos diz: «não podemos razoavelmente esperar que alguém haja de abandonar, prontamente e obsequiosamente, a sua própria opinião, e abrace a nossa com uma resignação cega a uma autoridade que o entendimento do homem não reconhece. Posto que, embora possa frequentemente induzir em erro [mistake], ele não pode possuir outro guia senão a razão, nem submeter-se cegamente à von - tade e aos ditames [dictates] de um outro.»72

Recorta-se agora aqui com clareza, e conexão teórica, o princípio de abordagem a que Locke submete a temática da fé religiosa.

O beato e delirante «credo, quia impossibile est»73poderá subjectivamente

assomar como manifestação piedosa de reverência plena de unção, mas não pode ser aceite, mesmo no foro religioso, como princípio caucionador de uma adesão cabalmente humanizante.

Numa acepção rigorosa, a crença não pode nem substituir nem contrariar os ditames de uma razão esclarecida: «a fé não é senão um assentimento firme da mente; o qual, se for regulado, como é nosso dever, não pode ser concedido a coisa nenhuma se não por boa razão, e assim não pode ser oposto dela.»74

72«We cannot reasonably expect that any one should readily and obsequiously quit his own

opinion, and embrace ours, with a blind resignation to an authority which the under - standing of man acknowledges not. For however it may often mistake, it can own no other guide but reason, nor blindly submit to the will and dictates of another.», LOCKE,

Essay, IV, XVI, 4; vol. II, p. 372.

73Referindo-se a este princípio, Locke conclui que se trataria de «uma regra muito ruim para

os homens haverem de escolher as suas opiniões ou religião» – «a very ill rule for men to choose their opinions or religion by», LOCKE, Essay, IV, XVIII, 11; vol. II, p. 427.

74«faith is nothing but a firm assent of the mind: which, if it be regulated, as is our duty,

cannot be afforded to anything but upon good reason; and so cannot be opposite to it.», LOCKE, Essay, IV, XVII, 24; vol. II, p. 423. Como mais adiante se acrescenta, aquele que crê sem razão pode muito bem estar apenas «apaixonado» (in love) pelas suas próprias «fantasias» (fancies).

Daí a validade universal e principial que Locke pretende reinvindicar para a

racionalidade, como autêntico sinal e operação de uma humanidade que busca, e

não prescinde de um estatuto de plena maioridade ou maturidade.

A fórmula de impacte é, na verdade, percuciente e de largo alcance se posta, com consequência, em exercício: «A razão tem que ser o nosso último juiz e guia em tudo.»75.

A razão humana é limitada, sem dúvida; mas, não obstante, constitui uma instância inderrogável na determinação adequada dos comportamentos gnosiológicos e éticos dos homens.

O derradeiro ponto para que pretenderia chamar a atenção tem a ver com a

prática.

Por um lado, no âmbito do seu esboço final de uma classificação das ciências, Locke intercala, entre a «Φυσικη» ou «filosofia natural» (natural philosophy) e a «Σημεοτικη» ou «doutrina dos sinais» (doctrine of signs), aquilo a que chama «Πρακτικη».76

Esta acepção de «prática» corresponde, em parte, a uma retomada de termi - no logia tradicional – presente já nos gregos77 e nos medievais78 –, em que, no

fundo, se consubstancia uma sua identificação com a ética.

Para sermos rigorosos, em Locke, as coisas não se passam, porém, de um modo tão linear e simplificado. Vale, pois, a pena explicitar uma ligeira distinção, à pri - meira vista apenas de palavras, mas que encerra uma diferença de maior alcance. É certo que a «ética» (ethics) constitui a parte mais considerável desta ciência prática lockeana, declarando-se que «é a procura [seeking out] daquelas regras e medidas das acções humanas que conduzem à felicidade, e dos meios de as

75«Reason must be our last judge and guide in everything.», LOCKE, Essay, IV, XIX, 13; vol.

II, p. 438.

76Cf. LOCKE, Essay, IV, XXI, 1-5; vol. II, pp. 460-463.

77Para Aristóteles, o «entendimento» (διανοια), como é sabido, pode ser ou «prático»

(πρακτικη), ou «poiético» (ποιητικη) ou «teorético» (θεωρητικη), dando estas valências lugar também a uma classificação tripartida das ciências. Cf. ARISTÓTELES,

Metafísica, E, 1, 1025 b 25.

78Para as relações entre «prática» e «filosofia moral», vejam-me, a título meramente indi -

ca tivo: João DUNS ESCOTO, Ordinatio, Prologus, V, 2, I (Opera Omnia, ed. Carl Balic, Civitas Vaticana, Typis Poliglottis Vaticanis, 1950, vol. I, pp. 155-160), Guilherme de OCKHAM, Scriptum in Librum Primum Sententiarum Ordinatio, St. Bonaventure [N. Y.], Franciscan Institute, 1967, vol. I, pp. 285-290), ou Roger BACON, Moralis Philosophia, I, Proemium, 4 (ed. Ferdinand Delorme e Eugenio Massa, Zürich, Thesaurus Mundi, s. d., p. 4).

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praticar. O fim desta não é a mera especulação e o conhecimento da verdade, mas o que é correcto [right], e uma conduta a ele apropriada [suitable].»79

No entanto, não olvidemos que, na definição mais englobante da «Πρακτικη», nos aparece também, e como adição teórica, a esfera da utilidade. Assim, para Locke, a «prática», como ciência, é «a perícia [skill] de aplicar correc - tamente os nossos próprios poderes e acções para o alcançar [attainment] de coisas boas e úteis.»80

É por isso que, no Ensaio, igualmente não faltam passagens em que emergem manifestações difusas de um outro poder humano de pôr à prova a extensão (e cognoscibilidade) do próprio real. Decerto que não aparecem referenciadas ou pensadas, terminologicamente, sob a categoria prática, mas não é por isso que deixam menos de apontar para essa outra dimensão (no limite: materialmente transformadora) do agir humano.

O exemplo mais flagrante é, porventura, aquele passo em que Locke celebra o engenho prático dos homens que, vencendo a verborreia nebulosa das disputas meramente especulativas e os interditos de uma crença esclerosada, foram capazes de fazer-se ao mar e de darem a conhecer à humanidade novas realidades até então insuspeitadas.

Eis o texto em questão: «Tivessem os homens, nas descobertas do [mundo] material, feito como fizeram nas do mundo intelectual, houvessem-nas envolvido todas elas na obscuridade de incertezas e duvidosas maneiras de falar, multipli - cado e disputado acerca de volumes escritos de navegação e viagens, de teorias e histórias de zonas e marés – nem até barcos construídos e frotas enviadas nunca nos teriam ensinado o caminho para além da linha [do equador]; e os Antípodas seriam ainda tão desconhecidos como quando era declarado heresia sustentar que sequer existiam.»81

79«is the seeking out those rules and measures of human actions, which lead to happiness,

and the means to practise them. The end of this is not bare speculation and the knowledge of truth; but right, and a conduct suitable to it.», LOCKE, Essay, IV, XXI, 3; vol. II, p. 461.

80«The skill of right applying our own powers and actions, for the attainment of things

good and usefull.», LOCKE, Essay, IV, XXI, 3; vol. II, p. 461.

81«Had men, in the discoveries of the material, done as they have in those of the intellectual

world, involved all in the obscurity of uncertain and doubtful ways of talking, volumes writ of navigation and voyages, theories and stories of zones and tides, multiplied and disputed; nay, ships built, and fleets sent out, would never have taught us the way beyond

Tratou-se, na verdade, com os avanços nas ciências e nas técnicas, com as nave gações modernas, de uma empresa prática que, pelo facto e pelo acto de se veri ficar, mudou efectivamente a concepção do teor e das fronteiras do mundo conhecido.

O programa filosófico da modernidade – simultaneamente múltiplo nas suas manifestações fenoménicas doutrinais, e uno no seu núcleo vital de intenções – é certamente discernível no pensamento de John Locke, inclusivamente num texto procuradamente gnosiológico como An Essay Concerning Human Undersatanding.

Pelo menos foi esse o desígnio de que nos procurámos desempenhar. Mais longamente do que ouvintes e leitores esperariam (e licitamente seria desejo seu); menos atenta e pormenorizadamente do que a própria matéria exigiria, para reconhecimento de uma debilidade minha.

Hegel aponta como «o princípio abstracto do mundo moderno» (das abstrakte

Prinzip der modernen Welt) a sua tendência, ou tentação, para «partir apenas de si»

(nur aus sich hervorgehen), para estar ou permanecer «em si) (in sich sein)82, o que,

nas suas expressões mais extremadas, não deixou de conduzir ao formalismo puro da subjectividade abstracta.

Penso que, no fundo e no fundamental, Hegel viu bem, e visou certo. É por isso que o criticando programa da modernidade – criticando, não talvez pelos motivos que mais vulgarmente lhe assacam – é também um programa a prosseguir e consumar, como desiderato e como acicate para o desenvol vimento e realização de uma humanidade mais rica, que não abdica de orientar o sentido da inscrição da sua marca, que vai deixando no corpo das realidades em devir.

the line; and the Antipodes would be still as much unknown, as when it was declared heresy to hold there were any.», LOCKE, Essay, IV, III, 30; vol. II, p. 224.

82Cf. Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, I,

Einleitung; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl M. Michel, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1971, vol. 18, p. 176.

No documento A herança de Locke (páginas 30-37)