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Locke, a filosofia analítica e o paradigma semântico: a leitura rortiana do

No documento A herança de Locke (páginas 50-54)

e a filosofia analítica

3. Locke, a filosofia analítica e o paradigma semântico: a leitura rortiana do

Essay

Observei, mais acima, na introdução à minha comunicação, que o paradigma linguístico reinante na história da filosofia analítica até aos anos sessenta deu lugar, no princípio dos anos setenta, a um paradigma propriamente semântico que põe a teoria da significação no cerne das suas investigações. Wittgenstein, nas

Philosophical Investigations, e Quine, em vários trabalhos, como Ontological Relativity and Other Essays, são os agentes responsáveis pela instauração do novo paradigma,

e cedo toda uma nova historiografia dos empiristas britânicos foi ser feita à sua luz. A aplicação historiográfica do paradigma linguístico, numa versão como a de Flew, podia ainda aceitar e conviver com teorias epistemológicas e metafísicas da significação como a de Locke, considerando-as, dialéctica e macro-historica - mente, como seus prolegômenos. O mesmo já não acontece com o para digma semântico, à luz do qual se rejeita expressamente que os empiristas britânicos, como Locke, tenham dado qualquer verdadeiro contributo para a história da filosofia analítica. Esta postura conduziu àquilo a que chamei uma “deflacção da historiografia analítica sobre Locke”. O ponto de partida, agora, passa a ser não Locke nem mesmo Hume, mas Kant e a problemática idealista da distinção entre o analítico e o sintético, que é suposto ter inaugurado, a despeito das “confusões” e “inconsistências” do filósofo alemão, uma tradição semântica que passa por Bolzano e Brentano, Frege e Russell, os positivistas lógicos viene neses, Tarski e outros, para concluir com Wittgestein e Quine. (É significativo, deste ponto de vista, que nem uma linha tenha sido dedicada a Locke [há, de facto, apenas duas citações, ainda por cima indirectas, do autor do Essay] no grande livro de A. Coffa, The Semantic Tradition from Kant to Carnap. [Cf. Coffa: 1995, 9, 172]) As duas tradições que estavam em questão nos paradigmas da tradição do empirismo britânico e no linguístico sobrevivem apesar de tudo: a cartesiana, quer dizer, a que confundirá a problemática da filosofia da linguagem com os problemas espúrios da teoria do conhecimento (ou epistemologia) e da metafísica, é esten - dida ou alargada quer a Locke e ao próprio empirismo britânico quer a alguns dos supostos fundadores da filosofia analítica ela mesma, como Russell; e a tradição analítica, ou seja, a de uma “filosofia da linguagem pura” ou não contaminada pelos vírus da primeira, começará agora, em rigor, apenas com Frege e com o

Tractatus de Wittgenstein (cf. Coffa: 1995, 2-3, 62 e ss., 141 e ss.; Rorty: 1988,

203 e ss.). Com esta reformulação cai, de facto, a ideia de continentalidade ana - lítica da filosofia que era característica dos paradigmas anteriores.

E Locke?

Do que se disse, não se segue que Locke tenha sido completamente esquecido pela historiografia analítica feita ao abrigo do novo paradigma. Concedendo que a filosofia de Locke era, metaforicamente pelo menos, o ponto de partida suposto do movimento analítico até aos anos cinquenta, não seria justo dizer que esse lugar caberá agora apenas à de Kant, pois também esta, embora menos do que a do autor do Essay, estará infectada pela epistemologia e pela metafísica (Coffa:

1995, 2 e ss., 7 e ss.; Rorty: 1988, 127 e ss.). A diferença essencial consistirá em que o idealismo kantiano, ao contrário do empirismo de Locke e, em particular, do de Hume, fez, indirectamente pelo menos, assentar a possibilidade do conhe - ci mento (e, por esta via, da significação na linguagem) num quadro ou estrutura que poderia ser encarado mais ou menos neutralmente como condição de toda a objectividade possível, abrindo, assim, o caminho para recolocar o problema da distinção entre analiticidade e verificabilidade, delineado pela forquilha de Hume, em termos mais prometedores (cf. Friedman: 1992). E, deste ponto de vista, foi partindo de Kant, não de Locke ou de Hume, que Coffa, Rorty e outros apre senta - ram a representação proto-histórica mais recente da história da filosofia analítica. Desaparecido que foi de cena o mito do empirismo britânico e da subse - quente tradição que inauguraria, a imagem de Locke que nos oferece Rorty, em

Philosophy and the Mirror of Nature, consiste, pois, em entroncar do princípio ao

fim o autor do Essay na tradição cartesiana, e deste modo, paradoxalmente, em reabilitar muitas das objecções à visão “standard” feitas pelos respectivos críticos, como Loeb e Popkin, incluindo aquelas que, mais acima, vimos poderem ser feitas ao paradigma linguístico. Em particular, segundo Rorty, não é razoável pensar que Locke tenha de algum modo reformulado a problemática cartesiana nos termos (supostamente analíticos) do problema da fundação do conhecimento, como pensava Ayer, ou nos termos (também eles supostamente analíticos) da filosofia da linguagem, como pensavam Flew e outros seguidores da “ordinary language philosophy”. Retomando a invenção da “mente humana” cartesiana, e povoando-a com os “espectáculos” característicos das relações entre impressões e ideias, ideias simples e ideias complexas, etc., Locke – argumenta o filósofo americano na sequência de uma longa tradição de interpretação sobre o assunto, que vai de Reid e Green (nos séculos XVIII e XIX, respectivamente) a Sellars, na época contemporânea (cf. Reid: 1969; Green: 1968; e Sellars: 1963) – confundiu a questão metafísica da origem e natureza do conhecimento com a interpretação psicológica e fisiológica da mesma, não se chegando verdadeiramente a elevar, como acima se sugeriu, ao problema da sua justificação (cf. Rorty: 1988, 115- 116; Kant: 1985, 4 e ss.). É uma tal confusão que perpassa na ambiguidade persistente com que no Essay se toma a ideia de conhecimento: por um lado, como um estado do sujeito, que pode ser descrito ou analisado, e, por outro, como um elemento que pertence ao espaço lógico das razões e da capacidade para justificarmos aquilo que dizemos. Uma outra forma de expressar esta ideia é dizer que “Locke [como Descartes e outros autores do século XVII] não pensava no conhecimento como sendo uma convicção justificadamente verdadeira. E isto

porque eles não concebiam o conhecimento como uma relação entre uma pessoa e uma proposição.” (Rorty: 1988, 117)

A interpretação de Rorty, que resumi muito genericamente, pode ser apre - sen tada, em certo sentido, como a representação histórica hodierna, geralmente compartilhada por outros filósofos analíticos, do lugar de Locke na tradição analítica em filosofia. Do ponto de vista da teoria da significação propriamente dita, os resultados do paradigma semântico na investigação analítica, por exemplo, aqueles a que chegaram Putnam e Quine, não são muito diferentes destes que expus (cf. Putnam: 1984, 68 e ss.; 1986, 7, 271, 278; Quine: 1994, 38 e ss.; 1962: 138-187). O ponto essencial das suas interpretações, mais uma vez, é a rejeição da concepção lockeana segundo a qual a significação resulta, não do uso da linguagem, mas da posse de uma imagem apropriada na mente das entidades (particulares ou universais) a que se refere, e a crítica das teorias causais da percepção, que terão justamente como pano de fundo uma tal concepção. E, também em ambos, o horizonte das respectivas hermenêuticas de Locke não é tanto o Essay em si mesmo mas o que se entendem como projecções na história da filosofia dessa tese fundamental a respeito da significação, em particular, quer em Russell quer, na sequência deste, em Carnap e no positivismo lógico vienense. Deste ponto de vista, pode falar-se numa reabilitação, pela negativa, do paradigma da tradição do empirismo britânico, de Ayer e de outros, no sentido em que, apesar de divergências mais ou menos evidentes inter scholia nessa tradição, a mesma estará na génese, directamente, de uma visão impura a respeito da linguagem e dos objectivos análise filosófica.

3.1. Limites da aplicação a Locke do paradigma semântico

Em contraste com as leituras de Locke feitas ao abrigo do paradigma da tradição do empirismo britânico e do paradigma linguístico, as do paradigma semântico – sobretudo a que nos oferece Rorty – têm como consequência recolocar a filosofia do Essay, em certa medida, no seu contexto histórico e filosófico próprio. Por exemplo, a continentalidade dessa filosofia, em especial as suas complexas conexões cartesianas é neo-cartesianas, é geralmente reconhecida. Mas, mais uma vez, tal acontece apenas porque, à partida, se elegeram como horizontes da interpretação certos temas maiores próprios da filosofia analítica contem porânea, que são, na verdade, out of context no que ao autor do Essay concerne. Por isso, as objecções que apresentámos mais acima aos dois primeiros paradigmas continuam a ser válidas, se não mesmo podem ser reforçadas, particularmente

quanto à ideia de uma (suposta) “filosofia da linguagem de Locke” que, desta vez, poderia ser interpretada nos termos das teorias da significação contemporâneas. Por outro lado, ainda em contraste com os paradigmas analíticos anteriores, o semântico é suportado por uma ampla teoria a respeito dos métodos e objectivos da historiografia filosófica (a que aludiremos nas nossas observações finais), de que Rorty foi o principal epígono. Contudo, de novo, uma tal teoria fundamenta a seu modo, de certo ponto de vista, não apenas a historiografia semântica propria - mente dita mas também as historiografias analíticas precedentes, que, a esse respeito, pecavam por manifesta omissão.

Sendo certo que Rorty concedeu à interpretação de Locke, no seu livro, um espaço considerável, ao contrário do que acontece com Coffa, o facto é que, como esse livro mostra, ele subscreve antecipadamente todas as teses historiográficas fundamentais de The Semantic Tradition, e, em particular, a importância crucial da filosofia de Kant para a filosofia analítica contemporânea. Diríamos que Rorty, ao contrário de Coffa, fala-nos sobretudo do destino do Essay até justamente ao momento em que começa, com Kant, a verdadeira história (uma história subter - rânea, é certo, mas em todo o caso uma história) da filosofia analítica contem - porânea (cf. Ribeiro: 2004). Deste ponto de vista, como sugerimos mais acima, a ideia de que haverá contemporaneamente uma deflacção analítica dos estudos sobre Locke (“constitucional”, por assim dizer) aplica-se tanto à histo riografia de um como de outro. A contrapartida positiva dessa deflacção não é apenas a reabilitação da filosofia de Kant, mas também, no quadro da chamada “tradição do empirismo britânico”, da de Berkeley (ou, como dirá Putnam, do “tour de force de Berkeley), por aquelas mesmas razões que já tinham levado Flew a conceder a esta última um estatuto privilegiado no âmbito analítico (cf Putnam: 1984, 71; Berlioz: 1997, 197-216).

No documento A herança de Locke (páginas 50-54)