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Os comentadores e exegetas da obra filosófica de John Locke não são unânimes na apreciação que fazem da relevância do seu pensamento pedagógico,

No documento A herança de Locke (páginas 99-103)

do pensamento pedagógico de John Locke

1. Os comentadores e exegetas da obra filosófica de John Locke não são unânimes na apreciação que fazem da relevância do seu pensamento pedagógico,

exposto sobretudo numa obra publicada em 1693, com o título Alguns Pensa men tos

Respeitantes à Educação (Some Thoughts Concerning Education).1Para muitos deles, o

pensamento pedagógico do autor do Ensaio sobre o Entendimento Humano (An Essay

concerning Human Understanding, 1690) e dos Dois Tratados sobre o Governo (Two Treatises of Government, 1690) constitui um aspecto muito secundário e mesmo

menor do seu pensamento, que não nasce de um interesse pessoal do autor por essas matérias, mas resulta da resposta ao seu amigo Edward Clarke, que lhe pede conselho acerca da melhor maneira de educar o filho, ainda criança. As circuns - tân cias da génese da obra, a qual começou por ser um conjunto de cartas privadas antes de se tornar uma obra dada a público, o anonimato da paternidade nas primeiras edições da obra e a expressiva modéstia do título (Some Thoughts), reforçada por recorrentes declarações do autor que relativizam as suas próprias afirmações, sublinhando o carácter limitado do seu propósito e a dificuldade de tomar nela em consideração todos os múltiplos aspectos envolvidos na educação, dariam suficiente suporte à desvalorização e secundarização deste aspecto do pensamento lockeano. É certo que não faltam também alguns outros que apontam

1Para além de Some Thoughts Concerning Education (ST), os outros escritos pedagógicos de

Locke, entre os quais as Cartas a Clarke (1681-1691), e outros pequenos ensaios foram publi cados como Apêndices à edição crítica de James L. Axtell de The Educational Writings

of John Locke, Cambridge, 1968. Some Thoughts Concerning Education foi objecto de uma

edição crítica mais recente (Oxford, 1989, integrada na edição completa das obras de Locke, empreendida pela Clarendon Press), com Introdução, Notas e Aparato Crítico por John W. Yolton e Jean S.Yolton, a qual contém igualmente em Apêndice alguns outros pequenos escritos lockeanos de temáticas relacionadas com a educação. Indicare mos as paginações destas duas edições de referência.

as naturais conexões entre o pensamento peda gógico e a filosofia do conhecimento e pensamento político e teológico-político do autor da Carta sobre a Tolerância (A

Letter concerning Toleration, 1689), havendo mesmo quem considere os Some Thoughts

como uma espécie de aplicação dos princípios gerais da filosofia lockeana ao domínio específico da educação.2 Seja como for, independentemente da relação

que esta obra possa ter com as restantes do autor e das conexões com os pres su - postos nelas expressos, logo que publicada em 1693, ela afirmou-se por si mesma, do que dão prova as 5 edições de que foi objecto até 1705, constituindo-se como um incontornável marco na história das ideias pedagógicas do início da Modernidade e abrindo caminho a uma abordagem das questões educativas que será prosseguida pelos filósofos da educação do século XVIII e que pode ainda hoje proporcionar pertinentes perspectivas que ajudem a discernir melhor os fins, os meios e os conteúdos da educação.3Concebida originariamente com o

objectivo muito limitado de dar conselhos para a educação privada do filho de um gentleman, transformada, alguns anos depois, em livro e publicada, a obra assume-se já, nessa segunda forma, como um «método geral para educar qual - quer jovem gentleman». Mas ainda esta limitação da classe dos destinatários cedo cairá entre os seus primei ros leitores. Um deles, o jovem intelectual francês

2Este aspecto foi posto em evidência no estudo introdutório de James L. Axtell à sua

edição dos Educational Writings of John Locke, pp.49 sgs. Por sua vez, uma resenha das princi pais interpretações do pensamento pedagógico de Locke pode ver-se em John W. and Jean S. Yolton, «Introduction» a John Locke, Some Thoughts Concerning Education, pp.34-43.

3A literatura expressamente dedicada ao pensamento pedagógico de Locke é escassa,

embora lhe seja feita referência em muitas ensaios e obras sobre filosofia da educação e história das ideias pedagógicas. Veja-se: P. Villey, L’influence de Montaigne sur les idées

pédagogiques de Locke et de Rousseau, Paris, 1911; Nina Reicyn, La Pédagogie de John Locke,

Hermann, Paris, 1941; R. C. Stephens, «John Locke and the Education of the Gentleman»,

University of Leeds Institute of Education Research Studies, 14 (1956),pp.67-75; Vernon

Mallinson, «John Locke (1632-1704)», in Jean Château (ed.), Grands Pédagogues, PUF, Paris, 1956 (trad. port.: Os Grandes Pedagogos, Livros do Brasil, Lisboa, pp.144-162); Peter Gay (ed.), John Locke on Education, New York, 1964; M.G.Mason, «John Locke’s Experience of Education and Its Bearing on His Educational Thought», Journal of

Educational Administration and History (University of Leeds), 3, nº2 (1971), pp.1-8;

Nathan Tarcov, Locke’s Education for Liberty, Chicago, 1984; Patrick Thierry, «Locke et la raisonnabilité de l’éducation», in Pierre Kahn, André Ouzoulias, P. Thierry (eds.),

Pierre Coste, um huguenote exilado na Holanda, logo traduziu para o francês a obra acabada de publicar e, no Prefácio à sua tradução, publicada em Amesterdão em 1695, adverte os leitores para o facto de que «embora a obra tenha sido parti - cularmente pensada para a educação de um gentleman, isso não impede que ela sirva também para a educação de toda a espécie de crianças, seja qual for a classe a que pertençam.»4 Foi esse potencial de generalização que leram na proposta

pedagógica de Locke pensadores como Rousseau5, Helvétius e talvez também o

próprio Kant (directamente, ou através da leitura do Émile de Rousseau)6, e, para

falar também dos nacionais, alguns dos representantes do nosso iluminismo pedagógico: Martinho de Mendonça (Apontamentos para a Educação de hum Menino

Nobre, 1734), Luís António Verney (Verdadeiro Método de Estudar, 1746) e António

Ribeiro Sanches (Cartas sobre a educação da Mocidade, 1760).7

Nesta comunicação, proponho-me pôr em destaque alguns dos aspectos que considero mais relevantes do pensamento pedagógico de Locke, sublinhando a respectiva relação contextual quer com os outros aspectos do pensamento pedagógico da época, quer com outros aspectos do pensamento filosófico do autor. Locke não é um autor de sistema. E se isso vale para a sua filosofia do conheci mento e da política, ainda mais vale para as suas ideias pedagógicas. Some

Thoughts, não sendo uma obra absolutamente desarrumada, denuncia, porém, no

4John Locke, De l´éducation des Enfans, traduit de l’Anglois par P[ierre] C[oste],

Amsterdam, 1695.

5Sobre a dívida de Rousseau a Locke, veja-se Nina Reicyn, ob.cit., cap. VII, pp.174-202. 6Jean Château, nas notas que faz à sua edição da tradução francesa de G. Compayré (Locke,

Quelques pensées sur l’éducation, Vrin, Paris, 1992), aponta com frequência a afinidade entre

os dois filósofos a propósito de vários tópicos do respectivo pensamento pedagógico.

7Na sua obra, Martinho de Mendonça [de Pina e de Proença Homem] oscila entre a tradu -

ção e a glosa dos Some Thoughts. Veja-se de Joaquim Ferreira Gomes, Martinho de Mendonça

e a sua Obra Pedagógica, com a edição crítica dos «Apontamentos para a Educação de hum Menino Nobre», Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, 1964. A

influência de Locke nas ideias pedagógicas e filosóficas de Martinho de Mendonça é apontada com maior ou menor ênfase por outros estudiosos que se têm ocupado da sua obra. Entre os mais recentes, refira-se: Norberto Ferreira da Cunha, Elites e Académicos na

Cultura Portuguesa Setecentista, Lisboa, INCM, 2001; Luís Manuel A.V. Bernardo, O Essencial sobre Martinho de Mendonça, Lisboa, INCM, 2002; António A. Banha de

Andrade, Contributos para a História da Mentalidade Pedagógica Portuguesa, Lisboa, INCM, 1982; Rogério Fernandes, O Pensamento Pedagógico em Portugal, Lisboa, ICLP, 1992.

estilo a origem epistolar e está mais próxima do género de considerações culti va do por Montaigne nos seus ensaios sobre a educação das crianças, do que na linha da análise e discussão das doutrinas metafísicas e políticas levadas a cabo no Essay e nos

Treatises. Consciente disso, o seu autor reconhece na Carta Dedica tória a Edward

Clarke que, «pela familiaridade e forma do estilo, se trata mais de uma conversa privada entre dois amigos do que dum discurso destinado ao público».8Distri -

buí dos em torno de dois grandes capítulos – a educação do corpo e a do espírito –, os temas e tópicos sucedem-se na obra com grande fluidez, tecendo o autor considerações e dando recomendações a respeito do cuidado a ter com a saúde, alimentação e higiene da criança, do perfil e da função do preceptor, do confronto entre educação privada no seio da família e educação pública, dos métodos peda - gó gicos, do plano de estudos e das matérias que se devem ensinar, da vanta gem, mesmo para um gentleman, de completar a educação intelectual com a aprendiza - gem de um ofício manual, da educação moral e social, da função educativa das viagens, etc. Mas não é tanto nos temas e nas ideias expostas que está a novidade da obra. A maior parte dos temas são tradicionais e muitas das ideias expostas não são mais do que recomendações de bom senso, colhidas na tradição do pensa men - to pedagógico, em Quintiliano, em Plutarco, em Juvenal, em Séneca, e também em alguns mais recentes, como Erasmo, Montaigne, La Bruyère e outros, alguns dos quais são expressamente citados, por vezes em máximas que condensam todo um programa, como aquela bem conhecida de Juvenal – «mens sana in corpore sano» – que preside às primeiras secções da obra sobre a educação corporal: o cuidado da saúde, da higiene e da alimentação da criança, aspectos para os quais a forma - ção médica dava ao filósofo particular autoridade; ou ainda aqueloutra do mesmo escritor latino – «maxima debetur pueris reverentia» – na qual se diz a profun da con - vic ção que Locke tem da dignidade e humanidade da criança e do respeito que os pais e preceptores lhe devem. A novidade, se existe, está no modo de aborda gem da educação. Esta abordagem é feita a partir da experiência e observação do edu - can do e orientada segundo o processo do crescimento ou desenvolvimento psico- -cognitivo afectivo e moral de cada indivíduo. A educação considerada do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, tal poderia ser a fórmula para dizer em síntese o essencial da proposta de Locke em matéria de teoria pedagógica.

8«In the Familiarity and Fashion of the Style,… they were rather the private Conversation

of two Friends, than a Discourse designed for publick View.» ST (Axtell, p.111; Yolton, p.79).

Não tenho obviamente a pretensão de sistematizar aqui aquilo que Locke deixou aberto e sem sistema, nem a de fazer uma recensão completa das suas ideias pedagógicas e muito menos de apontar as secções e os parágrafos que o filósofo sabia bem que ainda haveria que ter em conta, mas que não escreveu e talvez nem pudesse escrever. Não é aliás sensato enfatizar o alcance desta obra para além das suas proporções, forçando-a a dizer mais do que ela diz ou do que o seu autor nela quis dizer. Glosando o título da obra de Locke, o que farei apenas é tecer «algumas considerações» que me foram suscitadas pela sua leitura, visitando de passagem alguns tópicos, tais como: o estatuto do saber pedagógico, o poder e o limite da educação, o princípio da individualidade e da diferença em educação, a educação para a liberdade e a racionalidade, a relação de Locke com o pensamento pedagógico seiscentista e a relação das ideias pedagógicas do filósofo com os outros domínios da sua filosofia.

2. O primeiro tópico que gostaria de comentar é o do próprio estatuto do

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