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A consciência da importância decisiva da educação exprime-se em vários passos da obra Logo na Carta Dedicatória se lê: «A boa educação das crianças é a

No documento A herança de Locke (páginas 106-110)

do pensamento pedagógico de John Locke

3. A consciência da importância decisiva da educação exprime-se em vários passos da obra Logo na Carta Dedicatória se lê: «A boa educação das crianças é a

tal ponto um dever e um interesse dos pais e o bem estar e prosperidade da nação estão de tal modo dela dependentes que eu desejaria que cada qual a tomasse seriamente a peito…».12Mais explícito é ainda o primeiro parágrafo da obra onde

deparamos com esta declaração: «A felicidade ou a miséria dos homens são na sua maior parte obra deles mesmos…. Penso poder dizer que nove décimos de todos os homens que conhecemos são o que são, bons ou maus, úteis ou inúteis, pela sua educação. É a educação que faz a grande diferença entre os homens.»13

Mas se Locke pertence ao número dos filósofos que realçaram o extra ordi ná - rio poder da educação no desenvolvimento do indivíduo, também, por outro lado, revela ter consciência dos insuperáveis limites de toda a pedagogia. A educação trabalha sobre a natureza dos homens e tem que ter em conta as possibilidades e as resistências dessa natureza, tomada não só em geral como sobretudo nas parti - cu la ridades e diferenças individuais. Mas afirmar o poder da educação significa reconhecer a capacidade de os homens têm de determinar, em larguíssima medida, o seu destino pessoal e social, assumindo a responsabilidade por si próprios e tirando de si mesmos pelo trabalho e esforço aquilo que merecem possuir e usufruir. Reconhecer a importância da educação é, pois, uma maneira de procla mar o optimismo antropológico e social: seja qual for a sua condição natural, os homens podem sempre modificá-la para melhor, se o quiserem e se a isso se aplicarem com esforço, trabalho e método adequado.

Se há discurso que não pode passar sem recorrer ao uso de metáforas para construir e expor, esse é o das doutrinas pedagógicas. E também Locke as não dis -

12«The well Education of their Children is so much the Duty and Concern of Parents, and

the Welfare and Prosperity of the Nation so much depends on it, that I would have every one lay it seriously to Heart…». ST (Axtell, p.112; Yolton, p.80).

13«Men’s Hapiness or Misery is most part of their own making…. And I think I may say,

that of all the Men we meet with, Nine Parts of Ten are what they are, Good or Evil, useful or not, by their Education. ‘Tis that which makes the great Difference in Mankind.»

ST §1 (ed. Axtell, p.114; ed. Yolton, p.83). A versão da 1ª Carta a Clarke era mais

pen sa, mesmo se as não apreciava e até as desqualificava no âmbito da sua filosofia teórica, considerando-as como uma imperfeição e abuso da linguagem, como fonte de erradas ideias e de extravio do juízo, pelo que o «discurso figura tivo» deveria ceder o lugar à «verdade seca» e ao «conhecimento real».14As metáforas

usadas por Locke para expor aspectos do seu pensamento pedagógico não são originais e, significativamente, ocorrem nos parágrafos extremos da obra, abrindo- -a e fechando-a, como que compendiando a ideia principal do seu autor. As que fecham a obra sublinham a dimensão passiva da criança, «considerada apenas como uma folha de papel branco, ou como a cera, para ser moldada e modelada como se quiser.»15 Uma delas é a adaptação à «galáxia Gutenberg» da antiga

imagem da «tabula rasa»16, a qual tanto ocorre no discurso pedagógico como no

discurso da filosofia do conhecimento. A outra, a da cera, sublinha a plasticidade do educando às mãos do educador. Num caso como noutro, o que está em causa é o processo de aprendizagem, isto é, a sedimentação de impressões sensoriais na forma de hábitos cognitivos ou comportamentais. Ambas as imagens haviam sido usadas desde Aristóteles contra o inatismo platónico, para acentuar o carácter progressivamente adquirido do conhecimento a partir das primeiras impressões dos dados elementares das sensações, os quais vão sendo elaborados progressiva - mente em sínteses e relações gerais.17 Elas são, aliás, recorrentes na literatura

peda gógica.18Mas significativamente, a imagem da folha branca de papel ocorre

também na filosofia lockeana do conhecimento. No Essay, Livro II, cap. I, §2,

14Essay, Book III, cap. X, §34, ed. cit., p. 508.

15«I considered only as White Paper, or Wax, to be moulded and fashioned as one pleases.» ST (Axtell, §216, p.325; Yolton, §217, p.265).

16Esta fora usada por Locke no seu manuscrito latino não publicado das Questions concerning the Law of Nature (1664), folio 38 (ed. e trad. de R. Horwitz, J.S.Clay, and D.Clay,

Cornell University Press, Ithaca and London, 1990, pp.138-140), no contexto da discussão do inatismo e numa explícita referência marginal a Descartes: Em resposta à questão «An Lex Naturae hominum animis inscribatur? Negatur.[…] gratis tantum dictum est et a nemine hactenus probatum etiamsi in eo laborarunt multi [laborat acutissimus Car[t]esius] scilicet nascentium hominum animas aliquid esse praeter rasas tabulas quorumlibet characterum capaces, nullos tamen a natura inscriptos sibi gerentes.»

17Aristóteles, De anima, 429 b 29-430 a2 (tábua rasa); 424 a16-24 (cera).

18Sirva de amostra esta passagem de um tratado pedagógico de Erasmo:«Natura quum tibi

dat filium, nihil aliud tradit quam rudem massam. Tuae partes sunt obtemperantem et in omnia sequacem materiam in optimum habitum fingere… Statim vt nascitur infans,

lê-se: «Seja-nos permitido supor que o espírito é, como se diz, um papel branco, vazio de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como é que ele as obtém?… A esta pergunta eu respondo com uma palavra: a partir da experiência: é nesta que todo o nosso conhecimento se funda; e é desta que em última instância ele próprio deriva.»19Ou seja, a imagem da mente vazia ou como uma folha de papel em

branco compendia e resume a desmontagem analítica da tese inatista que fora feita nos parágrafos anteriores da obra e diz o carácter adquirido e construído de todo o conhecimento que a mente possui.

É, pois, uma metáfora o que estabelece a conexão entre as duas obras e os dois domínios do pensamento lockeano: a filosofia do conhecimento e a filosofia da educação. A imagem da mente como uma folha de papel em branco diz a recusa da concepção segundo a qual existiriam na mente humana ideias originariamente inscritas, antes de qualquer experiência. Aristóteles usara a sua imagem da mente como ‘tábua rasa’ contra a reminiscência platónica, Locke investe-a agora, numa versão mais condizente com a era do «homem tipográfico», contra o inatismo cartesiano e contra todas as formas de inatismo. No Essay, a observação do que se passa com as crianças é muitas vezes invocada como argumento de experiência contra os defensores do inatismo. Escreve Locke: «Se considerarmos atentamente as crianças recém-nascidas, teremos pouca razão para pensar que elas vieram ao mundo com muitas ideias… Perceberemos como é posterioremente e gradual - men te que as ideias entram no seu espírito; e que elas não alcançam nada mais nem outra coisa a não ser o que lhes é fornecido pela Experiência e pela Observação das

docilis est ad ea quae sunt hominis propria. Itaque iuxta Vergilianum oraculum:

Praecipuum iam inde a teneris impende laborem. Mox tracta ceram dum mollissima est, finge

argillam etiamnum vdam, imbue liquoribus optimis testam, dum rudis est, tinge lanam dum a fullone niuea venit, nullisque maculis contaminata. Subindicauit hoc perquam festiviter Antisthenes, qui cum filium cuiusdam suscepisset erudiendum, rogatus a parente quibus rebus esset opus: Libro, inquit, nouo, stylo nouo, tabella noua. Nimirum rudem ac vacuum animum requirebat philosophus.» Erasmo de Roterdão, De pueris

statim ac liberaliter instituendis (1529), in Erasmo da Rotterdam, Per una libera educazione

(testo latino a fronte), a cura di Luca D’Ascia, BUR, Milano, 2004, p.76. A inspiração erasmiana dos pensamentos pedagógicos de Locke é posta em realce por Luca D’Ascia, na Introdução à sua tradução do citado tratado de Erasmo (pp.25-26).

19«Let us then suppose the Mind to be, as we say, white Paper, void of all Characters,

without any Ideas; How comes it to be furnised?… To this I answer, in one word, From Experience: In that, all our Knowledge is founded; and from that it ultiimately derives it self.» Essay, ed, P.H.Niddtich, Clarendon Press, Oxford, p. 104.

coisas, que se lhes deparam no caminho; o que deve bastar para nos convencer de que não há caracteres originalmente impressos no espírito.»20

À primeira vista, as duas imagens – a da folha de papel em branco e a da cera – dizem o carácter passivo da mente, contra o princípio da espontaneidade mental defendida pelo inatismo. Mas para Locke a estratégia anti-inatista visava antes sublinhar o papel activo da mente, a qual só alcança as ideias que ela mesma vier a elaborar trabalhando os dados que lhe são fornecidos pelas sensacões. Uma vez que não há ideias originariamente inscritas ou impressas na mente, então todo o conhecimento do indivíduo é um contínuo esforço: «todo o raciocinar é uma pro - cu ra e uma consideração acerca do que se encontra, e exige trabalho e aplica ção.»21

Conceber todo o processo do conhecimento como uma experiência de aprendiza - gem é também uma maneira de dizer que o conhecimento se constitui como uma experiência de descoberta do novo e de contínuo progresso.

Nos primeiros parágrafos da sua obra, Locke usa uma outra imagem que tem um carácter um pouco mais dinâmico, embora no fundo sirva a mesma ideia que as anteriores. O espírito da criança é aí comparado à água dúctil de um rio, cujo curso só pode ser dirigido num sentido ou noutro, se a intervenção se der logo no início, tal como a corrente do rio o pode ser, se a intervenção e canalização se der na sua nascente: «Passa-se com as primeiras impressões como com as nascentes de certos rios, nos quais uma delicada aplicação da mão desvia as suas dóceis águas segundo diversos canais que as conduzirão em cursos completamente contrários, e segundo esta direcção que lhe é dada na sua nascente, eles recebem diferentes tendências, e por fim chegam a lugares muito remotos e distantes. Imagino as mentes das crianças tão facilmente orientáveis num sentido ou noutro como a própria água…»22Assim sublinha o autor a sua convicção, muitas vezes expressa

20«If we will attentively consider new born Children, we shall have little Reason, to think,

that they bring many Ideas into the world with them….. One may perceive how, by degrees, afterwards, Ideas come into their Minds; and that they get no more, nor no other, than what Experience, and the Observation of things, that come in their way, furnish with them; which might be enough to satisfy us, that they are not Original Characters, stamped on the Mind.» Essay, ed. cit., p.85.

21«For all Reasoning is search, and casting about, and requires Pains and Application.» Essay, Book I, cap.2, §10, p. 52.

22«The little, and almost insensible Impressions on our tender Infancies, have very

important and lasting Consequences: And there ‘tis, as in the Fountains of some Rivers, where a gentle Application of the Hand turns the flexible Waters into Chanels, that make

no decurso da obra, de que o essencial da acção pedagógica deve incidir nos primeiros anos de vida da criança, antes que os maus hábitos nela se tenham consolidado de forma irremediável.

Esta ideia é reforçada ainda por uma outra comparação, tirada da indústria de faiança, e que ocorre na Carta Dedicatória, a qual faz ver a irreparável conse - quência duma primeira educação defeituosa: «Os erros na educação devem ser menos desculpados do que em qualquer outro domínio: estes, são como os defeitos na primeira cozedura de uma peça de faiança, os quais já não podem ser emendados na segunda nem na terceira, mas permanecem como uma mancha incorrigível ao longo de todas as partes e estações da vida.»23

Todas estas imagens têm a virtude de sublinhar o reconhecimento da impor - tância da educação e de indicar o entendimento que o filósofo fazia da natureza da própria educação como um processo de sedimentação indelével de uma determinada feição ou carácter nos seres humanos. Tanta é a eficácia reconhecida à educação que o filósofo quase parece pender para um certo determinismo pedagógico: o homem é ou será o que for ou tiver sido a sua educação.

4. Apesar da reiterada confissão da modéstia das suas propostas e dos seus

No documento A herança de Locke (páginas 106-110)