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Apesar da reiterada confissão da modéstia das suas propostas e dos seus pensamentos pedagógicos, Locke não deixa de fazer severas críticas às concepções

No documento A herança de Locke (páginas 110-115)

do pensamento pedagógico de John Locke

4. Apesar da reiterada confissão da modéstia das suas propostas e dos seus pensamentos pedagógicos, Locke não deixa de fazer severas críticas às concepções

e práticas de educação em vigor na sua época. O seu século fora marcado por um forte impulso no domínio da pedagogia e oferecia uma grande diversidade de propostas e de práticas, que iam desde o que se pode chamar a anti-pedagogia de tipo cartesiano – a qual desqualifica toda a aprendizagem escolar, confiando apenas no poder que a mente de cada homem tem de tirar «do seu próprio fundo» todos os conhecimentos certos e evidentes –, até ao pormenorizado programa duma pampaideia ou pedagogização universal comeniana, passando pelas peda - go gias tradicionais (de inspiração medieval, à maneira dos tratados de «educa ção do príncipe», ou de inspiração humanista, baseadas no ensino inten sivo das línguas

them take quite contrary Courses, and by this little Direction given them at first in the Source, they receive different Tendencies, and arrive at last, at very remote and distant Places. I imagine the Minds of Children as easily turned this or that way, as Water it self…» ST §1-2 (Axtell, pp.114-115; Yolton, p.83-84).

23«For Errours in Education should be less indulged than any: These, like Faults in the

first Concoction, that are never mended in the second or third carry their afterwards- incorrigible Taint with them, through all the Parts and Stations of Life.» ST (ed. Axtell, p.112; Yolton, p.80).

clássicas e das disciplinas da linguagem, sobretudo da Retórica). A prática pedagógica exercia-se ora sob a forma do preceptorado ou tutoria privados, ora nas escolas públicas dos colégios religiosos, eclesiásticos, comunais ou reais, como era aquele que o adolescente John Locke frequentou em Westminster, cujo

curriculum era constituído essencialmente pelo ensino das humanidades – Latim,

Grego, Retórica – e pelo treino em exercícios literários, declamações e traduções. O filósofo empirista está tão longe de Descartes como de Coménio. Não confia no poder natural que a mente tem de descobrir em si e por si mesma todos os conhecimentos, dispensando preceptores e escolas, dispensando sobretudo a informação que lhe chega apenas pela via dos sentidos. Contrariamente ao autor do Discurso do Método, que lamentava o tempo que havia perdido a ouvir as lições dos seus professores, o filósofo inglês afirma que quase tudo o que um homem é ou vem a ser deve-o à educação que recebeu e todas as ideias que a mente tem as obteve a partir da experiência. Mas Locke também não se deixa embalar na utopia duma pedagogização universal à maneira de Coménio, levada a cabo por escolas públicas, dirigidas a todos os homens, independentemente da sua condição, do seu sexo e até das suas capacidades naturais e concebidas como oficinas de forma - ção de indivíduos ensinados a pensar segundo um mesmo molde – o da ciência pansófica –, se levarmos a sério a imagem explicitada pelo filósofo-pedagogo checo no último capítulo da sua Didáctica Magna, onde a didacografia é pormeno - ri zadamente pensada por analogia com a calcografia ou tipografia: da mesma forma que o faz a prensa dos prelos em relação aos exemplares de um livro, assim um só professor tem a capacidade de multiplicar de modo ilimitado o mesmo molde em inúmeras mentes. Longe dos sonhos pansóficos, pampaideicos e pandi - dác ticos de Coménio, Locke tem uma visão classista24, individualista e diferen -

24A educação que Locke tem em vista dirige-se a filhos da classe dirigente e propõe-se

prepará-los para continuarem a exercer a função social de direcção política, ideológica e económica, própria da sua condição. Aos filhos das classes pobres restam as «escolas do trabalho» que lhes garantem a persistência na sua condição de classe e também a pobreza ou mesmo a miséria. A proposta pedagógica de Locke é solidária da sua filosofia política do «individualismo possessivo». Teríamos de esperar pelos programas de «instrução pública» da República Francesa, instaurada pela Revolução de 1789, para que à educação fosse reconhecido o importantíssimo papel político e social (que ainda hoje dela exigimos) de realizar a igualdade e a fraternidade entre os cidadãos, corrigindo a desigualdade de condição natural, homogeneizando as classes e transformando os indivíduos naturais em cidadãos da república.

cialista da educação, e isso o leva a desconfiar das escolas públicas e das turmas numerosas entregues a um mesmo professor, preferindo inequivocamente o ensino privado no seio duma família que para isso tenha posses e condição. Neste caso, o preceptor pode observar o seu aluno, estudar a sua natureza e tempera - mento, identificar os seus defeitos e propensões e assim encontrar as melhores estratégias ou terapêuticas pedagógicas para os estimular ou neutralizar; pode adequar as matérias ensinadas às funções que o seu educando venha a desempe - nhar na vida adulta, ou atender às exigências da sua condição social, em vez de pretender, como o pedagogo checo, «ensinar tudo a todos totalmente», dando uma formação abstracta e geral que de pouco lhe serviria quando adulto. Eviden - te mente, há que ter especial cuidado na selecção do preceptor ou tutor e Locke dedica largas páginas ao assunto, definindo o seu perfil e as suas competências: deve ser erudito, mas não atulhado de erudição, deve ser um gentleman e não um simplório, deve ser um homem do mundo e que o conheça bem, um homem afável e sensato, mas sobretudo um homem de carácter, capaz de substituir os pais pela autoridade e pelo exemplo.

Um dos aspectos sobre que incidem as críticas de Locke é a prática generalizada dos castigos corporais como método pedagógico. O filósofo não só constata a ineficácia desse método como faz ver que ele tem efeitos contrapro - ducentes, levando as crianças a associar as matérias aos castigos e a odiá-las cada vez mais por causa destes. Em alternativa, propõe estratégias de motivação que cultivem a auto-estima da criança ou do adolescente e o sentido do seu valor e da sua dignidade e honra, factores essenciais não só para eles progredirem e desenvol - verem as suas capacidades mas também para se tornarem adultos responsáveis.

Quanto à aprendizagem, para Locke ela não se reduz a armazenar conhe - ciment os. Pelo contrário, é concebida como um processo de elaboração e em perma nen te desenvolvimento, no qual são solicitadas não só as operações mentais cognitivas, mas também aquilo a que hoje chamaríamos as funções meta-cogniti - vas, como o discernir, o comparar, o reflectir, o julgar. Tal como Montaigne, Locke prefere que o seu pupilo tenha, em vez de uma cabeça bem cheia, uma cabeça bem arrumada, capaz de discernir e de pensar. O cultivo da memória cede ao cultivo do entendimento e do juízo.

O plano de estudos e as matérias propostos por Locke para o seu jovem

gentleman são regidos por uma economia sensata, tendo em vista a utilidade das

matérias, o desenvolvimento do aluno, o seu estatuto social e as funções que se espera que ele venha a desempenhar como adulto. Num dos primeiros capítulos do Essay, Locke escrevia que «não se trata de conhecer todas as coisas, mas aquelas

que têm a ver com a nossa conduta».25Este princípio vai reger também as suas

perspectivas sobre educação. Não se trata de criar um especialista em qualquer ciência, mas apenas de proporcionar uma base de informação útil que possa vir a ser desenvolvida ou aprofundada depois, se o jovem o pretender. O plano de estudos visa corrigir os vícios em que caíra o ensino de base humanista. Em vez de uma cultura de livros e de palavras, centrada nas línguas clássicas e na retórica, propõe-se uma educação que possibilite o conhecimento do mundo e dos homens. As disciplinas do curriculum lockeano são já as disciplinas condizentes com a alteração do regime dos saberes e das ciências que se deu na modernidade, marcado pela orientação para o mundo natural, para a matematização da vida económica e social, pelo desenvolvimento das relações humansas. A relativização das disciplinas humanísticas dá lugar à expansão de outras disciplinas consideradas mais adequadas à formação básica dum gentleman moderno. O conhecimento do mundo e dos homens é facultado pela Geografia, pela História, pela Cronologia, pelo Direito, pela História bíblica, pela Ética. O conhecimento científico contempla a Aritmética, a Geometria, a Astronomia, a Física, a Filoso - fia Natural. O conhecimento das línguas é pensado tendo em vista a comuni - cação, dando prioridade à língua materna, contemplando também o Latim e o Francês. A educação para as relações de sociedade completa-se com a aprendiza - gem da dança, da música e da esgrima. Tendo por certo à vista o exemplo da laboriosa burguesia holandesa, Locke recomenda ao seu pupilo também a aprendizagem de artes úteis, como a contabilidade, para poder controlar os seus negócios, e um ofício manual, que, para além da eventual utilidade que lhe possa trazer, sobretudo lhe distraia o espírito. Por fim, o conhecimento dos homens e do mundo completa-se com as viagens. Este curriculum parece muito vasto e exi - gente. Mas Locke está longe de pretender que o seu pupilo seja uma enciclopédia e ainda menos que dedique a vida a aprender todas as ciências. Evocando uma conhecida lamentação de Séneca, segundo o qual em vez de aprendermos para a vida passamos a vida a aprender para a escola – non vitae sed scholae discimus –, também ele recusa a ideia de uma educação que se constituísse como um fim em si mesma.

O plano de estudos proposto é aberto e variado, pautado pelo sentido pragmático e pela preocupação de assegurar uma educação equilibrada do corpo

25«Our business is not to know all Things, but those which concern our conduct.» Essay,

e do espírito. Mas a insistência de Locke vai menos para a formação intelectual ou corporal do que para a formação moral, onde cabem por certo as boas maneiras e a formação religiosa, mas sobretudo o sentido e o cultivo da virtude. Nisto, diz ele, consiste «o grande e mais importante fim da educação» (great and main End

of Education): «É pois a virtude, a simples virtude, que constitui a parte difícil e

valiosa que se deve ter em vista na educação… Todas as outras considerações e realizações lhe devem abrir caminho e estar subordinadas. Ela é o bem sólido e substancial que deve constituir o objecto das lições e conversas dos tutores, e estes devem empregar todo o seu esforço e arte de educação para encher com ela o espírito do seu pupilo, sem disso se afastarem e sem descansarem até que o jovem tenha adquirido o gosto dela e coloque nela toda a sua força, a sua glória e o seu prazer.»26Noutro lugar diz-se em que consiste o verdadeiro princípio e medida

da virtude: «no conhecimento que o homem tem do seu dever, na satisfação de obedecer ao seu Criador, seguindo os dictames daquela luz que Deus lhe deu, na esperança de aceitação e recompensa.»27

A concepção lockeana de educação é assim fortemente marcada por um carácter moral a que nem sequer falta o acento puritano: dominar os apetites, triunfar sobre as inclinações e desejos, seguir a orientação duma razão que impõe o sacrifício do prazer e do agradável ao útil. Como se lê no parágrafo 38 da obra: «O princípio de toda a virtude e de toda a excelência moral consiste no poder de recusarmos a nós mesmos a satisfação dos nossos próprios desejos, quando a razão o não autoriza. Este poder adquirimo-lo e desenvolvêmo-lo pelo hábito e exerce- se facilmente praticando-o desde cedo. Se pois eu pudesse fazer-me ouvir, diria que, contrariamente ao método ordinário, as crianças devem ser acostumadas a dominar os seus desejos e a dispensar as suas fantasias, mesmo desde o berço. A primeira coisa que seria necessário ensinar-lhes seria que todas as coisas que se

26«Tis Vertue then, direct Vertue, which is the hard and valuable part to be aimed at in

Education… All other Considerations and Accomplishements should give way and be postpon’d to this. This is the solid and substantial good, which Tutors should not only read Lectures, and talk of; but the Labour, and Art of Education should furnish the Mind with, and fasten there, and never cease till the young Man had a true relish of it, and placed his Strength, his Glory, and his Pleasure in it.» ST §70 (Axtell, p.170; Yolton, p.132).

27«… the true Principle and Measure of Vertue, (for that is the Knowledge of a Man’s

Duty, and the Sactisfaction it is to obey his Maker, in following the Dictates of that Light God has given him, with the Hopes of Acceptation and Reward)…» ST §61 (Axtell, p.156; Yolton, p.119).

lhes dão, não as obtêm porque lhes são agradáveis, mas porque julgamos que lhes são úteis.» 28O racionalismo moralista e puritano impede o filósofo de reconhecer

o importante papel da afectividade e dos sentimentos na educação e na vida do homem, se exceptuarmos obviamente os sentimentos morais e em particular «os sentimentos de humanidade», que em última instância consistem no respeito ou «consideração pela natureza humana» mesmo em pessoas de baixa condição social.29Esta sem dúvida uma das maiores limitações do pensamento pedagógico

de Locke. Mas nisso o filósofo está em consonância com a maioria dos pensadores do seu século e com muitos do século seguinte. Teremos de esperar por Friedrich Schiller e pelas suas Cartas sobre a educação estética do ser humano (1795) para que à dimensão estética (da sensibilidade, do sentimento, da afectividade, da imagina - ção) seja reconhecida plena importância no plano pedagógico e antropológico.30

5. Com os seus Pensamentos Respeitantes à Educação, Locke contribuiu com a

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