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Locke, a filosofia analítica e o paradigma linguístico

No documento A herança de Locke (páginas 48-50)

e a filosofia analítica

2. Locke, a filosofia analítica e o paradigma linguístico

Já referi que entre o paradigma da tradição do empirismo britânico e o paradigma linguístico, na interpretação de Locke, não existe uma verdadeira oposição ou incompatibilidade quanto à representação da história da filosofia, uma vez que os seguidores do último (como Ryle, e Stawson até certa altura, por exemplo) não põe em questão a existência de uma tal tradição como proto- -história da sua própria concepção de análise. Na verdade, a chamada “ordinary language philosophy” contribuíu para o reforço quer da ideia da existência do “empirismo britânico quer, sobretudo, da ideia da existência de uma “tradição” de tal empirismo. As divergências ou oposições entre ambos os paradigmas ocorrem sobretudo entre os respectivos programas filosóficos: descentrar a filoso - fia da linguagem da epistemologia e da metafísica, em ordem a construir uma nova teoria da significação, torna-se a partir de meados dos anos quarenta a palavra de ordem da “ordinary language philosophy”. Enquanto na perspectiva do primeiro paradigma os temas eleitos eram os que se prendiam com a questão da fundação do conhecimento a partir dos dados dos sentidos, que era um tema central do Essay de Locke – mas não, como se sugeriu, no sentido reducionista e/ou verificacionista como era interpretado por Ayer e outros –, na do segundo passam a ser as implicações linguísticas dessa teoria, para cujo esclarecimento, argumentava-se, o filósofo inglês tinha dado um primeiro contributo funda men - tal, que seria criticado e desenvolvido, na dialéctica interna própria ao empirismo britânico, por Berkeley e por Hume (cf. Strawson: 1992, 20 e ss., 74).

Um dos exemplos mais explícitos da aplicação historiográfica do paradigma linguístico aos empiristas britânicos e, em particular, a Locke, são os trabalhos de A. Flew. A introdução à colectânea de ensaios Logic and Language, que editou e que reunia contribuições de Ryle, Waismann, Wisdom e outros, abre justamente

com uma citação do Essay de Locke: “Perhaps if ideas and words were distintly and duly considered, they would afford us another sort of logic and critic than we have hitherto been acquainted with.” (Flew: 1963: 1; Locke: 1894, Bk IV, chap. 21, 4) E Flew aduz:

It is this new sort of ‘logic and critic’, foreseen over two centuries ago by John Locke, which philosophers of the movement represented in this collection of essays have been working to produce. (Flew: 1963, 1, s. n.)

Esta lógica, para a qual Berkeley e Hume – passo a passo – contribuiriam na sequência de Locke (cf. Flew : 1963, 2-3), é, paradoxalmente para nós hoje em dia mas de modo mais ou menos evidente para Flew, na altura, a nova “lógica da linguagem” de que se ocupam os trabalhos dos autores da colectânea: identifi - cação entre significação e uso da linguagem, análise dos usos enganadores e/ou defeituosos da linguagem corrente a partir de uma violação da lógica da própria linguagem, como acontece com a doutrina de Ryle em “Systematic Misleading Expressions” (cf. Flew: 1963, 11-36), etc.

Em An Introduction to Western Philosophy: Ideas and Argument from Plato to Sartre, livro publicado tão tarde (para o destino histórico do paradigma linguís tico na segunda metade do século XX) quanto 1971, Flew aplica o paradigma linguístico à história da filosofia no seu conjunto, dando um lugar de destaque aos empiristas britânicos e, em particular, a Locke (cf. Flew: 1971, 431 e ss.). Embora o acento seja posto na interpretação da filosofia deste último como, essencialmente, filosofia da linguagem, a análise é, desta vez, mais refinada. Os compromissos entre o autor do Essay e o cartesianismo, quanto à teoria da mente e à problemática da significação, são geralmente denunciados (cf. Flew: 1971, 433-434). Assim, tendo em mente o segundo Wittgenstein (Wittgenstein: 1953), ele lamenta que Locke se tenha deixado seduzir pela ideia de que com preender a significação de uma palavra ou conceito é possuir uma apropriada imagem dos mesmos,– “desastrous misconception” (na sua expressão: Flew: 1971, 433), que Berkeley (“the next step”), antecipando justamente o autor das Philosophical Investigations, viria triunfantemente a criticar e corrigir (cf. Flew: 1971, 434). E, quanto à problemática da formação dos conceitos versus termos gerais, e ao problema da classificação, as inconsistências da teoria de Locke primam, apesar de tudo, sobre a sua originalidade, particularmente quando com paradas com as contribuições de Berkeley e de Hume (cf. Flew: 442 e ss.). Mas, a despeito de todas estas reservas, o essencial, para Flew, está na abertura, por parte de Locke, da rota que a própria filosofia linguística concretizaria, quase duzentos e cinquenta anos depois.

2.1. Limites da aplicação a Locke do paradigma linguístico

Uma interpretação como a de Flew a propósito de Locke e do chamado “empirismo britânico” pode parecer-nos hoje paradoxal, como já observei de passagem. Mas, considerando a historiografia feita ao abrigo do paradigma linguístico devemos olhar mais para a representação de conjunto, apesar de tudo sedutora, do que para os detalhes. Que as teorias do autor do Essay, no seu conjunto, possam ser interpretadas linguisticamente, particularmente quando o suposto horizonte das mesmas, dada a mediação de Berkeley e de Hume, é a problemática da filosofia analítica contemporânea, é algo que alguma historio - grafia ainda hoje reputada, aceitava mais ou menos displicentemente na época. Não há dúvida que as considerações sobre a linguagem são essenciais no Essay, mas, por um lado, visam antes de tudo responder aos problemas próprios do contexto de Locke e respectivos antecedentes, e, por outro, como o próprio Flew reconhece, decorrem de uma perspectiva em que epistemologia e ontologia são indissociáveis (Flew: 1971, 434). Generalizá-las, como se existisse algo do género de uma “filosofia da linguagem de Locke”, e, sobretudo, interpretá-las no sentido propriamente linguístico da “ordinary language philosophy” ou das Philosophical

Investigations de Wittgenstein, parece distorcer a sua significação mais íntima e

essencial para o autor do Essay. Deste ponto de vista crítico, tenho em mente, por exemplo, o livro de Jonathan Bennett, Locke, Berkeley, Hume: Central Themes, publicado no mesmo ano de An Introduction to Western Philosophy (cf. Bennett: 1971, 1-25; 124-134). Seja como for, inevitavelmente, outras historiografias do tempo, mesmo as que presumiam não estar ao abrigo do paradigma linguístico, não podiam, quase inevitável ou inexoravelmente, deixar de sofrer a sua influência. Como objectei em relação às aplicações do paradigma da tradição do empirismo, recordando algumas ilações tiradas por M. Ayers (Ayers: 1993, 1-10), o fundamental, para esse paradigma, não é algo que possa ser, substantivamente, discutido com (sublinho) a filosofia do próprio Locke, mas a partir dela (volto a sublinhar), na perspectiva justamente desse horizonte a que me referi.

No documento A herança de Locke (páginas 48-50)