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Observações finais: da nova historiografia de Locke (M Ayers)

No documento A herança de Locke (páginas 54-61)

e a filosofia analítica

4. Observações finais: da nova historiografia de Locke (M Ayers)

Que o estudo e a crítica da hermenêutica de Locke feita ao abrigo deste ou daquele paradigma analítico (o da tradição do empirismo, o linguístico ou o semântico) são essenciais para se poder pensar, hoje em dia, os pressupostos, natureza e alcance de uma nova historiografia a respeito do autor do Essay, é algo bem patente na introdução de Ayers ao seu Locke: Epistemology and Ontology. Aí, debate-se o autor, de maneira geral, com aquela mesma problemática meta- filosófica a respeito da interpretação em história da filosofia que Rorty tinha configurado em Philosophy and the Mirror of Nature e, sobretudo, no artigo “The

Historiography of Philosophy: Four Genres”. Nesse livro, cinco anos anterior a este artigo, Rorty tinha posto em evidência a impossibilidade aparente de acedermos ao verdadeiro texto de um filósofo, como seria o caso do Essay, e de dirimir em qualquer instância o consequente conflito de interpretações, concluin - do daí que as únicas saídas, sem complexos, consistiriam em reconstruir, a partir da nossa própria problemática filosófica hodierna, o contexto histórico que serve de pano de fundo a um tal texto, e, a esta luz, reconstruir filosofica mente o texto ele mesmo. Se, pois, a filosofia analítica contemporânea tem como cerne dos seus questionamentos a teoria da significação, não nos deve repugnar de modo algum projectar esta na história da filosofia e, deste ponto de vista, reinterpretá-la consis ten temente. No artigo citado, que aparece na mesma colec tânea do artigo de Ayers, Rorty, sempre insistindo nas vantagens da teoria da reconstrução, suavizou e alargou a sua concepção da historiografia filosófica, incluindo nesta, praticamente ao mesmo título que essa teoria, quer uma historiografia de con - texto quer, como ele lhe chama, uma “historiografia de opinião” (Rorty: 1991). Tudo isto significa, como mostrámos noutro lado (Ribeiro: 1999, 1ª Parte), que o grande filósofo americano abandonou a ideia de que é impossível aceder ao verdadeiro texto de um filósofo.

Por que é que não seria possível concretizar tal um objectivo?, pergunta-se Ayers na introdução acima referida tendo em mente o Essay. Rorty (o autor de

Philosophy and the Mirror of Nature) só terá alguma razão na medida em que se

assuma que a interpretação é um assunto de filósofos, não de historiadores ou do historiógrafos, e se parta do pressuposto, portanto, que estes últimos têm inevita - velmente que adoptar, por esta ou aquela razão fundamental, o papel dos primei - ros. A razão seria o “truísmo” de que a significação do que Locke, no seu próprio contexto, nos diz no Essay, como a significação em geral, só pode ser compre en - di da, em última análise, a partir do nosso contexto contemporâneo de interpre ta - ção, e que, portanto, tem de ser reconstruída (Ayers: 1993, 4-5). Mas, o reconhe - ci mento da temporalidade e especificidade deste último contexto, argumenta Ayers, implica, obviamente, o da apercepção das particularidades e contingências do primeiro com maior ou menor complexidade, e, portanto, o círculo hermenêu - tico de Rorty, se bem que pertinente, é filosoficamente inofen sivo. A interpre - tação do Essay, quer dizer, do que Locke “pretendeu” dizer no seu contexto histórico e filosófico peculiar, obriga sempre a uma reconstrução das sua intenções e pontos de vista, e tanto estes como aquelas são temporalmente deter minados não pela forma como foram interpretadas posteriormente, mas, em última análise, por esse mesmo contexto e respectivos antecedentes.

Uma vez dito isto, não se segue que seja completamente impossível “pôr Locke a falar com a filosofia contemporânea” e a problemática da significação em particular, como queria a certa altura Rorty. Como Ayers observa:

… every particular hypotetical question concerns the outcome of some actual, given situation in supposed or postulated circumstances. But to suppose Locke’s being faced with Quine’s principle of the indeterminacy of translation or with quantum mechanics is to postulate circumstances too far from the given situation. The suppositions takes us far from the thought of the Essay for there to be any determinate or persuasive answer to the question, ‘What would Locke have said aboutr these things?’ To give an answer would be to play a game with no rules [s. n.]. That is not to say that it will be in principle impossible to find a persuasive answer to any such question asked from the point of view of the present, but how far it is possible will depend on the distance between the present and the past in the relevant respect. (Ayers: 1993, 5)

Parte destas conclusões, no que concerne à historiografia analítica, já tinham sido avançadas por Ayers, alguns anos antes do seu livro, em “Analitical Philosophy and the History of Philosophy” (Ayers: 1978). Na verdade, a reabilita ção da historiografia lockeana, a que ele procede, enquadra-se num amplo movimento de reabilitação historiográfica dos autores da tradição analítica em filosofia, como é o caso de Frege (cf. Sluga: 1980), de Russell (Griffin: 1991) ou de Wittgenstein (Sluga e Stern: 1996). Um ponto essencial, em todos os casos, é a necessidade de compreensão desses autores no seu contexto próprio, indepen dentemente dos modelos analíticos em filosofia e das respectivas concepções da historiografia filo só - fica. Essa reabilitação trouxe-nos uma representação inteiramente nova e original dos mesmos, tornando-os irreconhecíveis à luz das representações analíticas propria - mente ditas. Este facto é tanto mais notável, desde logo, quanto é certo que, como vimos ao longo desta comunicação, tais representações constituem pode ro sos instrumentos de interpretação, que, em rigor, pertencem à filosofia, não à histo rio - grafia enquanto tal. Por outro lado, admirável é ainda que os protagonistas desta reabilitação da historiografia filosófica, como é o caso de Ayers, sejam homens que conhecem e respeitam a filosofia analítica, estando conscientes das suas enormes potencialidades e vanta gens hermenêuticas neste ou naquele aspecto.

Concluindo, retomando novamente Ayers e como sugeri noutros lados a respeito da historiografia analítica (cf. Ribeiro: 2001, 131-143; 2004), uma particularidade óbvia das leituras da história da filosofia por parte desta, é o seu carácter manifestamente meta-histórico e meta-filosófico. Quanto a Locke, o

tes do desenvolvimento da própria filosofia analítica, quer dizer, é reconstruído à luz dessas premissas e pressupostos, porque, como nos é sugerido ao longo do século passado, de Ayer a Rorty, não haverá, de maneira geral, outra forma de o podermos ler hoje em dia. Vimos que foi justamente esta conclusão fundamental que conduziu certos teorizadores da historiografia filosófica no âmbito analítico, como Rorty, às ideias de “reconstrução histórica e racional” e “reconstrução filosófica” (Rorty, 1991: 51 e ss.). Uma das implicações essenciais de tal postura metodológica a respeito de Locke, como se pôde compreender ao longo desta comunicação, consiste em procurar equivalentes na problemática lockeana da problemática analítica hodierna, sejam eles o problema ayeriano da fundação do conhecimento ou o linguístico e semântico da teoria da significação. Outra, a que também já se aludiu, é que um filósofo analítico pode ser “lockeano” sem o saber, ou sem ter necessariamente consciência disso, como acontece com as leituras da história da filosofia analítica proporcionadas por qualquer um dos paradigmas que estudámos. O pressuposto essencial é que as soluções do Essay terão sido confusas, inadequadas ou inconsistentes. É contra um tal pressuposto que sauda - velmente reaje a nova historiografia de Ayers.

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