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Locke e Voltaire: a literatura ensaística em defesa da tolerância

No documento A herança de Locke (páginas 144-151)

do pensamento pedagógico de John Locke

1. Locke e Voltaire: a literatura ensaística em defesa da tolerância

Decorridos trinta anos do falecimento de Locke, Voltaire, após exílio em Inglaterra, publica em França as suas Lettres Philosophiques (1734), as quais, entre outras intencionalidades, pareciam ter um objectivo muito concreto: o de dar a conhecer Inglaterra como um dos únicos países europeus onde o progresso, a liberdade e a tolerância faziam caminho.

Tomando este acontecimento como uma referência importante ou como um facto histórico, podemos, talvez, questionar os resultados do esforço filosófico e militante de Locke em prol da tolerância religiosa se, antes, lermos atentamente o que nos diz Voltaire “sobre a religião anglicana”, título que deu à sua Carta V.

Eu e os alunos somos fortemente abanados pelas surpreendentes afirmações que abrem esta carta: “É aqui o país das seitas. Um inglês, como homem livre, vai para o céu pelo caminho que lhe agrada”. Contudo, esta realidade de uma liberdade religiosa quase absoluta é, logo de seguida, desmentida: não se pode ter um cargo, por exemplo, se não se for membro da Igreja de Inglaterra.

Conta-nos, então, Voltaire a história de como a hegemonia desta religião se foi instalando na Inglaterra, no País de Gales e na Irlanda, isto é, com que medi - das, com que truques; como “conviveram” as duas grandes tendências opositoras político-religiosas; os whigs e os tories; como funcionavam os órgãos eclesiásticos

na sua relação com o poder político; o que fez o poder político da altura, contro - lado pelos whigs, para diminuir a importância do episcopado, ou mais concreta - mente, como esvaziou, em muitos aspectos, o poder político religioso (i.e. o poder religioso que dominava o político). Para ilustrar estas asserções, Voltaire refere-se ao juramento a que os bispos, com assento na Câmara Alta, eram obrigados a prestar ao Estado, promovendo-se assim a lei civil relativamente à lei religiosa.

E, focando depois a sua análise no ponto de vista dos costumes, Voltaire refere como o recrutamento do clero anglicano, diferentemente do francês, obedecia a um conjunto de exigências, tais como: grau de instrução académica, idade com que eram chamados à responsabilidade dos cargos religiosos, mérito da carreira que antecedia o chamamento, o casamento, etc.

Enfim, o que Voltaire sublinha nesta carta, aparentemente bastante indul - gente com a igreja anglicana, é: primeiro, como esta igreja soube retirar poder às múltiplas seitas existentes e, se isto não é um facto em si mesmo louvável pelo menos o processo de hegemonia é feito sem as proibir abertamente, ou perseguir intolerantemente; segundo, como o Estado soube anular a influência do poder religioso, obrigando os bispos a cederem à autoridade parlamentar em prejuízo claro da autoridade apostólica. De resto Voltaire, ao citar Lord B, diz-nos que segundo este, a lei civil faz cidadãos, enquanto a lei divina serve e faz tiranos.

Mas a análise da religiosidade do povo inglês, aliás começada nas Cartas dedicadas à seita dos Quakers, só se completa na Carta VI, Sobre os presbiterianos, igreja que se instalara em toda a Escócia. O autor acaba por traçar as diferenças entre anglicanos e presbiterianos, comentando que apesar de serem estas as duas seitas religiosas dominantes na Grã-Bretanha, e cito, “todas as outras são aí bem- vindas” (pp. 88-89). E a conclusão de Voltaire tem tanto de interes sante como de subversivo: se em Inglaterra existisse unicamente uma religião, teríamos lá, pela certa, um regime déspota; se existissem apenas duas, aniquilar-se-iam uma à outra; mas como existiam trinta, todas viviam contentes e em paz.

Após estas considerações, poderemos recuar um pouco no tempo e esboçar, ainda que em linhas muito gerais, o processo histórico que conduziu a esta liberdade religiosa. Faremos, então, o que normalmente se designa por “con tex - tua lização” de um autor ou de uma obra. Não nos cabe aqui aprofundar esta tarefa escolar, mas tão-só pontuar a nossa preocupação de compreendermos as circuns - tâncias que conduziram à promulgação do Toleration Act em 1689, lei que instituiu, após anos e anos de lutas fratricidas, a liberdade religiosa. Como se sabe a lei da tolerância apenas foi aprovada porque, por um lado, visava um número reduzido de pessoas (Baptistas e Quakers) e, por outro, aparentava ser um instrumento

legal temporário. O Toleration Act constituía uma espécie de anexo de uma proposta de lei que, à luz do ideal de concórdia, tinha por objectivo favorecer o entendi - men to entre anglicanos, presbiterianos e independentes, lei essa que não foi aprovada. A Lei da Tolerância entra, assim, em vigor de uma forma algo acidental. Contudo, o modo como a lei entra em vigor não invalida o mérito da longa polémica travada no seio do povo inglês na defesa da tolerância por parte daqueles que já a visionavam e, sobretudo, a sua persistência, ao longo de décadas, para a incrementarem.

Após tudo isto, estamos todos bem mais perto da problemática da tolerância que, com tanto empenho e profundidade, John Locke se ocupou. Nesses tempos difíceis de divergência acérrima entre a política da concórdia e a política da tole - rân cia, o nosso filósofo, em exílio na Holanda, escreveu a sua Carta sobre a Tolerância. Locke, homem de acção conspirativa e de ideais revolucionários, foi um filósofo que hoje poderemos apelidar de moderado, no melhor sentido da palavra: empirista sem desacreditar a razão, antiautoritarista e crente sem fanatismo. Com efeito, defendeu a possibilidade de um conhecimento demonstrativo da existência de Deus. Esta demonstração que conduz à aceitação da revelação divina constitui uma das temáticas do Ensaio sobre o Entendimento Humano (cap. III do Livro I).

Assim compreende-se que na Carta sobre a Tolerância a sua crença em Deus surja como um pressuposto implícito, tão importante como o são outros que aparecem mais explicitamente formulados, a saber: a autonomia radical da cons - ciên cia em matéria religiosa, as leis civis como expressão da racionalidade e da liberdade da sociedade civil, as leis civis como garantia dos direitos naturais dos indivíduos e, por último, como corolário destes pressupostos um outro – o da necessidade da separação da Igreja e do Estado.

Nesta ordem de ideias, Locke define tolerância religiosa, primeiro, como princípio fundamental da Igreja, segundo, como um direito civil inalienável.

Os argumentos que sustentam a tese segundo a qual é obrigação do Estado promulgar “uma lei de tolerância mediante a qual (…) ninguém deveria ser constrangido pela lei, ou pela força, no campo religioso” (p.118) são claros e consistentes.

Em primeiro lugar, clarificam, sem margem para qualquer dificuldade, a diferença de natureza entre Estado e Igreja. O Estado é definido como uma asso - ciação necessária dos homens e tem como único fim conservar e promover os bens civis. Ao contrário, a Igreja é uma sociedade livre e voluntária que visa, em últi - ma análise, a salvação da alma. Se a natureza destas instituições é diversa também é diversa a natureza das leis que as regem: as leis do Estado são universais e,

consequentemente, coactivas, ao passo que as da religião apenas se podem tra du - zir em conselhos, exortações e admoestações e, em casos limite, na excomunhão.

Em segundo lugar, estabelecem, como paradigma ético, a autonomia radical da consciência relativamente às questões da fé, sublinhando a liberdade do entendimento humano que nenhuma força exterior pode constranger. A adesão a uma religião tem de ser um acto de inteira liberdade, pois para mudar uma opinião na alma é necessário uma luz que não provém de qualquer repressão externa. Sabemos de que modo Locke releva os limites do conhecimento humano e como evidencia a contradição que se produz entre o fanatismo/dogmatismo e a natureza da nossa razão. E é exactamente esta contradição que permite estabelecer a equivocidade dos conceitos de ortodoxia ou de heresia. De onde conclui que a intolerância em religião vai tanto contra a natureza da fé como contra a natureza da razão.

Em terceiro lugar, os seus argumentos permitem sustentar um modelo de Estado e/ou de governação que salvaguarde uma autonomia relativa das cons ciên - cias em matéria civil e política, ou seja, que pugne pelas liberdades individuais que, aliás, só estão garantidas se todos se abrigarem sob leis universais, mesmo admitindo como inerente ao sistema o surgimento de conflitos entre as consciên - cias individuais e o poder civil.

Em consequência, Igreja e Estado são duas instituições sem laços comuns, com esferas de acção absolutamente distintas.

Será interessante, chegados a este ponto, perceber em que termos Locke e Voltaire confluem ou não.

Ambos os autores consideram que apenas existe um tipo de situação que pode justificar legitimamente que o Estado interfira na Igreja. É quando a actua - ção desta prejudica o bem comum. Ou seja, o que é prejudicial à cidade merece punição, mesmo que o prejuízo se faça em nome de uma religião. Locke afirma: “ninguém, nenhuma igreja e até nenhum estado têm, pois, qualquer direito de atentar contra os bens civis de outrem…” (p.99). E Voltaire, no capítulo XVIII do seu Tratado, dá vários exemplos de práticas fanáticas que violam as leis do reino e pelas quais, então, os seus autores deverão ser incriminados (p. 123).

Locke faz derivar o Estado do direito natural, facto que, simultaneamente, lhe confere um estatuto moral, na medida em que o seu principal objectivo é o aperfeiçoamento dos direitos naturais. Em concordância, Voltaire, no cap. VI do

Tratado, analisa de que modo a intolerância não respeita o direito natural nem,

portanto, o direito humano. Ao enunciar o princípio supremo do direito humano “não faças o que não quererias que te fizessem” (p. 51) demonstra, sem grande

retó rica, que não é possível matar seja quem for porque esse seja quem for não crê como eu ou como nós cremos. De onde conclui que o direito de intolerância é absurdo e bárbaro; cito: “é o direito dos tigres, e é bem horrível; porque os tigres matam para comer e nós andamos a exterminar-nos por causa de parágrafos” (p. 51). E é precisamente neste contexto, o dos limites da tolerância, que vamos detec tar a diferença fundamental entre estes autores. Para Locke os limites à tole - rân cia não derivam apenas do desrespeito pelos direitos naturais. O seu princípio de tolerância exclui dela não apenas aqueles que põem em causa a harmonia do funcionamento da sociedade civil, como qualquer membro de uma igreja que não reconheça a necessária separação da igreja e do estado, mas também, e cito “os que negam a existência de uma divindade não devem de maneira alguma tolerar-se” (p. 118). E explica porquê: nenhum homem ateu oferece garantias de honrar os seus compromissos. Isto mostra como Locke faz depender, em termos absolutos, a responsabilidade e a moralidade da crença no divino.

Voltaire, no cap. XI, da obra para a qual vimos remetendo (Tratado), é muito claro ao responder positivamente à questão: “será que se pode permitir a cada cidadão que não creia senão na sua razão e que pense apenas o que essa razão, esclarecida ou enganada, lhe dite?” (p.81). E se, para melhor elucidarmos esta questão, recuarmos ao cap. IV os alunos terão a surpresa de ver a filosofia tratada como irmã da religião e, por isso, capaz de desarmar “as mãos que a superstição tinha ensanguentado durante tanto tempo” (p. 41). Trata-se em ambas as passagens de enaltecer o papel da razão no seu exercício de esclarecimento: além de fortale cer a virtude e de inspirar a indulgência, mantém as leis como nenhuma outra força o faz. Enfim, Voltaire subscreve toda a teoria lockiana em defesa da tolerância, mas é incondicionalmente mais tolerante que o seu mestre.

Enquanto vamos identificando e interiorizando os argumentos que se organi - zam para combater a intolerância religiosa, parece-nos interessante, para além da análise dos exemplos um tanto fictícios referidos por Locke, conhecer, através de Voltaire, um caso brutal e real de intolerância – a condenação de Jean Calas – caso que é relatado em alguns dos capítulos do seu Tratado sobre a Tolerância.

O modo como Voltaire o descreve é o de quem emocional e activamente se envolve. E é, por isso, talvez, do ponto de vista pedagógico, o necessário contra- ponto ao discurso filosófico de Locke: racional, rigoroso, argumentativo e demonstrativo, lúcido e estratégico. Nós sabemos que nenhuma destas qualidades que impregnam o discurso filosófico é alheia aos acontecimentos presencialmente vividos, emocionalmente deplorados e com revolta protestados. Não são discursos contrários, mas registam de modo diferente a vida e o que dela se pensa. Para

estu dantes do ensino secundário são discursos que apoiam a compreensão de reali - dades como estas. Todo o caso da família Calas é repugnante, e todo ele mostra a justeza das teses de Locke.

Assim o desafio pedagógico/didáctico que leva à apreensão do tema da tole - rân cia religiosa em Locke faz-se num vaivém entre este pensador e Voltaire, num vaivém que oscila entre 40 a 50 anos de história e entre a realidade de dois países: um que sofre ainda a intolerância sustentada numa cega superstição (França) e outro que já decretou a tolerância, que a vive de algum modo, e não alheio a isso, com toda a certeza, a pensou (Inglaterra).

Considerações finais

Quando, finalmente, procedemos a uma apreciação destas abordagens da tole rância, reconhecemos a afirmação de alguns valores à volta dos quais se configurou a contemporaneidade.

A denúncia e a condenação dos dogmatismos, aliadas à defesa da tolerância religiosa, são atitudes julgadas como o embrião da luta pelos direitos humanos. Digamos que a conquista da liberdade religiosa se revela como a primeira etapa de uma maior conquista – a da liberdade de expressão em qualquer domínio em que a razão humana se aplique.

Não será exagerado ver nestes autores os precursores da noção actual de cida - dania. Com efeito, a defesa dos direitos naturais como direitos fundamentais do Indivíduo aparece hoje consagrada na Constituição de cada estado democrático.

Por outro lado, a racionalização do papel do Estado implicou também a racionalização da religiosidade, ou mais especificamente do cristianismo, e vice- versa: a defesa da total autonomia do homem em matéria de fé fez-se pela deslocação da autoridade da igreja para a autoridade do evangelho e deste para a interpretação pessoal, obrigando o Estado a assumir uma neutralidade absoluta relativamente à vivência religiosa dos seus membros.

Estes autores e estas obras, que condenaram tão veementemente a intolerân - cia religiosa, legaram-nos a todos, desde então, a responsabilidade do aperfeiçoa - mento das múltiplas formas de tolerância.

Locke apresenta-nos um projecto universal de sociedade – uma sociedade tolerante. A sua constituição pressupõe o uso racional da liberdade, uso este que, por sua vez, exige que a política se submeta inteiramente à moral. A ética surge, no horizonte lockiano, como o fundamento último de uma sociedade pacífica e progressista.

jec to de sociedade, revela-nos um projecto existencial também universalizável. Tomando a tolerância como um valor, luta contra todos os obstáculos ao seu exercício. Denuncia a aliança promíscua entre as instituições judiciais, políticas e religiosas e age de modo a repor a justiça aos que foram vítimas da intolerância, evidenciando a essência criminosa da acção dos intolerantes.

A este propósito propomos a leitura do desfecho do caso de Jean Calas (cap. XXV do Tratado), caso que motivou profundamente Voltaire a escrever esta obra, onde na pág. 156 declara: “Este meu escrito sobre a tolerância é uma petição apre - sen tada muito humildemente pela humanidade ao poder e à prudência. Semeio um grão que poderá um dia produzir uma colheita. Esperemos tudo do tempo, da bondade do rei, da sabedoria dos seus ministros e do espírito da razão que começa a espalhar por toda a parte a sua luz.”

Não posso assegurar quais os efeitos educativos que a consideração destes ideais produz. Mas acredito que estas reflexões permitem a compreensão e interio - rização de valores que confluirão para o desenvolvimento de um projecto práxico pessoal que, com o tempo, os nossos alunos hão-de clarificar e aprofundar.

Bibliografia

John LOCKE, Carta sobre a Tolerância, Lisboa, Edições 70, 2000.

John LOCKE, Ensaio sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

VOLTAIRE, Lettres Philosophiques, Paris, Librairie Ch. Delagrave, 1910. VOLTAIRE, Tratado sobre a tolerância, Lisboa, Edições Antígona, 1999.

e as partilhas: os casos de Daniel Defoe,

No documento A herança de Locke (páginas 144-151)