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Aplicação da cláusula geral de boa-fé no processo civil, dever de colaboração e

3. DEVERES DE LEALDADE PROCESSUAL, VERACIDADE, BOA-FÉ E

3.4. Aplicação da cláusula geral de boa-fé no processo civil, dever de colaboração e

factum proprium

Ainda, no contexto do estudo do conteúdo ético do processo, cumpre registrar tendência doutrinária desenvolvida nos últimos anos, no sentido da aplicação da cláusula geral de boa-fé no processo civil como fonte criadora dos deveres de cooperação e colaboração e, ao mesmo tempo, como forma eficiente de prevenir e coibir condutas desleais e indevidas dos litigantes.

A boa-fé é norma de conduta universal, qualidade intrínseca do ser humano, que o leva a agir com retidão, de maneira proba e leal em seu relacionamento social, sendo a má- fé um caminho anormal escolhido pelo homem228. Trata-se, portanto, de conceito ético- social albergado pelo direito e que influencia todo o ordenamento jurídico, que tem na presunção da boa-fé um de seus pilares fundamentais.

Conforme entendimento assente da doutrina, a boa fé constitui “sobreprincípio do

ordenamento jurídico, posto que paira por cima dos demais princípios jurídicos, consequentemente condiciona, determinando no espaço e no tempo, sua interpretação”.229

228Rui Stoco ensina que “Estar de boa-fé e agir de boa-fé constituem estados inerentes ao ser humano. Ele nasce puro, ingênuo e absolutamente isento de maldade e perversidade. Em sua gênese, vai se transformando segundo influência dele sobre si próprio e da sociedade em que vive sobre ele, podendo manter sua condição original ou assumir comportamentos decorrentes da influência e da sua conversão. Portanto, a boa-fé constitui atributo natural do ser humano, sendo a má-fé o resultado de um desvio de personalidade.” (STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002).

229RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 31, n. 95, p. 71-87, set. 2004.

Essa influência da boa-fé sobre todo o ordenamento, no caso brasileiro, extrai-se dos próprios postulados da Constituição Federal, que tem na construção de uma sociedade livre, justa e solidária um dos objetivos fundamentais do Estado organizado, elevando assim, ao grau máximo, o dever de cooperação, solidariedade e lealdade entre os cidadãos no trato social.

A doutrina, tradicionalmente, conceitua a boa-fé sob o prisma subjetivo e objetivo. Sob o primeiro, a boa-fé é tida como “o estado de consciência ou convencimento

individual de obrar em conformidade ao direito aplicável”. Já sob o prisma objetivo a boa- fé corresponde a um “modelo de conduta social, arquétipo ou standart jurídico, segundo o

qual cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade.”230

Nos últimos tempos, as transformações da sociedade, a complexidade dos direitos e das relações sociais e os novos conflitos verificados vêm exigindo do direito uma mudança de paradigma, razão pela qual também o princípio da boa-fé, há muito conhecido no direito ocidental, vem tomando cada vez mais contornos de objetividade231.

No direito privado brasileiro essa tendência é manifesta, sendo que a exigência da boa-fé objetiva foi consagrada de maneira inequívoca nos artigos 113, 422 e 765 do Código Civil em vigor e também nos artigos 4º, III e 51, IV, da Lei 80.78/90 (Código de Defesa do Consumidor).

O paradigma da boa-fé objetiva vem estabelecer novos limites para o exercício das posições nas relações jurídicas, vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conformam aos standarts impostos pela cláusula geral.

Nesse sentido, com base nessa cláusula geral, o ordenamento jurídico passa a não mais tolerar o exercício de posições jurídicas, ainda que pelo titular do direito ou da situação subjetiva, quando em detrimento da legítima expectativa e da confiança criada na contraparte ou mesmo diante da relevância do direito material subjacente, buscando proteger um valor mais importante em detrimento de outro, ainda que licitamente exercido232.

230MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999. 231VINCENZI, Brunela Vieria de. A boa-fé no processo civil, cit.

Observe-se que, diversamente do que decorre da teoria da responsabilidade civil, a ideia aqui não é apenas de apenar ou impor ao culpado a reparação do dano, mas sim, sempre que possível, promover a manutenção da relação jurídica, com o aproveitamento dos atos já praticados. Nesse sentido, pode-se citar como exemplo a criação jurisprudencial que, com fulcro na boa-fé objetiva, impede a resolução do contrato por inadimplemento quando verificado o adimplemento substancial ou a responsabilidade pela ruptura injustificada das negociações preliminares233.

No âmbito da atividade jurisdicional, a boa-fé processual também é regra expressa, eis que, como já visto e repisado, proceder com boa-fé é considerado dever das partes e de todo aquele que participa do processo (art. 14, CPC).

Além disso, também no processo civil, a exemplo do que ocorre nos demais ramos do direito, presume-se a boa-fé do litigante na prática dos atos processuais, o que se verifica em diversas normas expressas do ordenamento, como é o caso da presunção de veracidade da declaração de pobreza para fins de obtenção da assistência judiciária gratuita, da presunção de correção do valor atribuído à causa até prova em contrário, dentre outros.

A presunção de boa-fé na prática dos atos processuais, aliás, atende aos postulados da economia processual, já que permite impulsionar o procedimento na confiança da conduta honesta das partes, evitando paralisações desnecessárias quando não há insurgência do outro litigante234.

Por outro lado, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva ao processo tem servido também para fundamentar a existência de deveres acessórios aos litigantes, dentre os quais, precipuamente, o de colaborar, cooperar para a realização dos escopos do processo, por meio de uma conduta processualmente adequada. Nesse sentido:

“O dever de colaboração das partes no processo civil resulta, em última análise, na aplicação da regra da boa-fé objetiva, pois esta, como criadora de deveres acessórios, impõe a cooperação das partes para o fim do processo e a realização dos resultados programados pelo direito. Em suma, não se trata de simplesmente vedar atuações abusivas ou exclusivamente resistentes ao avanço do procedimento: é algo mais, trata- se de uma diligência especial que se deve entender expressamente compatível com a possibilidade de utilizar, de boa-fé, os meios e instrumentos jurídicos que são oferecidos pelo sistema. O que importa

233VINCENZI, Brunela Vieria de. A boa-fé no processo civil, cit., p. 164-167.

234MILHOMENS, Jonatas. Da presunção da boa-fé no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1961. p. 61- 62.

dizer que condutas contrárias a essa diligência especial, mesmo que não tenham o evidente propósito de obstruir a movimentação do processo, revelam a inegável falta de colaboração processual e por essa razão devem ser controladas pelo juiz e apontadas pela parte prejudicada.”235

É também a boa-fé objetiva que fundamenta a inadmissibilidade de comportamento contraditório no processo, ou seja, a aplicação da regra nemo potest venire contra factum

proprium, como expressão do princípio constitucional da solidariedade social e instrumento de proteção a razoáveis expectativas alheias, criadas pelo comportamento anterior do agente (e, no caso do processo, do litigante).

Schreiber, em recente monografia sobre o tema236, explicita serem pressupostos de incidência do nemo potest venire contra factum proprium: (i) o factum proprium, consistente em um comportamento originalmente livre, ao qual o ordenamento jurídico normalmente não atribui efeito vinculante237; (ii) a legítima confiança do outro na conservação do sentido objetivo desta conduta238; (iii) um comportamento contraditório do ponto de vista objetivo, ou seja, objetivamente violador da legítima confiança do outro, independentemente da intenção do agente; e (iv) o dano ou um potencial de dano oriundo da conduta contraditória.

O autor analisa, ainda, diversos exemplos de aplicação prática, pelos Tribunais brasileiros e também pela jurisprudência estrangeira, do princípio do nemo potest venire

contra factum proprium no âmbito processual.

Colhendo, primeiramente, um exemplo nacional, o autor cita a Apelação Cível nº 2.699/97 julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro239, que deixou de ser conhecida em virtude do comportamento contraditório da parte, que houvera pedido, reiteradas vezes, a homologação de laudo pericial que apurou os haveres, em sociedade limitada, de um sócio ora representado por seu espólio, mas que, no entanto, diante da

235VINCENZI, Brunela Vieria de. A boa-fé no processo civil, cit., p. 170.

236SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

237“(...) uma vez que a contradição de um comportamento a que o próprio ordenamento positivo já atribui força vinculante (por exemplo, um contrato ou um negócio jurídico unilateral) atrai por si só uma sanção legalmente prevista, como a responsabilidade obrigacional.” SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit.

238A confiança, nesse aspecto, deve ser analisada do ponto de vista objetivo (independemente de investigação do elemento subjetivo) e de ser legítima, ou seja, deve inexistir norma legal ou contratual que autorize o comportamento reputado contraditório.

239TJRJ, Apelação Cível 2.699/97, Rel. Wilson Marques, 3.3.98, apud SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 226-228.

sentença homologatória do laudo, resolveu insurgir-se por meio de recurso. Diante da frontal oposição entre os dois atos processuais, o Tribunal entendeu inadmissível a interposição do recurso.

Segundo observa Schreiber, situações como a acima descrita resolvem-se, no mais das vezes, pela invocação de figuras como a preclusão lógica, a falta de interesse de agir, etc., no entanto, sem prejuízo, vislumbra-se também de forma subjacente “um inequívoco

venire contra factum proprium”, que poderia ser obstado também pela aplicação direta do princípio da boa-fé objetiva ao processo.

Da experiência portuguesa, o autor extrai um julgado do Tribunal do Trabalho de Santarém240, que rejeitou a arguição de nulidade de citação realizada em ação trabalhista, em endereço diverso da sede social da empresa, local, porém, em que a demandada, diante de provas produzidas pelo demandante, confessou manter para recepção de “outras espécies de correspondências”. A decisão prolatada, não obstante ter aludido à fraude, dolo e má-fé, foi fundamentada, de forma principal, na contradição objetiva entre os dois comportamentos da demandada: alegar nulidade da citação, por não ter recebido citação em seu endereço e, posteriormente, confessar que o endereço em que recebida a citação era por ela mantido, há anos, para fins de recepção de correspondências.

Outro interessante exemplo trazido pelo autor diz respeito ao debate, bastante atual, sobre a possibilidade de empresas públicas e sociedades de economia mista se submeterem à arbitragem. Schreiber, em interessante posicionamento, entende aplicável o princípio do

nemo potest venire contra factum proprium para impedir que tais órgãos possam vir a questionar a validade da cláusula arbitral inserida em contratos por eles próprios assinados com particulares, fundados em argumentos como a indisponibilidade do interesse público, com o escopo de transferir a solução da questão para o Poder Judiciário, ou, pior ainda, anular sentença arbitral já prolatada. Nesse caso, segundo o autor, ao interesse público envolvido se contrapõe outro interesse, também público, que impõe a observância da boa- fé objetiva e o respeito à confiança recíproca no tráfego negocial.

No tocante aos resultados práticos da aplicação do princípio da boa-fé objetiva ao processo, a doutrina analisada sustenta a possibilidade tanto de reparação dos danos

240Tribunal de Relação de Évora, Ag. Soc. 82.97-49C, 18.11.1997, Rel. Des. Alberto da Silva Campinho, apud SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, cit., p. 240-242.

causados aos prejudicados, como, quando possível - o que parece mais eficaz - o uso da boa-fé objetiva para impedir o ato incoerente (ou ao menos seus efeitos)241.

Assim, diante de tudo o que foi analisado ao longo deste capítulo a respeito do conteúdo ético do processo, é de se concluir que os atuais paradigmas do processo e os influxos da visão publicista e cooperativa estão a exigir das partes e de todos aqueles que atuam em juízo uma conduta processual adequada, condizente com a dignidade desse instrumento público de solução de conflitos, e, ao mesmo tempo, do órgão jurisidicional, uma postura mais atenta, participativa e enérgica com relação à identificação e coibição dos comportamentos desleais, desonestos e protelatórios dos litigantes no processo, que tanto obstaculizam o regular trâmite processual e o alcance de seus objetivos. Mais do que isso, o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de arsenal suficiente tanto para a coibição desses comportamentos reprováveis como para o sancionamento do responsável, de sorte a, a um só tempo, educar os jurisdicionados e afastar cada vez mais essa prática tão arraigada no cotidiano forense.

É necessário, contudo, não perder de vista que esse ativismo exigível do julgador na qualidade de diretor do processo não pode transformar o processo em algo ditatorial, nem o exercício desses poderes-deveres do juiz pode se dar ao arrepio das garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa, do acesso à justiça. Como bem pondera Dinamarco a esse respeito, um sistema radical de sanções acabaria produzindo efeito inverso ao desejado, inibindo o litigante bem intencionado e, até mesmo, o expondo aos expedientes abusivos do malicioso242. Daí a necessidade de aplicação da razoabilidade na análise desses comportamentos.

Além disso, toda e qualquer reprimenda ao litigante não pode prescindir da prévia oportunidade de manifestação e, se o caso, produção das provas necessárias ao exercício do seu direito de defesa, cujas razões devem ser devidamente analisadas pelo julgador em decisão devidamente fundamentada.

241Nesse sentido Brunela Vieira de Vincenzi acentua: “parece possível impedir o exercício de posições inadmissíveis, sem cominar sanções ou multas, mas por meio de atos do juiz que impeçam a prática ou a continuidade de determinada conduta da parte, seja por meio de ‘ameaças’, seja com a inversão do tempo no processo, ou até com a inversão de certos ônus (como acontece na revelia) ao litigante que abusa da confiança depositada nele pelo Estado, ou com a perda de direitos processuais como consequência da violação á regra da boa-fé.” (in, A boa-fé no processo civil, cit., p. 172).

3.5. Dever de colaboração no Projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS nº

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