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Deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio

4. DIVISÃO DE TRABALHO ENTRE JUIZ E PARTES NA ATIVIDADE

5.1. Quanto ao juiz

5.1.1. Deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio

A direção “dialogal” do processo impõe que o juiz, agindo ativamente, construa o resultado do processo em coordenação com as partes interessadas - essencialmente o autor e réu, mas incluindo também eventuais intervenientes, litisconsortes e Ministério Público - possibilitando que possam participar dos rumos do processo e influenciar, de maneira efetiva, sobre as possíveis decisões.

Justamente nesse sentido, a doutrina identifica na figura do juiz os deveres de

esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio para com os litigantes284.

O dever de esclarecimento consiste no dever de esclarecer junto às partes qualquer dúvida que surja quanto às alegações, pedidos ou posições exercidas em juízo. Assim, afastando-se de uma postura neutra, formalista e absolutamente fria e indiferente ao resultado do litígio, deve o juiz esclarecer junto às partes qualquer dúvida surgida sobre a pretensão deduzida, sobre determinada alegação fática, sobre a finalidade de determinada prova requerida, sobre a necessidade de oitiva de testemunha localizada fora da Comarca ou do país, sobre a viabilidade de a parte trazê-la à audiência independentemente de expedição de carta precatória, etc.

Uma postura mais interessada e participativa do juiz também é exigível, especialmente, na condução das audiências de instrução, nas quais muitas vezes, pelo que se assiste no cotidiano forense, o ambiente austero, o excesso de formalismo e o uso de jargões forenses e linguagem rebuscada, absolutamente desconhecidas fora do “ambiente jurídico”, atuam como fatores de intimidação das partes e das testemunhas, especialmente as mais humildes, que acabam, muitas vezes, deixando de contribuir como poderiam para o esclarecimento dos fatos e, consequentemente, para o alcance dos objetivos da jurisdição.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth, ao tratarem das questões que dificultam o acesso à justiça, mencionam que:

“procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimidam, como o dos tribunais, juízes e advogados, figuras tidas como opressoras,

284Cf. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, cit., p. 76, SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997. p. 65-67 e COSTA E SILVA, Paula. Acto e processo. Coimbra: Ed., 2003. p. 591.

fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho.”285

Puoli, em apoio ao incremento do diálogo e da proximidade entre juiz e partes, também faz críticas ao excesso de formalismo na postura pessoal e o rebuscamento da linguagem dos juízes. E, consignando que esses fatores nada contribuem para o respeito à Justiça, aos seus magistrados e às suas decisões, assim explica:

“(...) parece certo que muito maior consideração e respeito dos jurisdicionados merecerá o juiz que, independentemente do uso da beca ou de sua autoridade, estiver procedendo com respeito e isenção em face das partes e de suas alegações, ouvindo o dialogando com elas para, a final, conceder uma tutela amparada em critérios de justiça e que tenha eficácia material para, num tempo adequado, produzir os resultados similares aos que teriam sido verificados na hipótese de o direito material ter sido espontaneamente observado.”286

O dever de prevenção, por sua vez, consiste no dever de prevenir às partes de o êxito restar prejudicado diante do perigo do uso inadequado do processo.

A prevenção, pelo que compreendemos, está relacionada de forma mais intensa com a necessidade de oportunizar às partes a correção de eventuais vícios que impeçam o processo de seguir seu rumo natural em direção à solução de mérito, como é exemplo clássico a abertura de prazo para aditamento da petição inicial (art. 284, CPC). A interpretação do dispositivo legal em consonância com o dever de prevenção nos leva à conclusão de que não basta ao juiz apenas oportunizar a manifestação do autor. Cabe-lhe, mais do que isso, apontar efetivamente os “defeitos ou irregularidades capazes de

dificultar o julgamento do mérito”, de molde a propiciar sua correção pela parte.

E nem se diga que essa solução comprometeria a imparcialidade do juiz, pois a efetiva solução do “defeito” ou “irregularidade” cabe com exclusividade à parte, devendo o juiz apenas identificar o defeito e a explicitar a razão pela qual sua manutenção levará à extinção prematura do processo.

Justamente nesse sentido, como exemplo do dever de prevenção, Gonzalez Peres, com apoio na jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, observa que é vedado ao juiz não conhecer de determinada postulação da parte por defeito processual sanável sem

285CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. e Rev. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 24.

que tenha dado oportunidade para a parte saná-lo, o que afronta o direito à tutela jurisdicional efetiva287.

A prevenção também pode ser relacionada ao abuso das posições jurídicas processuais, tema tratado no Capítulo 3 supra, devendo o juiz, como lá dito, sempre que possível, alertar a parte para as consequências de sua conduta processual inadequada, até mesmo como forma de desencorajá-la e coibir o resultado prejudicial à contraparte e mesmo ao Estado.

O dever de consulta, por sua vez, diz respeito ao dever de consultar as partes antes de decidir qualquer questão, permitindo que elas influenciem o convencimento judicial.

Como é sabido, determinadas matérias, dada sua relevância para o ordenamento jurídico e também para o regular desenvolvimento do processo (como são exemplo as nulidades absolutas, a competência absoluta, as condições da ação, os pressupostos processuais, etc.), denominadas “matérias de ordem pública”, são cognoscíveis de ofício pelo juiz, indepententemente de alegação de qualquer das partes.

Sob o viés cooperativo, no entanto, o permanente diálogo judicial entre juiz e partes exige que até mesmo essas questões, uma vez identificadas pelo juiz no processo, sejam previamente submetidas à manifestação das partes, evitando que estas sejam pegas de surpresa, por exemplo, com o encerramento abrupto do processo por questão processual de que não tiveram a oportunidade de se pronunciar.

Hipótese típica diversas vezes citada pela doutrina consiste no reconhecimento da prescrição. Ainda que o CPC possibilite atualmente a extinção do processo de ofício pelo juiz nesses casos (art. 219, § 5º), o CC prevê diversas hipóteses de impedimento, suspensão e interrupção da prescrição, além da possibilidade de renúncia pelo devedor (art. 191 e seguintes). Sendo assim, entende-se mais adequado que o juiz, ao invés de decretar liminarmente a prescrição, proceda, antes disso, a oitiva do autor sobre a matéria, de molde a evitar que seja prolongado indevidamente o trâmite processual, com a natural interposição de recurso dessa decisão.

287PEREZ, Jesús Gonzales, El derecho a tutela jurisdicional. 2 ed., Madris: Civitas, 1989, p. 65-66, apud MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, cit., p. 76.

Além disso, a atual concepção do contraditório impõe o reconhecimento da importância da participação das partes também na apreciação do direito, o que importa uma nova visão sobre o alcance do antigo brocardo jura novit curia.

Como ensina Oliveira288, embora inexista obrigação formal, tampouco constitua ônus da parte, existe um “interesse primordial” em dar conhecimento ao juiz da norma ou da solução jurídica que, segundo seu entendimento, deve ser aplicada ao caso. Até mesmo porque sempre poderá haver o risco de o juiz não aplicar determinada norma jurídica favorável ao litigante ou de não interpretá-la corretamente.

Aliás, ainda segundo o citado professor, o próprio ordenamento processual brasileiro confirma a relevância da colaboração das partes e seu legítimo interesse em aportar subsídios não apenas para o esclarecimento dos fatos, mas também para a valoração jurídica da causa.

Nesse sentido, a intervenção do revel no processo “em qualquer fase, recebendo-o

no estado em que se encontrar” (art. 322, parágrafo único, CPC) é possibilitada, justamente, porque a presunção de veracidade, decorrente da revelia, é aplicável apenas à matéria fática, nada impedindo o revel de se manifestar e de persuadir o julgador com argumentos jurídicos. Além disso, os artigos 300 e 454, § 3º, CPC, ao se referirem, respectivamente, à contestação e às alegações finais, fazem referência expressa à possibilidade de as partes se manifestarem relativamente tanto às questões de fato como às de direito, sendo certo que ambos os aspectos decorrem da exigência do contraditório. E, nas palavras conclusivas de Oliveira:

“a problemática ora abordada não está ligada apenas ao interesse das partes, mas encontra íntima conexão com o próprio interesse público, na medida em que qualquer surpresa, qualquer acontecimento inesperado, só faz diminuir a fé do cidadão na administração da Justiça. O diálogo judicial torna-se, no fundo, dentro dessa perspectiva, autêntica garantia de democratização do processo, a impedir que o poder oficial do órgão judicial e a aplicação da regra iura novit cúria venham a se transformar em instrumento de opressão e autoritarismo, servindo às vezes a um mal explicado tecnicismo, com obstrução à efetiva e correta aplicação do Direito.” 289.

288OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O juiz e o princípio do contraditório, cit., p. 37. 289OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O juiz e o princípio do contraditório, cit., p. 37.

O dever de auxílio, por seu turno, corresponde ao dever de auxiliar as partes na superação de eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou, então, o cumprimento de deveres e ônus processuais.

O dever de auxílio, evidentemente, não impõe e nem autoriza ao juiz que se substitua às partes, ou seus procuradores, nas atividades inerentes e essenciais à defesa dos seus direitos, como a dedução de exceções materiais, pesquisa das fontes de prova, etc.

Esse dever se impõe, no entanto, nas hipóteses em que o acesso à determinada prova ou informação é obstaculizado à parte, seja em razão da negativa de terceiro em fornecê-la (o que autoriza, em certos casos, até mesmo a ordem de busca e apreensão), seja em razão caráter sigiloso do documento ou da informação (o que autoriza a requisição de informações às repartições públicas, nos termos do art. 399, CPC). Exemplo clássico é a requisição de informações à Receita Federal a respeito da existência de bens em nome do devedor, para efeito de penhora em processo de execução.

Puoli, ao tratar da necessidade de uma maior proximidade entre juiz e partes no processo (ou seja, do incremento do diálogo judicial ou, nas suas palavras, do “diálogo cooperativo”290) sustenta que esse tipo de atividade não prejudica a imparcialidade judicial, porque “a imparcialidade está ligada à vedação de favorecimento de uma das partes e não

à provocação e troca de informações (entre o Juiz e as partes) que possa redundar numa melhora da prestação jurisdicional”291.

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