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Dever de colaboração para a elucidação dos fatos

2. DIREITO À PROVA NO PROCESSO CIVIL ATUAL

2.3. Visão tridimensional do denominado “direito à prova”

2.3.3. Dever de colaboração para a elucidação dos fatos

Há ainda um último aspecto, de especial interesse para o nosso estudo e essencialmente relacionado à prova, consistente no dever geral de colaboração com o Poder Judiciário para a elucidação dos fatos.

Esse dever, que tem previsão expressa no ordenamento processual brasileiro, ex vi do artigo 339 do CPC, guarda, por sua vez, relação estreita com o viés publicista do processo e os pressupostos teóricos do chamado “processo cooperativo”, ambos anteriormente estudados, e também com o conteúdo ético do processo, que será abordado no capítulo seguinte.

Como já se disse, se o ônus se caracteriza como uma liberdade de conduta cuja não observância acarreta consequências negativas apenas à parte onerada, já se verifica, desde logo, a sua insuficiência para a qualificação jurídica da prova. Isto se dá especialmente no ambiente de um processo reconhecidamente publicista, já que a lacuna ou a insuficiência probatória, além de prejudicar o êxito da pretensão da parte, também resulta, no mais das vezes, em prejuízo ao interesse público presente no processo.

Nesse sentido, se o resultado da prova produzida no processo é, conforme já dito e repisado, não apenas de interesse da parte, mas também de inegável interesse do Estado- Juiz, poderia se afirmar então a existência de autênticos deveres dos sujeitos processuais em matéria de prova? Afinal, qual o significado da regra legal de colaboração descrita no artigo 339 do CPC?

Em outras palavras, para além do direito (ou poder) probatório constitucionalmente assegurado às partes e dos poderes instrutórios do juiz, e também em razão deste último, poderia se afirmar a existência de um verdadeiro dever de colaboração das partes no âmbito probatório? Em caso positivo, qual seu conteúdo e extensão no processo civil brasileiro?

Em que pesem as dificuldades que cercam o estudo da questão, que não são poucas, em nosso entender a resposta é positiva, sendo certo que o alcance e as limitações desse

dever - que é tanto das partes, como também do juiz, e mais, de todo aquele que participa do processo - será explicitado nos Capítulos 5 e 6 de nosso estudo.

Por ora, cumpre, desde logo, consignar que a doutrina tradicional, tanto nacional como estrangeira, sempre pareceu refratária à ideia de que a produção da prova pudesse ser tida como um dever da parte, de modo que a sua não observância pudesse acarretar a imposição de sanção150. Essa doutrina parte de uma perspectiva liberal do processo para afirmar que esse dever seria incompatível com o princípio dispositivo.

Aliás, como registram Cintra, Grinover e Dinamarco, parte da doutrina mais tradicional manifesta-se, inclusive, abertamente contrária ao princípio da lealdade no processo civil, por considerá-lo inquisitivo, contrário à livre disponibilidade da parte e até mesmo “instrumento de tortura moral”151.

Todavia, como ensina Yarshell, diante do influxo publicista e da ênfase dada mais recentemente ao conteúdo ético do processo, o tema da prova – embora sem se desconectar do ônus - acabou se conectando, no âmbito doutrinário e mesmo em alguns sistemas legislativos, também à ideia de dever, que ora se apresenta como um “dever de colaboração” ou de “cooperação”, ora se revela mesmo como um verdadeiro “dever de veracidade” atribuído às partes. E, essa ideia de dever no âmbito probatório se associa ao princípio de lealdade, probidade e moralidade, regulador da conduta não apenas das partes, mas de todos os sujeitos da relação jurídica processual, cuja violação caracteriza abuso do direito processual e litigância de má-fé, ensejando sanções152.

No ordenamento processual civil brasileiro, é fato conhecido que as reformas processuais havidas nos últimos anos, em sua grande maioria, trataram de robustecer o aspecto ético do processo, impondo uma série de deveres comportamentais às partes e seus procuradores, e reforçando as sanções decorrentes de sua inobservância. E, dentre os deveres impostos aos sujeitos processuais, previstos no artigo 14 do CPC, destacam-se,

150Nesse sentido: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Trad. Paolo Capitanio; com anotações Enrico Tullio Liebman. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000. v. 2, p. 374; CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile, cit., v. 1, p. 53 e ss; CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância, cit., p. 320; entre outros.

151GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, cit., p. 78.

152YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, cit., p. 150. O autor ainda prossegue em seu pensamento afirmando que essa mesma ênfase ao conteúdo ético do processo inspirou em grande medida a recente reformulação teórica das regras de distribuição do ônus da prova, denominada de “cargas dinâmicas”, que a atribui a quem tem melhores condições substanciais de obtenção e produção, considerando-se a posição dos litigantes e o acesso às provas relevantes.

especialmente, o de “expor os fatos em juízo conforme a verdade” (inciso I), “não formular

pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento” (inciso III) e

“não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito” (inciso IV).

Ou seja, no que se refere especificamente às partes, embora claramente imbuídas do objetivo de convencer o juiz de suas alegações com vistas a obter êxito, os deveres de colaboração, lealdade e probidade as obriga a apresentar os fatos em juízo conforme a verdade, bem ainda a se portarem de forma a cooperar com o Estado-Juiz na solução da lide.

A dificuldade reside em identificar, justamente, o conteúdo e alcance do dever de colaboração no que se refere à instrução probatória, considerando-se a amplitude do direito de defesa assegurado constitucionalmente aos litigantes. Ou seja, em matéria de prova, qual o alcance do dever de colaboração fixado às partes e quando se pode ter caracterizado o abuso do direito e aplicadas eventuais sanções pela litigância de má-fé? Até onde se pode exigir das partes que tragam aos autos alegações e provas que eventualmente desprestigiem sua própria tese defendida no processo? Essas questões serão enfrentadas nos capítulos seguintes deste estudo.

Por ora, tomando como pontos de partida a instrumentalidade, o viés publicista e, ainda, as premisssas teóricas e as bases constitucionais do denominado “processo cooperativo”, o que podemos desde logo afirmar, com base em prestigiosa doutrina, é que o comando do artigo 339 do CPC não constitui mera exortação para as partes e terceiros, nem tem mero conteúdo ético ou moral. Nas palavras de Marinoni e Arenhart:

“a ratio essendi dessa previsão é evidente: se o Estado deve solucionar o conflito de interesses com a finalidade de aplicar o direito – sendo esse, também, o objetivo último do Estado-jurisdição -, a coletividade deve ministrar meios (de forma mais completa possível) para que a decisão jurisdicional seja a mais adequada. Daí resulta que o dever de colaboração é inerente ao monopólio da jurisdição. Demais disso, não há como esquecer que esse dever decorre do dever geral de sujeição ao poder do Estado. Afinal, se todos estão submetidos ao poder estatal, igualmente estão subjugados pela jurisdição, de forma a estarem constrangidos a colaborar com o Estado para a ‘descoberta da verdade’”153

Até mesmo porque, como já se ressaltou, num processo de cunho publicista e direcionado a uma postura mais cooperativa entre seus sujeitos, a instrução probatória é entendida como fase de “busca coletiva” pelo esclarecimento dos fatos, sendo a regra legal de distribuição do ônus da prova caminho subsidiário, a ser utilizado apenas quando frustrada a atividade probatória das partes e do magistrado, não servindo simplesmente de liberação aos sujeitos processuais ou mesmo ao próprio Estado-Juiz de seus respectivos ônus e deveres.

Investigando de forma aprofundada o assunto, Yarshell lembra que, nos processos civis que versam sobre direitos indisponíveis, a superação da falta de colaboração de qualquer das partes no esclarecimento dos fatos não se pode dar mediante o recurso à eficaz técnica da confissão ficta, ligada ao conceito de ônus, e que pode ser empregada diante da ausência de contestação (revelia), recusa ao depoimento pessoal, recusa à exibição de documentos, dentre outros exemplos. Nesses casos, citando as lições de Marinoni e Arenhart, Yarshell admite o emprego de medidas coercitivas ou mesmo de sub- rogação contra as partes ou mesmo terceiros, a fim de suprir sua falta de colaboração, o que parece confirmar a existência de autênticos deveres das partes em matéria de prova154.

Yarshell, ainda, ao defender a possibilidade de antecipação da prova, no processo civil brasileiro sem o requisito da urgência, traz importantes reflexões no que se refere à correlação existente entre o dever de colaboração (e, especialmente, o dever de veracidade) e o momento de constituição da prova.

Nesse sentido, destaca que na perspectiva dos sistemas de civil law, que não prestigiam a formação da prova de maneira antecipada, reservando-a para a fase porsterior de instrução, carece de maior respaldo jurídico e ético exigir das partes um dever de veracidade sob o prisma objetivo. Até mesmo porque entender contrariamente importaria reconhecer como litigante de má-fé todo aquele que sucumbisse no processo, o que é inadmissível.

Contrariamente, nos sistemas de common law, em que as partes figuram como protagonistas exclusivos na tarefa de propor e produzir provas, o dever de veracidade se impõe de forma direta às partes, notadamente em razão da exigência de produção antecipada das provas, com a apresentação de elementos na fase preliminar do discovery, no direito norte-americano, ou da disclosure, no direito inglês.

154YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, cit., p. 178.

Com efeito, a discovery ou disclosure consistem em uma fase preliminar e extrajudicial de investigação e levantamento de provas (pre-trial), prevista nos países que adotam o sistema da common law, na qual as próprias partes, por seus advogados - e sem qualquer interferência ou participação do órgão judicial - realizam uma série de diligências para obtenção de provas e esclarecimento dos fatos controvertidos, visando a encontrar evidências, delimitar questões, evitar surpresas e perpetuar testemunhos para o futuro julgamento. E o resultado dessa produção antecipada de provas permite não apenas a fixação do objeto do litígio, como também orienta a estratégia processual das partes, podendo conduzir até mesmo a composição extrajudicial para pôr fim à controvérsia, eis que as partes já conhecem, de antemão, o arsenal probatório de que se valerá o órgão judicial para a solução do litígio155. Diante disso é que Yarshell defende que:

“a antecipação da prova ou mecanismos de instrução preliminares não apenas permitem uma mais autêntica cooperação das partes como, ainda, se revelam importante instrumento para combater o eventual abuso do processo. Isso ocorre na medida em que se oferecem aos interessados elementos a partir dos quais podem razoavelmente aferir suas chances de êxito.”156

Essas constatações, por outro lado, desmentem a ideia de que o dever de veracidade das partes e o de colaboração seriam incompatíveis com o princípio dispositivo, ou que teriam nascido sob a perspectiva de Estados totalitários e antiliberais, o que sempre motivou parcela da doutrina nacional e estrangeira a rejeitá-los. Nesse sentido:

“Nota-se, portanto – e não sem alguma perplexidade – que um sistema dito liberal acaba sendo mais rigoroso em matéria ética do que os sistemas que poderiam ser qualificados como intervencionistas de civil

law; que, embora preocupados em reforçar os poderes de instrução do juiz, acabam talvez se descuidando do controle da conduta das partes. Em boa medida, o modelo lá adotado parece ser ao menos coerente com a idéia de respeito ao órgão judicial e as respectivas decisões judiciais, ali superlativamente valorizadas”157.

155PITT, Gioconda Fianco. Dever de veracidade no processo civil brasileiro e sua relação com o instituto da Discovery no processo norte-americano da common law. In: KNIJNIK, Danilo; CARPES, Artur Thompsen (Coords.). Prova Judiciária: estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livr. do Advogado Ed., 2007. p. 121-126.

156YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, cit., p. 180.

157YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, cit., p. 184.

Não obstante, mesmo no ordenamento jurídico brasileiro, que não adota como regra a possibilidade de produção antecipada de provas (reservando-a para as situações de urgência), o professor reconhece exemplos do dever de avaliação da prova pré-constituída, o que se insere nos deveres de veracidade e também de colaboração. São eles: a proibição da parte se contrapor à literalidade da prova, dando ensejo a eventual aplicação de sanções (artigo 14, incisos I e III e artigo 17, II, do CPC), a isenção de custas e honorários ao réu de ação monitória que der cumprimento ao mandado inicial, reconhecendo a existência da dívida diante do documento apresentado pelo autor (artigo 1.102-C, § 1º, do CPC) e, ainda, de forma análoga, a redução da verba honorária pela metade em caso de pagamento integral do débito, no prazo de 3 dias, nas execuções fundadas em título extrajudicial (artigo 652-A do CPC, inserido pela Lei 11.382/2006).

Pelo exposto, o que se pode concluir nesta fase de nosso estudo é que a existência de autênticos deveres em matéria de prova (como os de colaboração e de veracidade) guarda relação com o conteúdo ético do processo e com as bases teóricas e constitucionais do processo chamado cooperativo, deveres esses que se impõem não somente às partes e ao juiz, mas a todos aqueles que integram a relação jurídica processual.

Não se pode deixar de ponderar, por outro lado, que essa exigência não pode importar violação a outros relevantes valores constitucionais, essencialmente ligados ao Estado Democrático de Direito, como são o da liberdade, da privacidade, da intimidade, do sigilo, da dignidade da pessoa humana, dentre outros.

Nesse sentido, se não se pode exigir das partes a produção espontânea de provas contrárias a seus interesses, também não se pode deixar de reconhecer o dever das partes e também de terceiros de expor os fatos conforme a verdade e de portarem de forma a cooperar com o Estado Juiz na produção de toda e qualquer prova por ele reputada imprescindível à solução da lide (como é o caso de apresentação de documentos exigidos pelo juiz, submissão à perícia médica, etc.).

E, na inércia, o ordenamento jurídico autoriza a imposição de diversas espécies de sanções lato sensu aos litigantes, que abarcam desde consequências processuais desfavoráveis, até a aplicação de sanções pecuniárias, medidas coercitivas ou até mesmo sub-rogatórias pelo juiz, tudo a depender da situação peculiar de cada caso, como será tratado nos Capítulos 5 e 6 adiante.

Em nosso entender, portanto, a antiga visão da prova como simples ônus da parte deve ser substituída por uma visão tridimensional do instituto, que se revela como ônus das partes, como poder do juiz e direito constitucional das partes, e, ainda, como projeção do dever geral de colaboração com o Poder Judiciário, sendo que todas essas concepções da prova encontram assento constitucional e infraconstitucional em nosso ordenamento jurídico.

3. DEVERES DE LEALDADE PROCESSUAL, VERACIDADE, BOA-

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