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Distribuição do encargo probatório momento de inversão do ônus da prova

4. DIVISÃO DE TRABALHO ENTRE JUIZ E PARTES NA ATIVIDADE

5.1. Quanto ao juiz

5.1.3. Distribuição do encargo probatório momento de inversão do ônus da prova

A questão do ônus da prova, já tratada no Capítulo 2, item 2.3.1 supra, está diretamente relacionada às consequências da eventual lacuna probatória verificada no processo. Assim, por meio de regras preestabelecidas, a lei processual determina qual das partes arcará com as consequências da insuficiência probatória caso o julgamento tenha que ser realizado com base na regra de distribuição do ônus da prova.

Em regra, cabe ao autor produzir prova dos fatos constitutivos de seu direito e ao réu, por sua vez, compete provar os fatos modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor, quando alegados (art. 333, CPC).

Há casos, no entanto, em que essa regra de distribuição do ônus da prova é invertida pela própria disposição da lei (inversão legal), tal como ocorre na hipótese do

294Daniel Mitidiero, nesse sentido, refere-se a uma “comunhão cooperativa para a seleção do objeto da prova”. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos, cit., p. 124.

artigo 38 do CDC (Lei 8.078/90), que impõe ao fornecedor-anunciante o ônus da prova da veracidade e correção da informação publicitária veiculada. Também é possível às partes, convencionalmente, atribuirem-se de modo diverso o ônus probatório (inversão

convencional), desde que o litígio não verse sobre direitos indisponíveis, nem a inversão torne excessivamente difícil o exercício da pretensão (art. 333, parágrafo único, CPC).

Em todos esses casos, o litigante já tem conhecimento, desde o início do litígio, do ônus que lhe recai, tendo plenas condições de guiar sua conduta processual de acordo com essa diretriz. O mesmo não acontece, no entanto, na hipótese de inversão judicial do ônus da prova, tal como previsto no artigo 6º, VIII, do CDC (Lei 8.078/90).

Com efeito, a Lei 8.078/90, com a finalidade de equilibrar as relações de consumo e facilitar a defesa do consumidor em juízo, dada sua reconhecida vulnerabilidade, prevê a possibilidade de o juiz determinar, no caso concreto, a inversão do ônus probatório no processo civil, quando verificar: a verossimilhança da alegação e a hipossuficiência do consumidor “segundo as regras ordinárias da experiência” 295.

A inversão do ônus probatório, nesse caso, não decorre automaticamente da lei, mas, contrariamente, depende de decisão judicial que, por sua vez, deverá ser fundamentada na presença dos requisitos legais autorizadores dessa inversão.

Nesse sentido, entendemos que as partes não podem ser surpreendidas com a inversão do ônus da prova no momento do julgamento, devendo, ao contrário, ser previamente intimadas dessa decisão, e em momento processual que lhes possibilite a produção de provas de suas alegações.

Essa exigência, por sua vez, constitui manifestação do dever de colaboração do juiz na instrução e do viés cooperativo do processo civil atual, que se pauta pela construção do resultado do processo em coordenação com as partes interessadas e sem surpresas indevidas aos litigantes.

A doutrina contrária, que admite a inversão do ônus probatório no momento do julgamento, representada por respeitáveis juristas e acompanhada por expressivos precedentes judiciais, sustenta que essa autorização decorre da própria natureza jurídica das regras de distribuição do ônus da prova. Assim, por se tratar de regra de julgamento, seria aplicável apenas quando esgotadas sem êxito as atividades probatórias, não devendo

295Debate-se a doutrina a respeito da exigência concomitante ou alternativa desses requisitos legais, matéria que, no entanto, extrapolaria os limites do presente estudo, razão pela qual optamos por não abordá-la.

ser cogitada anteriormente a esse momento. Nesse sentido se posicionam os próprios autores do anteprojeto da Lei 8.078/90, representados por Filomeno296, assim como Batista Lopes297, Nery Junior e Andrade Nery298, Fidélis dos Santos299, Pacífico300, dentre outros.

Mattos301, nessa mesma linha de entendimento, defende ainda que não há cerceamento de defesa no caso, nem o fornecedor pode alegar surpresa, já que a possibilidade hipotética de inversão do ônus probatório é prevista em lei, não podendo o litigante alegar desconhecimento. Pelo contrário: ciente dessa possibilidade, deve se empenhar em produzir todas as provas possíveis, sob pena de correr o risco de vir a ser condenado em caso de inversão do ônus.

Dinamarco, ao tratar do tema, apesar de entender que a inversão do ônus, enquanto regra de julgamento, ocorre apenas no momento da sentença, ressalta a importância de o juiz informar as partes no momento da audiência preliminar a respeito da possibilidade de inversão do ônus da prova, como decorrência do due process of law e da exigência de

diálogo que integra a garantia constitucional do contraditório302.

Com a devida vênia, muito embora concordemos inteiramente com as premissas da exigência do diálogo e da transparência das condutas judiciais, acreditamos que essa simples comunicação aos litigantes a respeito da “possibilidade” de inversão do ônus probatório é insuficiente e, na prática, inócua, já que essa possibilidade é decorrente da própria lei, dada a natureza da relação controvertida (relação de consumo).

Parece-nos mais coerente, em função de nosso sistema processual, que a decisão sobre a inversão do ônus da prova ocorra na fase ordenatória do processo - preferencialmente ao ensejo da audiência preliminar, ou, não havendo, por ocasião da

296GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 149-158.

297LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. 298NERY JÚNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código de Processo civil comentado e

Legislação processual civil extravagante. 12. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 723. 299SANTOS, Ernane Fidélis dos. Sistema probatório do processo civil brasileiro. Revista Forense, Rio de

Janeiro, v. 97, n. 355, p. 58, maio/jun. 2001.

300PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no direito processual, cit., p. 160.

301MATTOS, Cecília. O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. 1993. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. p. 161-169.

302Nesse sentido: “A transparência das condutas judiciais é uma inafastável inerência do due process of law e da exigência do diálogo que integra a garantia constitucional do contraditório: o processo civil moderno quer muita explicitude do juiz e de suas intenções, que são fatores indispensáveis à efetividade do justo processo. Por isso, a locução ‘determinará as provas a serem produzidas’ (art. 331, § 2º) inclui a exigência de esclarecer as partes sobre seus ônus probatórios. Esse mero esclarecimento não deve ser prestado em forma de decisão, vale como advertência e convite a participar da instrução probatória, na medida do interesse de cada uma e com a consciência dos efeitos negativos que poderá suportar em caso de omitir-se.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, cit., 6. ed., v. 3, p. 82-83).

decisão saneadora -, devendo o juiz fixar os pontos controvertidos e apreciar a presença dos requisitos legais para a eventual inversão do ônus probatório, com base nas alegações e eventuais elementos probatórios trazidos na fase postulatória, de sorte que as partes iniciem a instrução já cientes de seus respectivos encargos303.

Nesse sentido, aliás, é o posicionamento de outros doutrinadores de renome, tais como Theodoro Júnior304, Carvalho Filho305, Bedaque306, Cruz e Tucci307, Barbosa Moreira308 e Marinoni e Arenhart309. A divergência entre eles está apenas quanto momento exato da inversão, defendendo alguns que seria o da fixação dos pontos controvertidos e outros o admitindo até o encerramento da instrução.

O importante, em qualquer caso, como bem defende Cruz e Tucci310, é que essa inversão ocorra em momento processual em que ainda seja oportunizada ao réu a chance efetiva de se desincumbir do encargo antes inexistente.311. Do contrário, caracterizado estará o cerceamento do direito de defesa do fornecedor.

A tanto confluem diversas e substanciosas razões.

A primeira delas consiste no dever de esclarecimento do juiz, que além de corolário do dever de colaboração aqui defendido, parece decorrer, nessa hipótese, da interpretação do artigo 331, § 3º, CPC. Assim, cabe ao juiz, por ocasião da fase ordenatória do processo, atento às exigências de transparência das condutas judiciais e do diálogo, esclarecer a quem caberá o ônus processual em caso de insuficiência da instrução, de modo que a parte

303Nesse sentido confira-se STJ, Resp 598.620, 3ª T., rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 18.04.2005 e TJSP, AgIn 121.979-4, 6ª Câmara de Direito Privado, rel. Antonio Carlos Marcato, 07.09.1999.

304THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 148. 305CARVALHO FILHO. Milton Paulo de. Ainda a inversão do ônus da prova no código de defesa do

consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 92, n. 807, p. 56-81, jan. 2003. 306BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo, cit., p. 41.

307CRUZ E TUCCI, José Rogério; TUCCI, Rogério Lauria. Devido processo legal e tutela jurisdicional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 117.

308BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 22, p. 135-149, abr./jun. 1997.

309MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários do Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008. p. 338. Esses professores defendem, inclusive, que a inversão do ônus da prova constitui regra de intrução e não de julgamento.

310CRUZ E TUCCI, José Rogério; TUCCI, Rogério Lauria. Devido processo legal e tutela jurisdicional, cit., p. 117.

311Teresa Wambier, nessa mesma trilha, entende que a inversão do ônus probatório deve se dar antes da instrução, ou, após encerrada a instrução, quando o juiz somente aí notar a presença dos requisitos legais, hipótese em que deverá converter o julgamento em diligência e reabrir a instrução, de forma a possibilitar ao onerado a produção de provas. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Noções gerais sobre o processo no Código do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 10, p. 248-257, 1995.

atingida pela inversão possa requerer e produzir as provas que normalmente não requereria, exercendo na plenitude seu direito constitucional de ampla defesa.

Ademais, essa exigência atende ao próprio escopo da jurisdição, já que propicia a realização de um julgamento mais justo e condizente com a realidade dos fatos, aumentando a possibilidade de efetividade da tutela a ser proferida312.

Com efeito, se o objetivo da lei, ao prever a possibilidade de inversão do ônus, é impô-lo a quem tem melhores condições de produzir a prova, esse objetivo não será atingido se a inversão se der apenas na sentença, hipótese em que o julgamento, invariavelmente, será calcado em uma ficção. Ou então acarretará a exdrúxula situação que se verifica no cotidiano forense, na qual o fornecedor, inseguro sobre a possibilidade de inversão do ônus da prova, vê-se premido a muitas vezes, por cautela, fazer prova de fatos e responsabilidades absurdas que lhe são imputadas, produzindo provas desnecessárias e atrasando a solução do feito, em prejuízo à economia processual313.

Por fim, a possibilidade de inversão apenas no momento do julgamento desconsidera o aspecto subjetivo do ônus da prova314, ignorando sua relevante influência sobre o comportamento das partes, ou seja, impossibilitando que direcionem seu comportamento na instrução de acordo com os riscos que lhe recairão em hipótese de insuficiência de provas.

Nesse sentido, essa postura também dificulta a direção material do processo pelas partes, reduzindo, por exemplo, as chances de que o fornecedor, ciente, previamente, da inversão do ônus probatório e da inexistência de provas em seu favor, transacione com o consumidor ainda na fase de conhecimento, ou mesmo opte pelo reconhecimento jurídico do pedido, na tentativa de estancar os custos financeiros da pendência judicial.

Em suma, a nosso ver, o problema da possibilidade de inversão judicial do ônus da prova apresenta-se em dois momentos distintos do processo. No primeiro, por ocasião da ordenação do processo, quando o juiz deverá verificar a presença dos requisitos legais para a inversão e comunicar as partes de sua decisão. No segundo, por ocasião da efetiva

312Cf. RIBEIRO, Débora de Oliveira. Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. 2005. (Dissertação) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 73 e ss.

313Cf. SILVA, Bruno Freire e. Inversão Judicial do ônus da prova no CDC. In: CARVALHO, Fabiano; BARIONI, Rodrigo. Aspectos processuais do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008. p. 11-21.

314Retomem-se aqui as considerações sobre o aspecto subjetivo do ônus da prova tecidas no Capítulo 2, item 2.3.1.

prolação da decisão, hipótese em que o juiz, não se convencendo dos fatos alegados pelo conjunto probatório produzido, deve julgar desfavoravelmente ao sujeito onerado.

Portanto, muito embora sua efetiva aplicação como regra de julgamento apenas se verifique na fase decisória (quando as provas carreadas aos autos não sejam suficientes para o convencimento judicial), em respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa – e também como expressão do dever de colaboração - a inversão do ônus probandi deve ser decidida e informada às partes na fase de ordenação do processo, de sorte a permiti-las direcionem seu comportamento na instrução cientes desse encargo.

5.1.4. Juízo de admissibilidade da prova e impossibilidade de valoração antecipada de

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