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4. DIVISÃO DE TRABALHO ENTRE JUIZ E PARTES NA ATIVIDADE

5.2. Quanto às partes

5.2.3 Regras de exclusão

Há casos, porém, em que não obstante a amplitude da previsão do artigo 339, CPC, a própria lei exonera a parte do dever de colaboração, em razão da proteção de outros interesses relevantes para a ordem jurídica e que acabam a ele sobrepondo em determinadas situações.

349TABOSA, Fabio Guidi. In: MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1404.

350MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova, cit., p. 802.

351Também tratando da exibição de documento determinada judicialmente como verdadeiro dever processual e não meramente ônus da parte: THEODODO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, cit., v. 1, p. 387 e PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. t. 4, p. 349.

Essas hipóteses são denominadas comumente pela doutrina de “regras de exclusão”, termo oriundo do direito norte-americano, e são previstas tanto no CPC, como em leis extravagantes que tratam especificamente de determinadas situações ou de determinadas categorias de pessoas ou informações, como é exemplo a lei que preserva o sigilo bancário (Lei Complementar 105/2001).

O dever de colaboração imposto por lei, portanto, cede em algumas hipóteses, ora a certos interesses ligados à defesa da esfera privada da pessoa, ora diante de outros deveres a que sujeitos os detentores das informações relevantes para o processo352.

Com relação ao depoimento pessoal, o art. 347, CPC determina que a parte não é obrigada a prestá-lo em duas situações: quando a respeito de fatos criminosos ou torpes que lhe forem imputados (inc. I) e em relação àqueles a cujo respeito deva guardar sigilo por estado ou profissão (inc. II).

No primeiro inciso, o artigo 347, CPC resguarda o privilégio contra a auto- incriminação (auto-imputação criminosa), que é corolário do direito à liberdade constitucionalmente assegurado e também o direito de resguardo à sua reputação, quando os fatos objeto do depoimento forem reveladores de degradação moral. A esse respeito Marinoni e Arenhart observam que:

“O privilégio contra a autoincrimonação é garantia constitucional da liberdade. A exigência de que o acusado confesse seu crime ou de que pessoa indique fato que pode lhe resultar sanção penal é ofensiva à tendência universal que aponta para a necessidade de preservação da liberdade.” 353

Amaral Santos ressalva, no entanto, que essa exclusão refere-se apenas a fatos secundários da lide ou a fatos relevantes cuja prova possa ser feita sobre outra abordagem, que não a da imputação criminosa. Não se aplica, ao revés, quando o fato criminoso constitui o objeto central da lide354, ou seja, quando esteja em discussão o próprio fato delituoso e/ou suas consequências, tal como ocorre em ação indenizatória por acidente de

352TABOSA, Fabio Guidi. In: MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1404.

353MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova, cit., p. 151-153.

354SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários do Código de Processo Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. 4, p. 97.

trânsito com lesão corporal, em ação indenizatória por contrafação de marca355, em ação de nulidade de título baseada na falsidade ou adulteração do documento particular, etc.

No segundo inciso o artigo 347, CPC resguarda o dever de sigilo por estado ou profissão. Essa hipótese de exclusão está, portanto, ligada ao resguardo de interesses de terceiros, normalmente estranhos ao processo, cujo sigilo a parte é obrigada a guardar.

O dever de sigilo por estado geralmente é associado diretamente ao sigilo religioso356, ou seja, às informações prestadas pelos fiéis em confissão religiosa e ao dever moral de sigilo daí decorrente, que é reconhecido pelo direito como causa excludente do dever de depor. Tabosa357, no entanto, refere-se também ao estado familiar e aos vínculos de filiação e parentesco para reconhecer que, muito embora o dever de sigilo decorrente dessas relações não seja oriundo de lei, mas dos laços de lealdade e proteção recíprocos criados por força do núcleo familiar, cabe ao juiz, nesses casos, avaliar a razoabilidade da escusa de depor, considerando a proximidade entre o depoente e a pessoa a quem se refere o fato sigiloso, a natureza e gravidade do tema tratado, a natureza da causa, etc.

Aliás, o art. 229, CC, ao tratar das exclusões do dever de depor, prevê duas hipóteses fundadas justamente no vínculo familiar, a primeira em razão de desonra que o fato possa causar ao próprio depoente, a seu cônjuge, parente em grau sucessível ou amigo íntimo (inc. II) e a segunda na exposição dessas mesmas pessoas a perigo de vida, de demanda ou de dano patrimonial direto (inc. III). Muito embora a doutrina consultada não trate especificamente dessas hipóteses previstas no Código Civil, entendemos que as exclusões ali previstas são também aplicáveis ao depoimento pessoal, por se tratar de lei posterior ao CPC e que trata especificamente dessa matéria.

O dever de sigilo profissional, por sua vez, abarca uma gama de atividades profissionais, funções e ofícios358 nos quais, pela natureza da relação entre o depoente e a pessoa sobre a qual se deve depor, ou mesmo em razão da natureza das informações a serem prestadas, a lei ou o regulamento da profissão resguarda o sigilo. Diversos são os exemplos de sigilo profissional resguardado por lei, como é o caso do advogado em relação ao cliente, médicos e psicólogos em relação a seus pacientes, os sigilos de indústria e o sigilo empresarial, o sigilo do jornalista com relação à sua fonte, etc.

355Esses exemplos são de Fabio Tabosa, in Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1408. 356MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova, cit., p. 152.

357Nesse sentido: Fabio Tabosa, in Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1410.

358Fábio Tabosa classifica o sigilo religioso como espécie de sigilo profissional, em interpretação ao artigo 154 do Código Penal. Fabio Tabosa, in Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1410.

Nessas hipóteses, a eventual quebra do sigilo por parte do depoente poderá caracterizar até mesmo ilícito penal (violação do segredo profissional), tipificado no artigo 154 CP359.

Há casos, no entanto, em que a própria lei regulamentadora do exercício profissional excetua o sigilo legalmente garantido, como é exemplo o Código de Ética Médica (art. 102), que autoriza o médico a revelar informações sigilosas por justa causa, como é o caso de comunicação de doenças contagiosas. A própria intimação judicial para depor, aliás, geralmente é tida como causa legitimadora da revelação das informações.

Como advertem Marinoni e Mitidiero360, no entanto, o rol do artigo 347, CPC não é exaustivo, podendo o juiz analisar outras situações invocadas pelas partes como legitimadoras da escusa de depor (como são exemplo relações de parentesco próximo, depoimento sobre fatos íntimos e vexatórios, etc.), casos em que deverá ser aplicado o princípio da proporcionalidade para sopesar os eventuais valores em conflito, devendo-se evitar, no entanto, eventuais abusos que acabem por esvaziar esse importante meio de prova.

Cumpre ressalvar, ainda, que de acordo com o parágrafo único do dispositivo citado, essas hipóteses de exclusão não se aplicam às ações de filiação, de “desquite”361 e de anulação de casamento. Trata-se aqui, na realidade, das ações de família de forma geral que, por sua relevância e pela peculiaridade dos fatos nela tratados – cuja publicidade é restrita ao âmbito familiar – trazem uma natural maior dificuldade de prova, sendo certo que a aplicação das regras de exclusão acabaria, no mais das vezes, por inviabilizar por completo a obtenção das informações necessárias à solução justa da lide.

Também com relação à exibição de documentos a lei traz regras de exclusão – e ainda mais amplas - ao dever de colaboração das partes, arrolando no artigo 363, CPC, diversas hipóteses em que a parte pode escusar-se de exibir em juízo documento ou coisa.

A primeira delas consiste na hipótese de o documento cuja exibição é exigida seja “concernente a negócios da própria vida da família” (inc. I). Diante da amplitude da previsão legal, a doutrina apressa-se em fixar parâmetros para a apreciação judicial dessa

359Art. 154, CP: “Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.”

360MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado, cit., p. 351. 361Aqui se entendem as ações de separação e divórcio, em razão do novo tratamento da matéria dado pela Lei

escusa, de sorte que a aplicação da norma legal não acabe, por sua abrangência, a inviabilizar a prova.

Tabosa, nesse contexto, afirma que a ratio legis desse inciso é resguardar a intimidade e a vida privada dos membros do núcleo familiar, ambos constitucionalmente tutelados (art. 5º, X, CF), “preservando o direito de seus integrantes de subtrair do

conhecimento de terceiros aspectos relacionados às relações pessoais internas, ao cotidiano de seus membros e (...) a determinadas relações jurídicas entre/por eles estabelecidas”362.

No entanto, como ressaltavam Marinoni e Mitidiero363, a escusa somente é possível se a parte demonstrar que a exibição da coisa ou documento relativo a “negócios” da família não tem relevância para o adequado julgamento do litígio. Entendimento contrário, segundo esses professores, levaria a ter por vedada qualquer ação que possa levar à discussão de questões íntimas da família, o que constituiria verdadeiro absurdo.

E, como exemplos de inadmissibilidade da recusa a doutrina cita o contrato firmado por pai e filho cuja exibição é requerida em ação proposta por terceiro e que visa à anulação do negócio jurídico; os litígios relacionados ao direito de família e a questões de estado, em que as questões íntimas dos entes familiares constituem o próprio objeto central das ações; a exibição de registros contábeis de empresa familiar em litígio travado com terceiros por força de negócios por eles realizados, etc364.

A segunda regra de exclusão refere-se à hipótese de a “apresentação puder violar

dever de honra” (inc. II). Dada a similitude, ao menos em parte, entre a previsão do inciso II e do inciso III a seguir tratado, entende-se que a violação à honra aqui aludida se refere não ao conteúdo das revelações, mas ao próprio ato de mostrar/divulgar.

A hipótese aqui tratada, pois, é a do dever moral, o comprometimento pessoal de sigilo com relação ao documento, que foi assumido pelo detentor junto a terceiro, e cuja revelação, portanto, abalaria sua credibilidade e sua reputação perante esse terceiro. Como exemplos Tabosa cita a situação daquele que recebe em caráter não profissional um manuscrito inédito para exame e apreciação; daquele que se acha na posse de fita

362TABOSA, Fabio Guidi. In: MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1166.

363MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado, cit., p. 363. 364TABOSA, Fabio Guidi. In: MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo Civil interpretado,

magnética com a gravação do conteúdo de reunião secreta de grupo qualquer como partido político, sindicato, etc365.

A terceira regra de exclusão refere-se à possibilidade da “publicidade do

documento redundar em desonra à parte ou a terceiro, bem como seus parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau; ou lhes representar perigo de ação penal”. O inciso, como se vê, trata de duas hipóteses distintas: desonra à parte ou a terceiro e risco de ação penal.

No primeiro aspecto, a lei trata da desonra que possa trazer à parte ou parente próximo o próprio conteúdo do documento e não de sua mera revelação (como alude o inciso II). Trata-se aqui da tutela da honra, enquanto atributo da personalidade também constitucionalmente garantido, e que pode ser comprometida pela demonstração de alguma prática irregular ou contrária à reputação de determinada pessoa no meio social.

Como bem observam Marinoni e Arenhart366, essa excludente também se aplica às pessoas jurídicas, já que a publicidade de determinado documento, a depender de seu conteúdo, pode vir a sua atingir a imagem, reputação e confiabilidade econômica.

A segunda parte do inciso se refere ao privilégio contra a auto-incriminação, já tratado anteriormente no que se refere à escusa de prestar depoimento pessoal. Cumpre apenas registrar, nesse aspecto, a necessidade de que a recusa seja fundada na possibilidade concreta de incriminação, ou seja, na possibilidade de que o documento gere evidência do ilícito penal cometido, ou seja, que haja flagrante situação de perigo de ação penal367.

A quarta regra de exclusão refere-se à possibilidade de a exibição “acarretar a

divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo”. Essa questão também já foi anteriormente tratada ao analisarmos as escusas de prestar depoimento pessoal, aplicando-se aqui o que já foi anteriormente abordado neste item.

Por fim, o inciso V, valendo-se de uma norma aberta, prevê a possibilidade de escusa de apresentação do documento quando “subsistirem outros motivos graves que,

segundo o prudente arbítrio do juiz, justifiquem a escusa da exibição”.

Assim como já se disse em relação à exclusão do dever de prestar depoimento pessoal, diante da impossibilidade de previsão, pelo legislador, de todas as situações que

365TABOSA, Fabio Guidi. In: MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1167.

366MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova, cit., p. 513.

podem gerar a justa recusa de exibição, justifica-se a inclusão da norma aberta, a permitir ao julgador no caso concreto sopesar os interesses eventualmente em conflito, notadamente o interesse que se pretende preservar com a confidencialidade do documento e o interesse público na obtenção da prova, levando em conta, evidentemente, a natureza e relevância da prova para o processo para, com base nesses elementos, decidir sobre a legitimidade ou não da recusa da parte em disponibilizá-la.

6. CONSEQUÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE

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