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5. APLICAÇÃO DO MODELO ESTUDO DE CASO

5.5. Apontamentos sobre o caso estudado

Nota-se que a operação estudada neste capítulo 5 assumiu um formato claramente diferente do padrão identificado por PINHEIRO no tópico 4.9, relativamente à estrutura de subordinação. De fato, a operação em comento estabeleceu uma razão de subordinação de 80%, que é praticamente o inverso da verificada nas observações de PINHEIRO. Da mesma forma, o desenho foge da tendência vista nos primeiros FIDCs agrícolas referidos no mesmo tópico.

A explicação para tal formatação reside no fato de que, no caso estudado, os títulos subordinados também eram destinados à venda aos investidores, não servindo, portanto, de mero mecanismo para o descarte dos recebíveis inadimplidos da carteira (hipótese em que tais títulos ficariam com os próprios cedentes/originadores).163 Assim, a estrutura de subordinação funcionou primordialmente como uma maneira de criar classes de títulos com remunerações diferentes, proporcionalmente aos riscos contidos nos instrumentos, possivelmente para atrair diferentes tipos de investidores.

Há nos relatórios de rating evidências de que o nível de diversificação/concentração da carteira tenha ficado em parâmetros muito justos, pois seis usinas representavam 10%, e com isso muito próximos da marca considerada aceitável pelas agências de classificação, ficando a operação assim sensível a imprevistos - que de fato vieram a ocorrer com a desistência de dois originadores, a qual prejudicou a continuidade da operação, que terminou sendo cancelada e reformulada.

Outro ponto crítico que parece ter impactado negativa e decisivamente no rating foi o prazo relativamente curto para liquidação dos recebíveis. Apesar de contar com estruturas bastante fortes de garantia, sua execução em caso de inadimplência (alienação fiduciária de bens móveis e imóveis e/ou a busca e apreensão da safra) tendia a ser concretizada após o vencimento dos títulos. No caso particular dos bens alienados fiduciariamente, apesar da força garantida por Lei a tais garantias, seu processo de execução poderia sofrer atrasos adicionais na hipótese de os bens serem caracterizados como bens de capital protegidos pelo art. 119, IX da Lei de Falências (vide capítulo 4.5.5). Destaque-se que a nota de rating mede simultaneamente a expectativa que o investidor pode ter de ser pago tanto integral como

163 Possivelmente, a origem dessa configuração se deve ao fato de se tratar de um modelo multicedentes, onde

há maior dificuldade de harmonização dos interesses dos diversos participantes, particularmente no momento de se dividir os títulos subordinados (vide tópico 4.8).

pontualmente. Assim, ainda que as garantias pudessem dar ao investidor a garantia de que seriam efetivamente pagos, se houvesse a chance de atraso de um único dia, o rating já seria sensivelmente afetado. Fatalmente essa questão deve ter impactado no rating, nos níveis de garantia requisitados e nos custos de captação.

À margem das particularidades do caso concreto, restou confirmado que, sob o ponto de vista operacional, é possível arquitetar operações de securitização (inclusive multipatrocinadas) bastante sofisticadas a partir dos novos títulos do agronegócio, que podem ser usados de forma encadeada para tirar proveito das aplicações e características de cada qual. Até o momento, apenas haviam sido testadas estruturas fundadas em FIDCs enquanto veículos independentes para emissões públicas de valores mobiliários associados a recebíveis do agronegócio. Verificou-se, com isso, que as companhias securitizadoras e os CRAs por ela emitidos podem ser uma alternativa aos FIDCs para captações dessa natureza – especialmente com o impulso dado pelos benefícios fiscais proporcionados aos investidores pessoas físicas.

Os passos dados no sentido de desenhar e implementar um primeiro modelo de emissão pública de CRA representa, portanto, um importante mérito da operação, abrindo espaço para posteriores iniciativas nesse segmento. Além disso, a operação estudada contribuiu para a eliminação de incertezas sobre a forma de registro na CVM e CETIP, tendo permitido ainda verificar que se trata de um produto que desperta o interesse de investidores164.

A estrutura estudada tinha CPRs e contratos de fornecimento como os colaterais primários, e combinou o uso articulado de CDCAs e CRAs, para moldar os direitos associados a tais ativos-lastros de uma forma atrativa aos investidores. Os CDCA serviram assim para instrumentalizar os fluxos do relacionamento entre as usinas e a securitizadora, enquanto que os CRAs serviram como instrumento de distribuição pública, veiculando os fluxos entre a securitizadora e os investidores. Ao final, a estrutura adotada permitiu que a operação não obedecesse exatamente os mesmos fluxos de caixa e vencimentos dos ativos-lastro (estrutura pay-through).

Foi, assim, possível emular nos valores mobiliários emitidos uma rentabilidade nos moldes de outros títulos de renda fixa, com uma elevada relação de rentabilidade-risco e relevantes benefícios fiscais (capítulo 4.8). De fato, a remuneração oferecida aos investidores terminou sendo fixada em patamares relativamente altos (14% e 18% a.a.), possivelmente em função

164 Esta informação foi celebrada no anúncio publicado pela securitizadora a respeito do cancelamento da 1ª

do momento de pós crise financeira e escassez de crédito no mercado, porém compatíveis com outras emissões de securitização registradas em 2009 com papéis de securitização de rating semelhante. A título de referência, cumpre citar levantamento da consultoria Uqbar (sistema Orbis), que indica que as cotas de FIDCs lastreados em recebíveis comerciais, de rating AA, ofereceram aos investidores remunerações entre 12,7% e 17,1% a.a em 2009.165 Sob essa ótica a remuneração de 14% a.a. para um CRA de rating AA ficou compatível com emissões de securitização equivalentes.

Verificou-se que o fato de terem sido utilizados recebíveis não performados e vinculados ao processo de produção agrícola impuseram ao estruturador, desde o início, o desafio de conceber uma estrutura de reforço de crédito e garantias especialmente fortes. Isso porque o risco dos originadores não pôde ser perfeitamente isolado na estrutura, seja porque a performance dos recebíveis dependia da continuidade das atividades dos mesmos, seja em função do grau de relativa concentração da carteira (vide tópico 4.5). De toda forma, conforme os relatórios de rating, a operação conseguiu lidar eficientemente com os riscos envolvidos em diversos aspectos, a partir da relativa diversificação dos devedores da carteira e da pulverização do seu risco entre os investidores, dos diversos mecanismos estruturais de reforço de crédito e dos altos níveis de garantias adicionais. O desenho da estrutura viabilizou, assim, o aproveitamento de CPRs físicas como lastro da emissão, dando conta de que as restrições de ordem operacional e financeira destes títulos (capítulo 4.10) podem ser eficazmente administradas em estruturas mais sofisticadas.

Ao final, a operação teve ainda o mérito, não desprezível, de produzir títulos seniores com nota de risco AA, a partir de uma carteira de recebíveis de originadores que foram classificados pela S&P com nota média CC (ou seja, um quase default), e assim percebido pelo pelos investidores como detentores de baixa qualidade creditícia. Assim, a operação daria aos tomadores (as usinas) acesso a uma classe de investidores bastante exigentes: os investidores institucionais, que em regra só podem ser alcançadas por instituições financeiras e grandes corporações de reconhecida solidez. Quanto aos papéis subordinados, estes não conseguiram nota de risco tão favorável, mas de outro lado ofereciam uma rentabilidade mais elevada, para compensar os maiores riscos e assim atrair os recursos almejados.

165 Acreditamos que CRIs não seriam o parâmetro de comparação mais adequado para com o caso concreto

porque, apesar de usarem o mesmo veículo (a companhia securitizadora), os recebíveis-lastro (que são basicamente financiamentos imobiliários e aluguéis) têm características fundamentalmente diversas das do estudo de caso em termos de prazos, colateralização, fluxo de caixa e riscos.

Sob o ponto de vista da viabilidade econômico-financeira, nota-se que a operação disponibilizaria aos tomadores (as usinas) uma linha de financiamento de volumes relevantes com prazos de 8 a 24 meses e uma taxa de 18% a.a. (CDCA) + 3,5% (taxa de desconto) do valor de face. Assim, levando-se em conta o prazo médio dos títulos de 16 meses, a taxa média de captação das usinas participantes ficaria em torno de 21% a.a., ou seja, um pouco mais que o dobro do CDI166.

Esse custo de capital não era, portanto, excepcionalmente baixo, mas, no contexto do caso concreto, o fato de tantas usinas terem aderido à operação pode ser visto como um forte indício de que se tratava de um custo competitivo em relação as alternativas disponíveis no mercado financeiro convencional. A título de referência, é oportuno salientar que as estatísticas do BACEN mostram que, para capital de giro (pré-fixado) e desconto de duplicadas, as taxas médias167 praticadas pelos bancos brasileiros giravam ao redor de, respectivamente, 30% e 40% a.a., em meados de 2009, quando a operação foi registrada na CVM.

Ainda nesse sentido, não se pode perder de vista o contexto econômico atípico em que a operação veio a ser estruturada, marcado pela aguda falta de liquidez168, agravando as distorções no mercado de crédito e na formação de preços, especialmente em relação a tomadores percebidos como de alto risco em operações de prazo mais longo. Presumivelmente, os preços tomados no momento da estruturação (e usados como referência para a fixação da remuneração dos investidores) foram influenciados pelo contexto econômico vivido à época – aliado ao fato de se tratar de um produto novo e desconhecido pelos investidores (impondo o chamado prêmio de ignorância referido por KOTHARI). Hipoteticamente, os custos de captação poderiam ser mais baixos em situações menor instabilidade e de maior grau de amadurecimento do mercado de securitização.

A operação estudada representa uma estrutura possível para captações de recursos no mercado de capitais via securitização. Se por um lado, os diversos mecanismos e garantias agregados à estrutura viabilizaram a emissão de títulos com ratings mais elevados, de outro

166 O CDI acumulado em 2009 foi de 9,8% (CETIP).

167 Convém ressaltar que os preços medidos pelo BACEN são preços médios, que portanto não levam em conta

as particularidades de cada empréstimo. Transações com níveis de garantia relevantes como os vistos no caso concreto certamente viabilizariam uma taxa abaixo da média publicada pelo Banco Central. Não havia, no entanto, meios à disposição do autor para aferir qual seria o valor mais adequado para comparação. De toda forma, tal referência permite uma aferição da ordem de grandeza dos juros praticados no mercado bancário.

168Há registros de que mesmo pequenos e médios bancos enfrentaram dificuldades para captar recursos no

impuseram uma alta complexidade e custos de estruturação (R$ 5,3 milhões, conforme tabela 8), que certamente geraram dificuldades adicionais para a viabilização da operação. De toda forma, como dito, trata-se de uma possível estrutura de securitização de recebíveis do agronegócio, entre tantas outras que podem ser concebidas de acordo com as necessidades e possibilidades dos tomadores/originadores. A título de exemplo, cabe notar que as demais operações identificadas na tabela 3, cuja documentação não estava completamente disponível para consulta, apresentaram estruturas bem mais leves que a estudada (por ventura, todas fundadas em FIDCs). Seus prospectos indicam custos de emissão numa faixa entre R$ 200 mil (V1) e R$ 409 mil (Deutsche), dando conta de que o custo de estruturação de operações da mesma natureza pode ser mais baixo que o incorrido no estudo de caso.