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A APROPRIAÇÃO CAPITALISTA DOS RECURSOS HÍDRICOS: os usos do território e da água no Rio Grande do Norte.

dimensões normativas e institucionais

Mapa 16. Rio Grande do Norte: Comitês de bacias hidrográficas (2016)

3.3 A APROPRIAÇÃO CAPITALISTA DOS RECURSOS HÍDRICOS: os usos do território e da água no Rio Grande do Norte.

O reconhecimento de que a água é um bem finito e que possui elevado valor econômico, em virtude de ser uma necessidade primária a manutenção da vida e substância essencial à produção de diversas mercadorias a tornou um imperativo para o desenvolvimento de algumas atividades produtivas, sejam elas de natureza agrícola ou industrial. Esse reconhecimento “é o principal indutor ao uso racional desse recurso natural, servindo de base para a instituição da cobrança pela utilização dos recursos hídricos, levando ao equilíbrio entre a oferta e a demanda” (ZAGO, 2007, p. 31).

De acordo com Porto-Gonçalves (2012) são esses os principais atributos que tornam a água um elemento sobre o qual o capital realiza constantes investidas, sendo também por isso um bem sobre o qual o Estado exerce forte poder de regulação e taxação, atuando em conformidade com dos marcos normativos e fazendo uso dos dispositivos previstos em lei.

Como exposto anteriormente a outorga e a taxação pelo uso da água, colocam-se a partir da Política Nacional de Recursos Hídricos, como instrumentos a serem empregados pelas agências de regulação com o intuito de equacionar as demandas por água, com as reais capacidades de fornecimento das bacias hidrográficas.

Clarifica-se aqui, que embora as outorgas e a taxação sejam propostas por meio da mesma política, cada uma destas tem contextos específicos nos quais devem ser empregadas. A taxação corresponde ao pagamento monetário pelo uso da água, independentemente da quantia ou finalidade a que se destina. Já a outorga é uma espécie de autorização que permite ao outorgado42 a exploração da água ou a implantação de um sistema de engenharia hidráulica.

Quanto à regulação dos recursos hídricos, as outorgas de uso da água, constituem-se num dos principais mecanismos adotados pelas agências reguladoras, a quem cabe nos níveis federal e estadual disciplinar a exploração da água. Já que como elucidado por Arantes (2009, p.11) “quando se tratem de corpos de água de domínio da união, a outorga deve ser solicitada junto a ANA. Quando se tratarem de corpos de água de domínio dos estados à outorga deve ser solicitada junto ao órgão estadual de gestão dos recursos hídricos”.

No caso do Rio Grande do Norte, as outorgas são emitidas pela Agência Nacional de Águas e pelo Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte. No território potiguar as ações da ANA incidem de forma mais contundente na bacia do Piancó-Rio Piranhas- Açu, por tratar-se de um sistema hidrográfico com extensão territorial que extrapola os limites

do território potiguar, não cabendo ao IGARN deliberar sobre a emissão de outorgas para a exploração de água na referida bacia hidrográfica.

Genericamente a palavra outorga remete a ações práticas do tipo conceder, deixar, permitir, aceitar, admitir, tolerar ou aprovar. Já dos pontos de vistas jurídico e técnico

A outorga é um instrumento discricionário que permite ao proprietário do recurso estabelecer quem pode usá-lo, como, quando e de que forma. Quando a propriedade é privada, a outorga é equivalente à aquiescência, por parte do proprietário, de que outros usem seu recurso. Para isto, a outra parte deverá se sujeitar ao que for exigido pelo primeiro. Por exemplo, parentesco, cessão de parte do que for produzido ou simples pagamento pecuniário (LANNA, 2000, p. 88).

Em um país com a dimensão territorial como a do Brasil, com as especificidades climáticas de cada região e com diferenciações profundas quanto à disponibilidade e demanda por água, a outorga assume posição central no sistema de gerenciamento dos recursos hídricos, pois é através deste que se busca um equacionamento entre a oferta e a demanda por água, de modo a assegurar o abastecimento humano e a exploração da água para fins produtivos e comerciais. Nesse sentido explicita-se que

a função da outorga será ratear a água disponível entre as demandas existentes ou potenciais de forma a que os melhores resultados sejam gerados para a sociedade. Estes resultados poderão estar atrelados a contribuições ao crescimento econômico (abastecimento de uma fábrica), à equidade social (abastecimento público) e à sustentabilidade ambiental (manutenção de uma vazão mínima em um curso de água, ou seja, de uma "vazão ecológica"). (LANNA, 2000, p. 89).

No território brasileiro a exigência de outorga aplica-se aos casos de exploração da água para fins comerciais (envasamento e venda), usos agrícolas e industriais, prática da aquicultura, dessedentação animal, lançamento de partículas sólidas e efluentes poluentes, irrigação, atividades de lazer, entre outros.

A mesma deve também ser requerida na ocorrência de eventos associados a realização de obras hídricas, especialmente quando estas resultarem na instalação de sistemas de engenharia hídrica, tais como perfuração de poços, construção de barragens, canalizações e desvios de rios, criação de redes de drenagem artificiais, assim como de infraestruturas que alterem de forma contundente a disponibilidade hídrica.

Ao analisarem a Política Nacional de Recursos Hídricos e a Política Estadual de Recursos Hídricos, os pesquisadores Oliveira, Barbosa e Dantas Neto, esclarecem que

A não obrigatoriedade de requerer outorga de direito de uso de recursos hídricos limitasse às seguintes situações: usos de água para satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais de comunidades rurais; derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes; e acumulações de volumes considerados insignificantes (OLIVEIRA, BARBOSA e DANTAS NETO, 2013, p. 17).

Nesse sentido é válido apontar que a emissão da outorga não é irrefutável, estando o cumprimento da oferta de água estabelecida no tempo predeterminado por meio desta, condicionada a disponibilidade do manancial explorado. A qualquer momento em uma situação de colapso no abastecimento ou de estiagem prolongada o direito de exploração concedido pela outorga pode ser suspenso, nesse sentido

não há como negar a pertinência desse mecanismo de controle, uma vez que as bacias hidrográficas não são abundantes em toda parte do território nacional. Onde há abundancia, o controle é menos rígido; onde já escassez, esse controle deve ser mais rigoroso. É a outorga, enquanto instrumento de controle, que viabiliza a aferição do grau de necessidade (MARQUES, 2004, p. 179).

Destarte a todas as suas nuances administrativas e características jurídicas, compreende- se que a emissão de outorga se constitui também como um mecanismo de regulação do uso da água, mas, sobretudo de uso do território, pois reconhecesse que é possível a ocorrência de usos do território em que seja dispensável o uso da água, mas não há uso da água que não seja ou não implique no uso do território. Assim salienta-se que o uso da água e o uso do território são processos correlatos.

Em se compreendendo que as políticas públicas, a exemplo das políticas nacional e estadual de recursos hídricos são normas, e que associadas a outras ações sistemáticas produzem territórios profundamente normatizados, estes tendo bases nos sistemas normativos e nas estruturas institucionais.

Sabe-se que a necessidade de regulação quanto à exploração dos recursos hídricos, torna-se cada vez mais necessária em decorrência das altas demandas por água, sobretudo para comercialização ou produção de mercadorias. Esse conjunto de usos é denominado de consumo consuntivo da água, caracterizado por uma diferença exponencial entre o volume total de água retirada de uma bacia hidrográfica para abastecimento ou produção de uma mercadoria e o volume que retorna a esta mesma bacia após o uso, comumente em menor quantidade e qualidade (ANA, 2016c; SOUZA at al 2014).

O uso da água pode ser mais ou menos consuntivo, isto é, pode resultar em perda elevada, média ou reduzida de água. A perda é a diferença entre o volume de água retirado do corpo d'água para ser utilizado e o volume devolvido, ao final do uso, ao mesmo corpo d'água. No abastecimento urbano, descontadas as perdas pela rede de distribuição, o uso consuntivo pode ser considerado baixo, em torno de 10%. Todavia, no abastecimento industrial, o uso consuntivo varia conforme o setor, situando-se em torno de 20%. Na irrigação, o uso consuntivo é elevado, alcançando 90%. Por outro lado, na geração de energia elétrica a perda é, em geral, baixa e se dá somente pela evaporação (BORSOI e TORRES, 1997, p.144-145).

O elevado percentual de perda d’água no processo de produção de culturas agrícolas irrigadas deve-se sobremaneira a infiltração da água no solo, a evapotranspiração e a água consumida pelos próprios vegetais para produção de frutos, comercializados como alimento, este último podendo ser para humanos ou animais.

Frente aos dados sobre as demandas de consumo consuntivo de água43 percebe-se que a

irrigação, para além de seu elevado potencial de consumo, é hoje uma das atividades produtivas que mais requer água para o seu efetivo desenvolvimento, superando as demandas de consumo para abastecimento humano e de fornecimento para atividade industrial.

No caso específico da demanda de água para abastecimento das áreas rurais percebe-se que esta se faz presente em todo o território nacional, todavia não apresenta demanda de consumo superior a 0,030016 m³/s. Já no que refere-se a demanda para fins de abastecimento urbano a maior demanda registrada foi de 6,705916 m³/s. Conforme observado na figura 09, as maiores demandas para fins de abastecimento das áreas urbanas, são observadas nas áreas que constituem a região concentrada do país e na faixa litorânea do Nordeste.

A demanda consuntiva para dessedentação animal, assim como para o abastecimento das áreas rurais, é presente em quase todo o território brasileiro, variando entre 0,000001 m³/s a 0,109566 m³/s, este último registrado no estado do Mato Grosso do Sul, como exposto na figura 09. É pertinente frisar que a mais elevada demanda registrada para fins de dessedentação animal é quase que três vezes mais que a maior demanda registrada para abastecimento da população residente no campo brasileiro.

43 De acordo com a ANA (2016d) “As demandas foram estimadas, com base em informações secundárias de

diversas fontes. Para as diferentes categorias de uso consuntivo da água, o ano de referência dos dados são: para uso industrial, foram usadas as outorgas de uso dos recursos hídricos estaduais e federais até julho de 2014; a demanda animal foi calculada com base nos dados de rebanho por município para o ano de 2013 (SIDRA/IBGE); a demanda humana considerou dados da estimativa populacional do IBGE (ano-base 2013); e a demanda para irrigação foi calculada para o ano-base 2014 utilizando dados dos planos de recursos hídricos (SPR/ANA) e levantamento de pivôs por imagem de satélite (EMBRAPA/ANA), além de taxas anuais de crescimento da área irrigada, calculadas pela Câmara Setorial de Equipamentos de Irrigação da Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos).”

Com relação à figura 10, observa-se que as maiores demandas consuntivas de água para uso industrial estão na região concentrada do país, tendo como um dos principais focos o estado de São Paulo, ainda que a maior demanda consuntiva tenha sido registrada no estado do Pará, com exatos 8,604178 m³/s. É valido frisar que no Nordeste as demandas por água para uso industrial estão localizadas pontualmente na faixa litorânea, onde localizam-se a maior parque dos distritos e parques industriais da região.

A demanda consuntiva para irrigação, apresentada na figura 11, faz presente em todo território nacional, concentrando-se particularmente na porção oeste do estado da Bahia, na divisa entre os estados da Bahia e Pernambuco, especialmente no território que envolve os municípios de Juazeiro/BA e Petrolina/PE, a região da Chapada do Apodi, englobando áreas do leste do estado do Ceará e oeste do Rio Grande do Norte, o leste do estado de Alagoas e o estado do Rio Grande do Sul, onde se registrou a demanda de 6,239173 m³/s para uso na irrigação.

Com relação às regiões anteriormente mencionadas, cabe destacar que as localizadas na região Nordeste são áreas nas quais ocorre predominantemente a produção de frutas irrigadas, com exceção do leste do estado de Alagoas onde a irrigação encontra-se associada ao desenvolvimento da atividade canavieira. De acordo com Bernardes (2015), aproximadamente 75% dos canaviais do estado de Alagoas fazem tipo de alguma técnica de irrigação, o que totaliza 300 mil hectares para a produção de cana de açúcar irrigada.

No estado do Rio Grande do Sul, o uso da irrigação, destina-se sobremaneira a produção de grãos como arroz, milho e soja, assim como ao cultivo dos pastos irrigados para alimentação do rebanho bovino, seja na pecuária leiteira ou de corte (DOLABELLA, 2009; MIGUEL, 2013). Dada a importância da irrigação para o crescimento e dinamicidade do setor agrícola nesta unidade da federação, a mesma possui uma Política Estadual de Irrigação do Rio Grande do Sul (Lei Estadual nº 14.328, de 23 de outubro de 2013) e um Plano Diretor de Irrigação.

O conjunto das demandas consuntivas de água, advindas de diferentes ramos da economia, assim como da necessidade premente de abastecimento dos centros urbanos e áreas rurais, faz com que o direito à exploração e uso da água seja regulado pelo Estado, por meio da emissão de outorgas, como exposto anteriormente. No período entre 2001 e 2015 foram emitidas pela Agência Nacional de Águas, um total de 16.777 outorgas de uso da água em diferentes bacias hidrográficas do país. Como exposto a partir do gráfico 07.

Figura 10. Brasil: demanda consuntiva de água para dessedentação animal e uso industrial em m³/s (2016)

Figura 11. Brasil: demanda consuntiva de água para irrigação e demanda consuntiva total em m³/s (2016)

Gráfico 07. Brasil: número de outorgas emitidas por ramo produtivo (2001-2015)

Entre os anos de 2001 e 2015 a proporção no aumento de outorgas emitidas foi de 98,37%, com destaque para os anos de 2013, 2014 e 2015 quando foram emitas, respectivamente, 2.008, 2.104 e 1.776 autorizações permitindo a exploração e uso da água para fins comerciais e consuntivos (ANA, 2016e). Em 2014, ano que em se observa uma alta na emissão de outorgas, os estados que mais as concederam foram Minas Gerais com 648 outorgas, Bahia com 451 outorgas e Pernambuco com 313 outorgas. Como exposto no mapa 17, estas outorgas se concentram, sobretudo na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (ANA, 2016e).

Depreende-se que a irrigação é a atividade produtiva que nos últimos tempos mais tem demandado por água para seu efetivo desenvolvimento, ainda que com variações significativas, todavia, despontando sempre como o ramo para o qual é emitido o maior número de outorgas do uso da água, juntamente com a indústria e a mineração.

É notório o diferencial no que se refere à demanda e ao número de outorgas emitidas para irrigação com relação a outras atividades produtivas com elevado potencial de consumo, tais como a indústria e a mineração. É válido também ressaltar que o número de outorgas emitidas individualmente para cada uma dessas atividades é superior às aprovisionadas para fins de abastecimento humano ou criação animal.

As outorgas emitidas para o ramo da irrigação nos estados da Bahia, Minas Gerais e Pernambuco no ano de 2014, correspondem a 77,8% do número de outorgas emitidas para fins de irrigação no país e a 59% de todas as outorgas emitidas no Brasil, englobando para além da irrigação, serviços como o abastecimento público e o esgotamento sanitário, e outras atividades produtivas como a aquicultura, criação animal, indústria e mineração, dentre outras.

Como exposto no mapa 17, a emissão de outorgas no Brasil tem se concentrado no leito dos grandes rios que recortam o país, contribuindo assim para a configuração de seu território. Dentre os rios com maior concentração de outorgas, destaca-se o Rio Paraná-Tietê, Rio São Francisco e Rio Tocantins, onde estes havendo uma prevalência de outorgas de uso da água para provimento de sistemas de irrigação.

As outorgas concedidas para a prática da irrigação nas terras banhadas pelo Rio São Francisco apresentam como demandas centrais a irrigação da uva, manga, banana, goiaba, soja, feijão, milho e capim. Conforme exposto pela ANA (2016e), os métodos de irrigação utilizados são bastante diversificados, englobando desde o tradicional método da irrigação por inundação, até sistemas de engenharia sofisticados como a irrigação por gotejamento ou autopropelida.